O SER DOENTE: uma reflexão à luz de GEORGES CANGUILHEM*
Albertina Bonetti**
RESUMO
O texto apresenta uma reflexão sobre o SER DOENTE relacionando-o com alguns princípios que orientam a prática da Educação Física nos dias de hoje. Este artigo faz uma breve abordagem sobre a compreensão de corpo percebida pela ciência médica e, também, pelas outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a Educação Física.
PALAVRAS-CHAVE: Ser doente – Saúde – Educação Física
SITUANDO O TEMA
Este artigo se propõe a apresentar as idéias de Georges Canguilhem sobre o SER DOENTE, dada a sua relevância na área da saúde. A necessidade de um aprofundamento do pensamento do epistemólogo surgiu das minhas inquietações em conceituar este SER, tanto de uma visão biológica como de uma visão filosófica. Sendo assim, neste texto, serão enfatizadas as idéias principais do SER DOENTE, tendo como referencial a tese O Normal e o Patológico de Georges Canguilhem (2000) relacionando-a com alguns princípios que orientam a prática da Educação Física nos dias de hoje.
CONHECENDO GEORGES CANGUILHEM
Filósofo francês e doutor em Medicina, nasceu em 1904 e morreu aos 91 anos de idade, em 11 de setembro de 1995. Vivenciou períodos de avanços científicos em diversas áreas de conhecimento, como também as polêmicas conseqüentes desses avanços. Esse filósofo e médico preocupou-se em levar às ciências da vida a reflexão filosófica, investigando o estatuto epistemológico de diversos conceitos utilizados nestas ciências, como saúde, doença, normal e patológico. Ele é o primeiro e um dos melhores representantes da epistemologia biológica na França.
Interessou-se principalmente pela experimentação em biologia animal, pelas relações entre o ser vivo e seu meio e entre máquina e organismo. De acordo com Durozoi & Roussel (1996), as principais obras de Canguilhem foram: O normal e o patológico (1943); O conhecimento da vida (1952); A formação do conceito de reflexo nos séculos XVII e XVIII (1955); Estudos de história e filosofia das ciências (1968); Ideologia e racionalidade na história das ciências da vida (1977).
Sua tese de doutorado em Medicina sob o título “O Normal e o Patológico” se divide em duas partes: a primeira intitulada “Seria o estado patológico apenas uma modificação quantitativa do estado normal?” e a segunda “Existem ciências do Normal e do Patológico?”.
A leitura desta obra, desde a introdução, nos leva a perceber a complexidade conceitual do assunto, pois o autor começa por nos advertir que, embora não se confundam, nem se valorizem igualmente doença e saúde como iguais, o modo cultural de compreendê-las diverge profundamente. A doença pode ser vista como algo externo ao equilíbrio normal do organismo, algo que entra e sai dele, ou, ao contrário, como uma reação global e salutar de defesa e até de sua adaptação a certas condições novas e diferentes. Assim, percebem-se as dificuldades de diferenciação e entendimento do normal e do patológico (BARROS, 1998).
APRESENTANDO ALGUMAS IDÉIAS
As dificuldades que se enfrenta para viver nos tempos atuais em função das mudanças como concentração das pessoas nos centros 4 6 BONETTI, A. O ser doente: uma relfexão à luz de Georges Canguilhem urbanos; degeneração do meio ambiente; precariedade do atendimento em postos de saúde e outras questões desse gênero, têm contribuído para mudar os conceitos de qualidade de vida, de estilo de vida, de saúde e de doença.
As definições de doença atribuídas por médicos e filósofos apresentam divergências e, muitas vezes, são incompatíveis com estilos de vida e definições individuais dos seres humanos. A caracterização da doença tem se mostrado de muitos modos, ora como indesejável para as pessoas, ora como passível de tratamento (HEGENBERG, 1998).
Assim sendo, é complexo definir se uma pessoa tem saúde ou é doente, dada a falta de parâmetros comparativos. Muitos estudiosos fazem uma relação com “normal” e “anormal”. Mas o que considerar como “normal ou anormal”?
O termo normal está ligado à norma, regra. Buscando um sentido mais preciso, Canguilhem (2000) recorre ao Vocabulaire Thecnique et Critique de la Philosophie, de Lalande, e faz a seguinte discussão: norma designa o enquadramento, o que não está à direita ou à esquerda, o que está no meio, ou central. Deste modo, é normal aquilo que é de conformidade. Mas, há também um sentido usual, comum, que se refere à maioria dos casos em uma determinada espécie. Nota-se aqui um duplo sentido: o primeiro refere-se ao que deve ser, já o segundo designa o mais freqüente em torno da média ou de modelo mensurável. “A norma é aquilo que fixa norma a partir de uma decisão normativa”(CANGUILHEM, 2000, p. 95).
Geralmente, o termo normal pode receber estatísticas quando tomamos como exemplo altura, peso, pulso e metabolismo basal. Estas características têm uma base estatística e são consideradas, em termos de médias, a que se associam certos intervalos de tolerância, caracterizadores, por sua vez, de variação normal. Percebe-se que estes valores são obtidos em função de avaliações de pessoas sadias – não em função de avaliações simultâneas e comparativas de doentes e sadias. Resulta, pois, que, muitas informações se tornam “viciadas” ou “tendenciosas”, mesmo sendo amostras aleatórias. Fica prejudicada em vista disso, a idéia de aplicar a estatística às noções de normalidade (para fins de análise do conceito de saúde) (HEGENBERG, 1998).
Na Medicina existe uma confusão análoga em que este estado “normal designa ao mesmo tempo o estado habitual dos orgãos e seu estado ideal, já que o restabelecimento desse estado habitual é o objeto usual da terapêutica” (CANGUILHEM, 2000, p.66).
O autor questiona se este estado deve ser considerado normal porque é compreendido como objetivo da terapêutica ou, pelo contrário, será que a terapêutica o considera justamente porque ele é tido como normal pelo doente? Canguilhem confirma que a segunda relação é verdadeira, pois entende que a Medicina existe como arte da vida porque o ser humano considera como patológicos certos estados ou comportamentos que, em relação à polaridade dinâmica da vida, são apreendidos sob forma de valores negativos. Portanto, o ser humano prolonga de modo mais ou menos consciente, um efeito espontâneo, para vencer obstáculos ao seu desenvolvimento e à manutenção da vida compreendida como “normal”. O sujeito imagina o que é não estar doente e age na concretização deste imaginário. Para ser normal tem que se levar em conta o conceito de equilíbrio e adaptabilidade, e necessário considerar o meio externo e o trabalho que o organismo ou suas partes devem efetuar.
A vida, enfatiza Canguilhem, é uma atividade normativa uma vez que é dependente das condições nas quais está inserida. Normativo é qualquer julgamento que determina uma norma, sendo esta subordinada ao homem, que a institui.
Nesta polaridade dinâmica da vida e da normatividade que a traduz, Canguilhem (2000, p. 188) cita a concepção patológica de Bichat:
há duas coisas nos fenômenos da vida: 1º: o estado de saúde; 2º: o estado de doença; daí duas ciências distintas, a fisiologia, que trata dos fenômenos da saúde, e a patologia, que tem como objeto os fenômenos da doença. O estado fisiológico identifica-se com o estado são, mais ainda que com o estado normal. É o estado que pode admitir uma mudança para novas normas. O homem é são, na medida em que é normativo em relação às flutuações do meio [...] O estado patológico expressa a redução das normas de vida toleradas pelo ser vivo, a precariedade do normal estabelecido pela doença.
Analisando com precisão as propriedades dos corpos vivos, é possível mostrar que todo fenômeno biológico se relaciona, em última análise, a estas propriedades consideradas no seu estado natural; todo fenômeno patológico deriva de seu aumento, sua diminuição ou de sua alteração e todo fenômeno terapêutico tem por princípio seu retorno ao tipo natural de onde elas escaparam. A doença tem início sempre em um tecido, mas um tecido doente pode comunicar o fenômeno patológico a um tecido vizinho ou pode respeitar aqueles subjacentes. Um mesmo órgão pode ter tecidos afetados por várias doenças, e ainda um tecido pode, por mecanismos simpáticos, afetar algum órgão distante, provocando outros sintomas. Além disso, uma infecção crônica que compromete vários tecidos não é outra coisa senão um momento da doença iniciada há algum tempo, necessariamente em um único tecido.
Deste modo, os sintomas dependem da natureza do tecido e da função alterada, de que depende também a duração da doença e da cura. Logo, a doença apresenta-se como desvios ou anomalias que se instalam no interior da vida (NOVAES, 1976).
Com referência à anomalia, Canguilhem (2000, p. 101-102), baseado no Vacabulaire Philosophique de Lalande, ressalta uma importante distinção: anomalia é um substantivo ao qual, atualmente, não corresponde adjetivo algum e, inversamente, anormal é um adjetivo sem substantivo de modo que o uso os associou, fazendo de anormal o adjetivo de anomalia. Anomalia origina do grego omalos que significa uniforme, regular, liso; an significa não, portanto anomalos é desigual, irregular e rugoso.
Etimologicamente houve engano do termo anomalia derivando-o não de omalos, mas de nomos que significa lei, segundo a composição a-nomos. Este erro etimológico se encontra precisamente do Dicionário de Medicina de Littré e Robin. Observa-se que o nomos grego é uma forma próxima de norma em Latim, compreende-se bem a possibilidade da aproximação entre anomalia e anormal, e é a colusão dos termos que faz de anormal usualmente uma noção descritiva enquanto anomalia passa a conotar um julgamento, um conceito normativo. Anormal, enquanto a-normal, é posterior a definição de normal, é a negação lógica deste conceito. Ser anormal consiste em se afastar, por sua própria organização, da grande maioria dos seres aos quais se deve ser comparado. Para a Medicina historicamente, doença, patologia e anormalidade passam a conotar a concepção de um único estado, enquanto que, por oposição, normalidade significa saúde.
O autor enfatiza que as anomalias não são os desvios estatísticos, mas sim um tipo normativo de vida. Quando a anomalia é interpretada em relação aos seus efeitos sobre a atividade do indivíduo e, portanto, à imagem que ele tem de seu valor e de seu destino, a anomalia é enfermidade. Mas nem toda anomalia é patológica, ou seja, a anomalia pode transformar-se em doença, mas não é, por si mesma, uma doença.
Nesse sentido, há a percepção da dificuldade de determinar em que momento a anomalia passa a ser doença (CANGUILHEM, 2000).
Exemplificando, a quinta vértebra pode estar soldada ao sacro, fenômeno denominado sacralização, sendo uma anomalia anatômica congênita, porém não necessariamente uma doença. Se, em algum momento da vida, ocorrer dores em função desse fenômeno, caracterizar-se-á uma doença.
Canguilhem enfatiza que é complexo distinguir anomalia de estado patológico e, no entanto, “é bastante importante do ponto de vista biológico, pois afinal ele nos remete a nada menos que ao problema geral da variabilidade dos organismos, da significação e do alcance dessa variabilidade” (p.110).
O autor se utiliza do conceito de I. Geoffroy Saint-Hilaire para definir anomalia, em geral do ponto de vista morfológico, relacionando com dois fatos biológicos que são o tipo específico e a variação individual. O tipo específico é caracterizado pelo “conjunto de traços comuns que existe na grande maioria dos indivíduos que compõem uma espécie” (p.102). Quando este apresenta um desvio desse tipo específico para sua idade e seu sexo, constitui o que se pode chamar de anomalia, sendo esta concepção um desvio estatístico. A variação individual é caracterizada quando dois seres são impedidos de se substituir um ao outro de modo completo e um destes é acometido de uma patologia, pois ele se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe.
Os fenômenos patológicos fazem com que o indivíduo modifique sua estrutura, há uma transformação da personalidade. Estas transformações não se fazem presentes num indivíduo considerado normal, sob a mesma forma e nas mesmas condições. Este vive em condições privilegiadas, respondendo melhor às exigências do seu ambiente, vive em harmonia com seu meio.
Para o autor, o ser normal não tem a mesma característica determinativa que todos os indivíduos da mesma espécie e sim a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com condições individuais. Isto leva a pensar que o conceito de doença e de saúde varia de pessoa para pessoa. O que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições, pode se tornar patológico em outras situações, se permanecer inalterado. A pessoa é que pode avaliar essa mudança, pois é ela que sofre as conseqüências desta transformação, no momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas impostas por esta nova situação, ao contrário do normal, que vive num meio em que as novas situações e novos acontecimentos são possíveis.
O anormal não caracteriza o patológico. Segundo Canguilhem, “patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”(p. 106).
Os sintomas patológicos influenciam o equilíbrio, a harmonia das relações, que correspondem à norma, que são transformadas pelo organismo, levando em consideração que muitas coisas que eram normais para o organismo, não o serem mais para o organismo modificado. O ser doente se percebe em um novo meio, mais limitado, com novas normas de vida por uma redução do nível de sua atividade. “O doente é doente por só admitir uma norma. O doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo” (p.148).
Ser doente é, realmente, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido biológico da palavra. O ser doente é aquele que apresenta inquietação, aflição como, também, sofre alterações funcionais que lhe provoca um mal; a pessoa sente os efeitos dessas alterações que, em geral, se põem em forma de certos impedimentos ou reduzindo uma habilidade ou capacidade funcional, provocando no ser doente uma forma diferente de ser. Portanto, o ser doente imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiência passada (HEGENBERG, 1998). Voltar a ser normal para este ser, significa retornar uma atividade interrompida, ou pelo menos, uma atividade considerada equivalente, segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio. “Mesmo que essa atividade seja uma atividade reduzida, mesmo que os comportamentos possíveis sejam menos variáveis possíveis, menos flexíveis do que era antes, o indivíduo não dá tanta importância assim a esses detalhes. O essencial, para ele, é sair de um abismo de impotência ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente” (CANGUILHEM, 2000, p. 91).
CONSIDERANDO O SER DOENTE
A doença não é uma variação da dimensão da saúde;
ela é uma nova dimensão da vida.
(Canguilhem, 2000, p. 149)
A compreensão do SER DOENTE percebida por muitos dos profissionais do campo da ciência médica centra-se numa dimensão anatomofisiológica, não levando em consideração as subjetividades dos indivíduos. Esta concepção limita-se a analisar a funcionalidade dos órgãos, a normatividade, a estatística. A ciência médica, nesse caso, prioriza o aspecto quantitativo, e a doença é sua principal preocupação e não o doente.
Estar doente, vulgarmente, pode significar ser nocivo ou indesejável, ou socialmente desvalorizado [...] O que é desejável é a vida, uma vida longa, a experimentação de sensações agradáveis, a capacidade de relacionar-se, a possibilidade de trocar vivências e afetos, a capacidade de reprodução, a capacidade de trabalho físico e mental, a força física e energética, a ausência de dor, um estado no qual o corpo sente o mínimo de desconforto e percebe a agradável sensação de “ser no mundo” (CANGUILHEM, 2000).
Essa vida desejável independe do tempo de existência de um ser, e este poderá vivenciá-la em todo o “seu estar no mundo”. Todavia, um ser poderá iniciar sua trajetória nesse mundo, experimentando sensações desagradáveis como a dor que, por falta de parâmetros e por hábito, poderá ser compreendida como norma em sua vivência. A dor é um sintoma subjetivo e que poderá ou não ser conseqüência de uma doença, podendo fazer parte de fenômenos biológicos normais como o parto e, em contrapartida, estados de doença poderão existir sem a sensação de dor, como fases iniciais do câncer.
A ciência médica não leva em consideração os conceitos “vulgares” e “negativos” do ser doente, mas preocupam-se em determinar quais são os fenômenos vitais relatados pelas pessoas que se dizem doentes, quais são as origens desses fenômenos, as regras da sua evolução e as ações que os modificam, com a finalidade de resgatar a saúde. O agente de saúde preocupa-se em diagnosticar a doença e encontrar um procedimento para sua cura, isto é, fazer o organismo voltar à norma ou a uma função que dela tenha se afastado temporariamente. E esta norma geralmente é tirada do seu conhecimento da fisiologia, que se apresenta como constante em relação às funções normais de todos os órgãos vitais (CANGUILHEM, 2000).
Os profissionais de saúde analisam e avaliam o interior do corpo e suas estruturas e microestruturas. Utilizando-se de um conjunto de técnicas e de conhecimentos científicos, a ciência médica produz uma “ação transformadora sobre determinados objetos – o corpo, o meio físico” (SILVA, 2001, p. 20).
Esse objeto – o corpo – ao qual se dirige o ato terapêutico pode ser pensado em decorrência de sua formalização ao nível da ciência biológica: Primeiramente como uma estrutura anatomofisiológica suscetível, em sua generalidade, de uma manipulação orientada para princípios regulares e repetitivos de interferência técnica. É a esse corpo anatomofisiológico, conjunto de constantes e estruturais e funcionais, que a medicina se propõe fundamentalmente dirigir. Mas ao tomá-lo como objeto de sua prática ela não se dirige precipuamente para o desvendamento das regularidades elaboradas ao nível da ciência biológica, e sim para a obtenção de efeitos específicos, orientados por uma concepção do que é normal ou patológico para o corpo. (DANNANGELO, apud SILVA, 2001, p. 20)
O ser doente, porém, não é considerado como um todo pelos profissionais da área de saúde, limitando-se, assim, à terapêutica, aos elementos ou segmentos que apresentam resultados de anormalidade ou patológicos, após serem avaliados através de observações fragmentadas e do aferimento das normas funcionais do ser vivo em laboratórios. Estas normas funcionais do ser vivo examinado no laboratório direcionam normas operacionais por parte do cientista. Segundo SILVA (2001, p. 20),
esses procedimentos ou técnicas analisam e avaliam sintomas de órgãos isolados do corpo, reduzindo ou eliminando as subjetividades e ampliando os espaços das objetividades dos exames laboratoriais, radiológicos, cintilográficos, dentre outros. Apenas através de técnicas objetivas é dado ao corpo se manifestar esquecendo-se que este possui uma natureza histórica constituída no interior de sua existência social concreta, toma-o como um objeto homogêneo e perde de vista a possibilidade da cura proveniente de sua permanente elaboração e reelaboração no mundo.
O modo como o corpo é conhecido dentro da área médica prioriza a forma quantitativa, utilizando-se de parâmetros biológicos para analisar e desconsiderar as subjetividades humanas e as diferenças étnicas e culturais.
O corpo em questão é sempre aquele da identidade biológica da espécie humana; como tal reforça a necessidade de redução da qualidade à quantidade, tanto no que se refere às diferenças entre grupos culturais, gêneros, personalidades, níveis de treinamento, como no que se refere à compreensão dos estados de saúde e de doença. (SILVA, 2001, p.35)
Esta compreensão de corpo percebida pela ciência médica também é percebida em outras áreas de conhecimento, como por exemplo a Educação Física. A predominância biológica e suas conseqüências tem influenciado na Educação Física, tanto no seu conceito quanto na sua prática. Nesta, o ser humano considerado “normal” é aquele que apresenta um “padrão corporal” apto a desempenhar os “movimentos corporais”, objeto de estudo desta área de conhecimento, objetivando melhorar a habilidade, a performance ou a aptidão física e promovendo, assim, uma “melhor saúde”.
Esses movimentos corporais (exercícios) são baseados nos princípios da fisiologia-anatomia-biologia e procuram promover alterações no organismo. Essas alterações, que podem ocorrer no organismo, são aferidas através de tabelas ou médias já existentes, utilizando-se das mesmas técnicas “normativas” de mensuração para todos os indivíduos, não levando em consideração as suas subjetividades.
Os movimentos, geralmente, são realizados desprovidos de qualquer intencionalidade, são exercícios físicos “mecânicos”, repetidos.
Estes movimentos levam a um empobrecimento das características humanas, entendendo o corpo, unicamente, como um conjunto biológico de ossos, músculos, articulações, nervos e células. Quando o ser humano é percebido sob a ótica biologicista, ele é comparado a “uma máquina, um motor que depende dos ajustes funcionais e do combustível. O ser humano funciona dentro de leis e princípios mecânicos” (KUNZ, 1994, p. 81).
O que aparece então é a coordenação motora, as performances e os rendimentos desprovidos de qualquer intencionalidade ou significado. O movimento humano não é entendido como uma ação vinculada a uma determinada situação e relacionada a um significado. Nessa perspectiva, é preciso considerar a totalidade do ser humano, já que o movimento é mais do que o resultado da atuação de forças fisiológicas ou anatômicas.
É o homem como um todo que se movimenta, o homem como um ser que pensa, sente e age, “existindo em um mundo com o qual interage dialeticamente” (GONÇALVES, 1994, p. 31).
Não se pode analisar o ser humano unicamente sob sua natureza biológica, pois suas ações, expressões e movimentos estão diretamente vinculados aos padrões culturais que adquirem ao longo de sua vida e também à identidade/história de vida pessoal.
Além do aspecto biológico que o corpo possui e que deve ser digno de estudo pela área, importa também o caráter cultural expresso pelo corpo e que identifica o homem no seio de uma dada sociedade.
Percebemos que o corpo expressa valores e princípios fundantes de cada sociedade. Qualquer atuação realizada sobre o corpo deve considerar e respeitar esses princípios, sob o risco de se tornar uma atividade descontextualizada para o grupo, ou de se constituir numa intervenção autoritária que ignore os interesses do público a que se destina. Portanto, atuar no corpo implica atuar sobre valores, crenças, normas e princípios da sociedade na qual este corpo está inserido. Não considerar isto culmina em reduzir o alcance de qualquer prática, seja ela educativa, recreativa, reabilitadora ou expressiva. (DAOLIO, 2001, p.32)
Assim sendo, perceber, observar e analisar o corpo através de tabelas ou médias, definir o que é ser normal ou patológico, entre o ser doente e o ser saudável, considerando apenas a dimensão orgânica e desconsiderando a dimensão cultural, é reduzi-lo apenas à uma dada visão.
CANGUILHEM (2000, p. 144) enfatiza que
Uma média obtida estatisticamente, não permite dizer se determinado indivíduo, presente diante de nós, é normal ou não. Não podemos partir dessa média para cumprir nosso dever médico com o indivíduo. Tratando-se de uma norma supra-individual é impossível determinar o “ser doente”.
Neste sentido, percebe-se a dificuldade de avaliar e interpretar o ser doente, decorrente de vários fatores como a idade e as crises naturais da idade adulta ou a dos jovens; culturais; sexuais; afetivos; sócioeconômicos, e, além disso, se move no tempo. Não há um doente efetivo, mas um processo em andamento e um “tempo doente vivido pelo ser”, com possibilidades de resultados positivos na busca de ser saudável.
O ser doente não é um ser anormal, é um ser que vivencia uma doença e que tem várias possibilidades de restabelecimento do ser saudável, porém deverá encontrar para isso, o melhor caminho para compreensão de seu estado temporário para atingir novas dimensões de vida.
Ser doente é, realmente, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido biológico da palavra. (p.64)
ILL BEINGS: a reflexion based on Georges Canguilhem
ABSTRACT
This text reflects upon ill human beings, relating the topic to some of the principles that guide physical education practice in current times. It briefly covers the understanding of the body held by medical science, as well other areas of knowledge, like physical education.
KEY-WORDS: ill beings -health -physical education.
EL SER ENFERMO: una reflexión a la luz de GEORGES CANGUILHEM
RESUMEN
El texto presenta una reflexión sobre el SER ENFERMO relacionandolo con algunos principios que orientan la práctica de la Educación Física en los días de hoy. Hace un breve abordaje sobre la comprensión de cuerpo percebido por la ciencia médica como, también, este es percibido en otras áreas del conocimiento como, por ejemplo, la Educación Física.
PALABRAS CLAVES: Ser enfermo - Salud - Educación Física
NOTAS
* Artigo apresentado à Disciplina Filosofia da Ciência e da Saúde, do Curso de Doutorado em Filosofia da Enfermagem/UFSC. ** Doutoranda no Curso em Filosofia de Enfermagem do Centro de Ciências da Saúde da UFSC, professora do Curso de Graduação em Educação Física da UFSC, membro do Núcleo Pedagógico em Educação Física/NEPEF.
REFERÊNCIAS
BARROS, B. F. Normalidade e patologia, dois juízos do real. In. Caderno de Saúde. Disponível em: <http://www.google.com.br>. Acesso em: 15 jul. 2003.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 (Campo Teórico).
DAOLIO, J. AAntropologia social e a Educação Física: possibilidades de encontro. In: CARVALHO, Y. M.; RÚBIO, K. (Org.). Educação Física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001.
DUROZOI, G.; ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1996.
GONÇALVES, M. A. S. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. Campinas, SP: Papirus (Coleção corpo e motricidade).
HEGENBERG, L. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
KUNZ, E. Transformação didática pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1994.
NOVAES, R. A saúde e os conceitos. São Paulo: USP, 1976 (Dissertação de Mestrado).
SILVA, A. M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas, SP: Autores Associados; Florianópolis: UFSC, 2001 (Coleção Educação Física e Esportes).
Recebido: novembro de 2003
Aprovado: dezembro de 2003
Endereço para correspondência:
Albertina Bonetti Artista Bittencourt, 160/304 Florianópolis – SC CEP: 88020-060