UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA PERSPECTIVA DO FORMAR-SE PROFESSOR
Zenólia Christina Figueiredo*
RESUMO
Este estudo apresenta uma reflexão acerca do conhecimento pessoal e do conhecimento prático na formação do professor e analisa os pressupostos teóricos e a organização do currículo de um curso de formação de professores de Educação Física, indicadores da perspectiva do formar-se professor. Discorre sobre a apropriação de uma noção de currículo como prática; analisa como foi pensada a objetivação dessa noção no âmbito do currículo do curso; evidencia o entendimento sobre uma formação que entende o professor como sujeito ativo de suas práticas, bem como as possibilidades curriculares pensadas para trabalhar esse entendimento e o sentimento de formar-se professor; fala e compreende algumas práticas curriculares de formação vividas e observadas por uma professora do curso.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo de formação de professores. Formar-se. Educação Física.
INTRODUÇÃO
Em outra ocasião, publicamos um artigo na Pensar a Prática, apresentando a fundamentação teórica e a matriz de um currículo de formação de professores de Educação Física, implementado em 2006. Agora, desenvolvemos algumas análises, com vistas ao aprofundamento de ideias e noções de currículo e de formação apropriadas.
Faz sentido focar o conhecimento pessoal e o conhecimento prático1 na formação do professor (de Educação Física)2? Essa é a questão central deste artigo, que pretende refletir sobre os pressupostos norteadores e sobre a organização do mesmo currículo de formação de professores.
Muitas investigações sobre os professores, sua formação e atividade docente foram produzidas nos últimos tempos na educação e no campo da Educação Física. Em pesquisas mais recentes, notamos uma significativa produção que focaliza o professor como sujeito de sua própria prática pedagógica, de suas estórias, de experiências e sujeito em formação. Se, por um lado, esse deslocamento de estudos para a pessoa e para a prática do professor traz contributos inquestionáveis ao campo da profissão, por outro lado, é visível, um certo distanciamento entre os achados desses estudos e os cursos de formação, materializados pelos currículos praticados em algumas Instituições de Ensino Superior (IES). Enquanto esses estudos indicam possibilidades de se pensar e vivenciar a formação como espaço de reconstrução das identidades pessoais e sociais dos professores, os currículos dos cursos de formação de professores ainda são utilitários e normativos.
Não é demais lembrar que a maioria desses estudiosos é, também, professor e/ou coordenador de curso. Denunciam um tipo de formação em suas investigações, mas, por diversos motivos, não conseguem modificar os cursos em que atuam. Por hipótese, inspirada pelas ideias de Beyer e Apple (1998 apud PARASKEVA, 2008), sobre as significações dos discursos que preenchem o texto curricular, citamos algumas dimensões que podem estar subjacentes aos motivos: de natureza epistemológica (o que conta como conhecimento para o grupo de professores que atua no curso); de natureza política (quem, hegemonicamente, trabalha com a formação de professores na essência); de natureza ideológica (quais conhecimentos curriculares são mais valiosos para os professores formadores); de natureza técnica (como fazer chegar o conhecimento até o aluno em formação); de natureza histórica (quais tradições no campo da formação influenciam um determinado tipo de currículo) e poderíamos incluir, de natureza pessoal (vontade de ousar e de romper com uma noção tradicional de currículo e de formação).
Essa última dimensão esteve bastante presente na construção de um outro texto curricular para o curso de formação de professores de Educação Física: a vontade, menos pessoal e mais coletiva, de ousar, de tentar fazer diferente e fazer a diferença no processo de formação, mesmo considerando os riscos das contradições inevitáveis das fases de desenvolvimento de um currículo; da politização exacerbada por parte de quem não acredita em novas possibilidades de conceber a Educação Física e sua formação; das múltiplas resistências de alguns professores formadores; dos conflitos entre as expectativas, representações e experiências sociocorporais que os alunos trazem consigo para dentro do curso
Em síntese, a intenção foi dar partida a uma reconceptualização dos modelos de formação de professores da área e deslocar o sentido atribuído ao professor como teoria para o professor como pessoa e para o professor como prática. Fazer com que o desenvolvimento do currículo do curso expressasse outros sentidos e significados sobre o próprio processo de formação, sobre o que é ser professor, sobre o que é ser professor de Educação Física.
Refletimos sobre a apropriação de uma noção de currículo como prática e observamos como essa tem sido objetivada no âmbito do currículo do curso; evidenciamos o entendimento sobre uma formação que compreende o professor sujeito ativo de suas práticas, bem como as possibilidades curriculares, tempos e espaços, pensados para trabalhar esse entendimento e o sentimento de formar-se professor; e falamos de algumas práticas curriculares de formação potencializadas pelos eixos temáticos no desenvolvimento do currículo.
SOBRE A NOÇÃO DE CURRÍCULO DE UM CURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Ao nível da conceptualização, foi entendimento comum que seria mobilizado um currículo substancialmente diferente do que tem predominado nos diferentes cursos de formação de professores (de Educação Física), na contramão das teorias de currículo que veiculam e expressam um modelo racional de abordar e de compreender os conhecimentos organizados por meio das áreas disciplinares.
A noção de currículo que norteia o texto curricular do curso é mais ampliada e crítica, o currículo é uma prática, expressão, da função socializadora e cultural da instituição (SACRISTÁN, 2000). Essa noção indica duas ideias importantes: uma, de que o conceito de currículo está relacionado com enfoques paradigmáticos diferentes, e outra, de que esses enfoques têm uma relação estreita com o contexto de produção do currículo. Visto assim, o currículo não deve ser reduzido à aparente separação entre o escrito e o vivido, mas do prescrito ao vivido e avaliado, considerando todas as complexidades que envolvem o desenvolvimento curricular.
A objetivação dessa noção de currículo no currículo de formação de professores
Como trabalhar com essa noção de desenvolvimento curricular em um currículo de formação de professores de Educação Física? Foi necessário visualizar uma outra possibilidade de organização dos conhecimentos na matriz curricular do curso, tendo certo que não cabia a seleção de disciplinas isoladas, fragmentadas e em “caixinhas”, cujas críticas feitas pelos estudiosos do campo do currículo são inúmeras; e, também, foi necessário e trabalhoso pensar em eixos que dessem conta de orientar as seleções de conhecimentos.
Tentou-se criar condições, por dentro do currículo, que favorecessem aos alunos articular conhecimentos acadêmicos com a sensibilização, significada por uma consciência reflexiva necessária ao formar-se professor, por isso o insistente pressuposto de busca por atitudes dialógicas por parte dos sujeitos envolvidos nesse processo de formação.
Esse currículo foi pensado para se desenvolver a partir da articulação entre várias unidades curriculares: disciplinas curriculares; seminários de estudo, seminários articuladores, oficinas, e atividades interativas de formação (Curso de Licenciatura em Educação Física, 2005).
Resumidamente, as disciplinas curriculares são obrigatórias e trabalham com os conhecimentos da formação comum e os conhecimentos da área. Seminários de Estudos é a unidade curricular optativa, de caráter permanente ou esporádico, que formaliza o tempo oficialmente dedicado ao estudo de uma determinada temática, extraída ou derivada das discussões feitas nas disciplinas curriculares obrigatórias, estudos desenvolvidos nos laboratórios ou grupos de estudos ou às oficinas. Os Seminários Articuladores de Conhecimentos compreendem uma unidade curricular obrigatória que pretende oficializar um tempo de reflexão coletiva com os acadêmicos de cada turma, em cada período. Têm a finalidade de articular os saberes mobilizados nas respectivas atividades curriculares obrigatórias, bem como promover atividades coletivas e interativas entre licenciandos e formadores. As Oficinas são optativas e tentam garantir o tempo institucional de vivência e ensino de práticas corporais que constituem objetos de ensino específicos da área. As Atividades Interativas de Formação também são optativas e formalizam o tempo institucional para o desenvolvimento de atividades complementares que potencializem o conhecimento construído na e pela experiência de aprender a ser professor.
Apesar dos problemas3 vividos pelos professores formadores e em formação, na objetivação dos seminários, a cada semestre do curso, é possível perceber, por exemplo, que, para além do significado explícito de articular conhecimentos, os Seminários Articuladores de Conhecimento potencializam: a) pensar a diferença e a diversidade de experiências de formação dos sujeitos formadores e em formação ao longo do curso; b) refletir as ações e relações construídas por esses sujeitos no processo de formação; c) compreender a formação e a profissão como lugares complexos e abertos a múltiplas intervenções para a mudança; d) reconstruir as experiências da vida escolar, as relações com os conhecimentos anteriores e as percepções das próprias práticas de futuro professor; e) construir e reconhecer a importância da prática do registro da narrativa escrita (por meio dos portfólios) na vida do professor; f) socializar narrativas escritas e orais com os colegas em situação de formação (nos encontros semanais); g) ver-se como sujeito ativo do processo de formação e criar uma nova cultura de formação de professores de Educação Física.
Cada uma dessas unidades obrigatórias ou optativas pode mobilizar múltiplos conhecimentos, organizados por eixos temáticos, com a intenção de “forçar” um trabalho articulado entre elas e oferecer aos alunos uma compreensão menos fragmentada daqueles conhecimentos.
SOBRE A FORMAÇÃO NA PERSPECTIVA DO FORMAR-SE PROFESSOR
É mais precisamente na ideia “Formar é sempre formar-se4 ” que se inscreve a concepção de formação que norteia o texto curricular do curso: o professor como sujeito de suas próprias práticas (Curso de Licenciatura em Educação Física, 2005). Com o currículo em desenvolvimento, a crença no professor como sujeito e a crença de que não se deve esperar que o professor em formação termine o curso para se perceber como sujeito parecem se concretizar.
Nessa perspectiva, situada, teoricamente, na abordagem biográfica da formação do sujeito, formar-se é integrar o saber-fazer e os conhecimentos, é articular significação, técnicas e valores num processo que favorece a cada pessoa a oportunidade de autoconhecer-se, é um processo experiencial de formar-se com consciência reflexiva da sua formação (JOSSO, 2002).
Como se pode ver, a formação de professores, concebida a partir desse referencial, não tem relação com abordagens racionalistas voltadas ao processo de ensino de conteúdos desconectados e aos produtos da aprendizagem, ou com as melhores formas de ensinar, de preparar e de adequar melhor o professor para ensinar. Tem correlação estreita com o pessoal e com a prática. Ao contrário do que se possa pensar, ambos construídos do ponto de vista político e social e não do ponto de vista do indivíduo autônomo. Isso não somente por considerar o contexto social em que vive o sujeito, mas por acreditar que, na atual conjuntura, resta, ainda, uma expectativa de que é possível investir na formação qualificada de professores comprometidos com a sua intervenção e com a formação humana das centenas de alunos que passarão por suas vidas ao longo da carreira profissional.
A PERSPECTIVA DO FORMAR-SE PROFESSOR NO DESENVOLVIMENTO DE UM CURRÍCULO DE FORMAÇÃO
Nesse tópico, salientamos algumas práticas curriculares construídas e em construção no decorrer desses últimos três anos de uma experiência5 formadora e partimos das evidências empíricas apreendidas como professora6 formadora, para chegar a outras evidências percebidas quando ocupávamos o lugar de coordenadora7 do curso.
O currículo-texto e as práticas de formação potencializadas pelos eixos temáticos
Não poderia ser diferente: iniciamos pela disciplina obrigatória Educação Física, Formação Docente e Currículo. Ela se insere na formação comum, eixo de conhecimento pedagógico, em interface com a disciplina Didática. Trata das teorizações do campo do currículo e do campo da formação docente, compreensão do currículo em ação e elementos constitutivos dessa ação nas aulas de Educação Física e das especificidades da profissão professor e sobre o professor como sujeito de sua prática pedagógica.
Nos anos em que lecionamos referida disciplina, utilizamos a estratégia de selecionar e articular textos acadêmicos e literários, documentários, matérias de jornal, poesias, que estimulassem reflexões, análises e críticas de temáticas relacionadas com a formação e com a prática profissional. Essa simples prática de utilizar um ponto de partida instigante aos professores em formação parece ir ao encontro da perspectiva do formar-se idealizada pelo currículo-texto do curso, ao contrário do que, no geral, tem sido utilizado nos cursos de formação: textos fragmentados, restritos e pouco instigantes.
Nos anos em que lecionamos referida disciplina, utilizamos a estratégia de selecionar e articular textos acadêmicos e literários, documentários, matérias de jornal, poesias, que estimulassem reflexões, análises e críticas de temáticas relacionadas com a formação e com a prática profissional. Essa simples prática de utilizar um ponto de partida instigante aos professores em formação parece ir ao encontro da perspectiva do formar-se idealizada pelo currículo-texto do curso, ao contrário do que, no geral, tem sido utilizado nos cursos de formação: textos fragmentados, restritos e pouco instigantes.
Desses debates em diante, fomos construindo e articulando os conteúdos da disciplina entre ela própria e as demais disciplinas do período. Se houve envolvimento intenso por uma parte dos futuros professores nas discussões potencializadas pelo conteúdo e pela forma da disciplina, também houve, por parte de outros, omissões e até certo desprezo. Alguns não se envolveram com a mesma intensidade e vontade nesses trabalhos, sequer tiveram o trabalho de ler o texto solicitado e não se sensibilizaram. Nem por isso, desistimos de acreditar na perspectiva de que uma outra formação é possível, e de que nossa responsabilidade era intensificar ainda mais a intervenção com esses sujeitos aprendentes que, de certa maneira, resistiam ao processo de formação e esperavam encontrar uma “educação bancária” mais condizente com o processo de escolarização vivido anteriormente.
Uma outra experiência que merece ser contada foi nosso envolvimento com o Seminário Articulador de Conhecimentos, também obrigatório e constitutivo do Conhecimento da Área. Trabalhamos em duas turmas, sendo dois semestres consecutivos com uma turma e um semestre com outra. Buscamos, também, no âmbito desses seminários, desenvolver um trabalho reflexivo e utilizamos, como ponto de partida para as reflexões, matérias de jornal, documentos dos processos seletivos da instituição dos últimos anos, dinâmicas de interação, etc.
Atenta aos significados desses espaços para a formação docente, discutimos com os futuros professores sobre a entrada deles na Universidade, o significado pessoal dessa nova trajetória para as suas vidas e a representação que tinham de Educação Física desde o ensino fundamental. Intuitivamente, fizemos com que cada um pensasse e emitisse opiniões nos encontros e escrevesse/registrasse as ideias.
Foi um trabalho profícuo para alguns e sem sentido para outros. O sentimento de um “vazio disciplinar” e uma outra maneira de dar aula fizeram pensar em novas estratégias de trabalho; entretanto, em alguns encontros, as atitudes dos futuros professores se calaram, de não quererem puxar as histórias pela memória ou de não verem significado naquele espaço colocavam muito em dúvida a proposta do seminário. Essas dúvidas ou angústias nos fizeram buscar o diálogo com os demais professores e, de certa maneira, o conforto em poder compartilhar inseguranças. Algumas “saídas” foram construídas, sempre no sentido de efetivar práticas condizentes com o papel dos Seminários Articuladores no processo de formação de professores.
Nas reuniões convocadas pela coordenação do curso, nem sempre com a participação de todos os professores que atuavam nos Seminários Articuladores, pudemos pensar em várias possibilidades para desenvolver melhor o trabalho com as turmas. Em síntese, indicamos a perspectiva de trabalhar por temáticas: a) ser sujeito universitário como temática do 1º ano do curso; b) formação profissional como temática do 2º ano do curso; e c) prática docente como temática do 3º e 4º anos do curso. Essa orientação foi fundamental para tentar garantir uma certa coesão entre os seminários, além de buscar maior coerência no desenvolvimento do currículo-texto.
Uma terceira experiência por nós construída nesse currículo foi com a Oficina Iniciação ao Handebol. Foi uma das oficinas ofertadas no primeiro semestre do ano de 2008, integrante das 400 horas de Prática como Componente Curricular. No primeiro encontro da oficina tivemos a preocupação de deixar claro para os futuros professores matriculados que se tratava de um trabalho de iniciação, no qual iríamos construir a vivência e a reflexão condizente com a opção teórico-metodológica de um handebol/esporte coletivo, perpectivado como um dos temas da cultura corporal.
O objetivo da oficina era: aprender as especificidades da prática do handebol, conjugadas a conhecimentos mais amplos, incluindo o pedagógico/ensino-aprendizagem. Assim, o saber-fazer nessa disciplina deveria ser conjugado ao saber-ensinar. A estratégia metodológica escolhida foi analisada e aprovada pelos futuros professores.
Como nas demais unidades curriculares, tivemos inúmeros problemas. Às vezes, perdíamos de vista o objetivo de conjugar o saber-fazer ao saber-ensinar; em outros momentos, a vivência se fazia quase exclusivamente sem reflexão do objeto de ensino; e o trabalho com os alunos do projeto de extensão, por questões administrativas, aconteceu de maneira menos intencional do que havíamos previsto.
Do lugar de coordenadora sentimos, ouvimos, percebemos e registramos muitas estórias de professores formadores e em formação. Neste artigo, tomamos como referência: as conversas informais que tivemos com os professores formadores; os registros formais das reuniões de professores, convocadas pela coordenação do curso; a síntese dos pontos positivos e negativos do curso, indicados pelos futuros professores, nos encontros de autoavaliação, realizados no primeiro semestre do ano de 2008, em cada uma das nove turmas, considerando as últimas turmas do currículo versão 19918.
As informações obtidas com os professores formadores e em formação indicaram questões de dimensão operacional9 e de dimensão mais subjetiva e pessoal, que, de alguma maneira, estão relacionadas e influenciam na objetivação do currículo. Numa visão mais geral, há interpretações e práticas distantes da perspectiva de formação do curso; assim como interpretações e práticas instigantes e mais próximas.
O distanciamento parece estar ligado a uma outra concepção de formação e de Educação Física, diferente, epitemologicamente, das noções que orientam o currículo, respaldadas por um conjunto de tradições sedimentadas na área e que influenciam, sobremaneira, as práticas profissionais e acadêmicas dos professores, bem como as disputas e os conflitos contrários a uma determinada hegemonia conseguida em torno desse currículo. São práticas difíceis de se alterar, que constituem uma limitação a qualquer perspectiva de formação e de mudança curricular e se traduzem, no quotidiano de desenvolvimento do currículo de formação, em diferentes modos de resistências e omissões.
A proximidade parece estar ligada às interpretações e às práticas de professores que, apesar das dificuldades, tentam conjugar duas lógicas: ruptura e busca. Ruptura com aquelas tradições da profissão, da formação e de Educação Física construídas ao longo das suas experiências de vida, nas quais, quase sempre, as regras técnicas orientam a ação do sujeito; e busca por outras práticas de formação mais significativas, pautadas por uma compreensão e construção crítica de modos de aprender, de pensar, de sentir e de atuar profissionalmente. São práticas mais flexíveis que se traduzem no quotidiano e também em diferentes modos de refletir e de viver a formação.
Em uma visão mais específica, esses distanciamentos e proximidades manifestam-se por dentro do currículo de diferentes modos. Pensemos, por exemplo, nas dificuldades dos professores formadores em lidar com unidades curriculares diferenciadas e, ao mesmo tempo, nas dificuldades dos futuros professores em significar essas unidades no processo de formação profissional. É o caso dos Seminários Articuladores de Conhecimentos, dos Seminários de Estudos, das Atividades Interativas de Formação.
Os Seminários Articuladores de Conhecimentos, conforme exposto, foram idealizados como elemento central, mas tem sido, por vezes, interpretados como um “penduricalho” do currículo, ou seja, a unidade curricular que melhor expressaria essa outra maneira de ver e de pensar a formação passou a ser uma questão de ordem operacional e subjetiva.
Nesse sentido, o principal problema identificado pela coordenação do curso foi a rotatividade de professores. Esse, por sua vez, se relaciona com outros problemas indicados por parte dos professores que atuaram nos Seminários: a) a dificuldade em lidar com uma unidade curricular diferente daquela habitual, ligada a determinados conteúdos; b) os usos do espaço e tempo dos seminários para “lavação de roupa suja” ou “muro de lamentações” dos futuros professores; c) o estranhamento e descrédito nesse tipo de atividade formadora; d) a sobrecarga de leitura semanal de aproximadamente 35 “portfólios” como instrumento de avaliação; e) a falta de tempo para o diálogo e troca de experiências entre os professores.
Os futuros professores, por meio da autoavaliação, tiveram opiniões diversificadas. Destacaram como aspectos positivos: “O curso é bom pra quem quer ser professor.” “A visão interessante de Educação Física que o curso proporciona.” “O curso não é o que as pessoas pensam sobre o que fazem os professores de Educação Física.” “Disciplinas que dão a oportunidade de estar em contato com a pesquisa.” “Busca pela reflexão, auxiliando na prática.” “A preocupação que o curso tem com os alunos, essa oportunidade do aluno se expressar nos seminários articuladores, saber dos alunos as falhas que eles percebem no curso.” “O espaço do seminário articulador como um local de debate, um espaço para amadurecer as ideias, qualificando assim a formação.”
Em contraste com essas opiniões, enfatizaram como aspectos negativos: “Não quero ser professora. Entrei pensando que era outra coisa.” “O currículo dá muitos problemas e poucas soluções.” “Excesso de pedagogia.” “Falta de articulação entre as disciplinas.” “Contradição entre os professores (do que falam e do que eles fazem).” “Os professores substitutos não estarem em sintonia com o currículo.” “Professores com ideias muito antagônicas que acabam refletindo na formação de modo negativo.” “A reprovação nos seminários articuladores – o aluno sai perdendo.”
Essas sínteses expressam pelo menos três dimensões: o curso, o currículo e as contradições. A visão geral que os futuros professores têm do curso está ligada à representação de Educação Física e de professor, bem como às suas experiências sociocorporais. O curso é bom para quem tem uma identificação com o magistério, ao mesmo tempo em que favorece uma frustração para quem não tem essa mesma identificação. Assim, ser um curso claramente definido como formação de professores de educação física para atuar na educação básica é avaliado positivamente por quem tem ou permite construir identificações, mas é avaliado negativamente por quem não tem e não permite construir identificações.
Nesse caso, retomando a questão de partida do artigo, faz muito sentido focar o conhecimento pessoal e o conhecimento prático na formação do professor de Educação Física, assim como faz sentido articular conhecimentos acadêmicos com a sensibilização, significada por uma consciência reflexiva necessária ao formar-se professor.
As falas dos futuros professores, também sobre o currículo e sobre as contradições percebidas por eles no desenvolvimento curricular, parecem ter sido referendadas por essa identificação ou não com a perspectiva de formação e de Educação Física do curso. Alguns escolhem falar da relação positiva entre disciplinas, pesquisa e reflexão; outros, da falta de articulação entre elas e das contradições entre as ideias e as práticas dos professores formadores e a perspectiva do currículo de formação.
Registra-se, então, o que anteriormente identificamos como distanciamentos e aproximações com o currículo-texto, compreensíveis do ponto de vista de uma teoria de currículo, mas inaceitáveis do ponto de vista de uma formação coerente.
É curioso, também, não perceber um encontro de opiniões entre o que pensam os professores formadores e o que pensam os professores em formação, no que se refere aos Seminários Articuladores de Conhecimentos. Salvaguardando as diferenças entre o trabalho docente e o “ofício” de estar em formação, enquanto os primeiros expressaram um certo descontentamento com as atividades próprias dos seminários, os futuros professores expressaram uma satisfação. Por exemplo, até as resistências relacionadas com a obrigatoriedade dos registros escritos, chamados de portfólios, observadas nos primeiros períodos de desenvolvimento do currículo, não foram sequer mencionadas. Tendo em vista que cada um poderia citar um aspecto positivo e um aspecto negativo do curso, de preferência, sem repetir o que disse o anterior, era de se esperar que esse problema surgisse.
Finalmente, ainda sobre os pontos destacados, vale refletir se a opinião expressa que “o currículo dá muitos problemas e poucas soluções” é um aspecto negativo. O inverso dessa afirmação, de que o currículo dá muitas soluções e poucos problemas, não seria mais complicado? Afinal, nesse processo formativo, problemas são pressupostos fundamentais para o formar-se com consciência reflexiva da sua formação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS COMPLEMENTARES
As experiências pessoais narradas aqui servem menos como exemplo de como objetivamos as unidades curriculares na perspectiva de formação assumida, e mais como referência para partilhar limites e suscitar debate em torno do que cada professor do curso possa estar vivendo no seu trabalho. Talvez, sirvam de motivação para que esses professores contem suas próprias experiências na construção da docência universitária em um currículo de formação que, inevitavelmente, traz desafios.
Tentamos expor o nosso pensamento de maneira reflexiva, a partir do nosso próprio conhecimento pessoal e do conhecimento prático, articulados à sociologia do currículo e à abordagem biográfica da formação do sujeito. Se não fomos tão claras quanto gostaríamos, foi porque ainda há inseguranças ocasionadas pelo estágio embrionário desse tipo de estudo no âmbito da Educação Física. Trazemos essas reflexões para o nosso campo, no intuito de contribuir com o debate da formação e de abrir novos diálogos com os pares que se preocupam com a formação profissional.
Diríamos, por fim, que se pode viver esse currículo de formação “[…] como um processo, quer contestado, quer mutante, num permanente estado de ‘vir a ser’, de ‘ter sido’, de ‘nunca ter sido’ e de não ter sido exactamente, aquilo que se esperava que fosse” (PARASKEVA, 2008, p. 138). Implementado há apenas três anos, esse currículo, quer contestado, quer mutante, ainda precisa continuar a ser avaliado e vivido intensamente, seja para confirmar a perspectiva transformadora do formar-se, seja para repensar ou escolher outros rumos para a formação de professores ofertada pela instituição.
NOTAS
*Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil
1Não estamos ignorando o conhecimento teórico e conceitual e sua articulação com o conhecimento prático. Nosso objetivo é apenas focar mais sobre os conhecimentos pessoal e prático, por entender que ambos trazem à tona subjetividades que merecem ser discutidas no processo de formação docente.
2Utilizaremos Educação Física entre parênteses todas as vezes que considerarmos que a reflexão feita cabe, sem querer generalizar, também aos professores de outros componentes curriculares e não somente à especificidade de ser professor de Educação Física. Quando a reflexão expressar singularidades, os parênteses não serão utilizados.
3Discorreremos mais adiante sobre esses problemas.
4Antônio Nóvoa, no prefácio do livro Experiências de Vida e Formação (2002).
5Segundo Josso (2002, p. 28), essa experiência está ligada à aprendizagem experiencial em que “[...] aprender pela experiência é ser capaz de resolver problemas dos quais se pode ignorar que têm formulação e soluções teóricas.”
6Nos últimos três semestres trabalhamos com três unidades curriculares diferentes: disciplina obrigatória, seminário articulador e oficina. Enfocaremos aqui as experiências construídas nas três unidades, sendo, respectivamente: Educação Física, Formação Docente e Currículo; Seminário Articulador de Conhecimento, e Oficina de Iniciação ao Handebol.
7Falamos do último período em que fomos coordenadora do curso: 2006-2008. Anteriormente, ocupamos esse lugar por duas gestões no período de 2004 a 2006 e 1998 a 2000.
8A versão 1991 marcou, originalmente, a mudança curricular determinada pela Resolução n. 03/87. Essa versão passou por uma modificação em inícios dos anos 2000. O trabalho de autoavaliação foi desenvolvido pela coordenação do curso em colaboração de bolsistas do Programa de Educação Tutorial.
9Por certo, um problema operacional relevante foi o fato de a instituição, em 2006, contar somente com pouco mais de 15 professores efetivos, incluindo aqueles em licença, para dar conta da oferta de três cursos: Licenciatura versão 1991, Licenciatura versão 2006 e Licencitura no interior do Estado.
AN EXPERIENCE OF PHYSICAL EDUCATION TEACHERS’ FORMATION IN THE PERSPECTIVE OF GRADUATING AS TEACHERS
The work presents a reflection about the personal knowledge and the practical knowledge in the teacher’s formation and analyses the theoretical assumptions and the organization of the curriculum of Physical Education teachers’ formation course, indicators of the perspective of graduating as a teacher. It talks about the appropriation of a notion of curriculum as practice; it analyses how the objectivities of such formation in the ambit of the course curriculum; it emphasizes the understanding about a formation that sees the teachers as active subject of their practices, as well as the curricular possibilities thought to work such understanding and the feeling of graduating as teachers; it mentions and understands some curricular practices of formation experienced and observed by a teacher of the course.
KEYWORDS: Curriculum of teachers’ formation, Graduation, Physical Education
UNA EXPERIENCIA DE FORMACIÓN DE MAESTROS DE EDUCACIÓN FÍSICA EN LA PERSPECTIVA DEL FORMARSE MAESTRO
Presenta una reflexión acerca del conocimiento personal y del conocimiento práctico en la formación del maestro y analiza los presupuestos teóricos y la organización del currículo de un curso de formación de maestros de educación física, indicadores de la perspectiva del formarse maestro. Discurre sobre la apropiación de una noción de currículo como práctica y analiza como fue pensada la objetivación de esa noción en el ámbito del currículo del curso; evidencia el entendimiento sobre una formación que entiende el maestro sujeto activo de sus prácticas, así como las posibilidades curriculares pensadas para trabajar tal entendimiento y el sentimiento de formarse maestro; habla y comprende algunas prácticas curriculares de formación vividas y observadas por una profesora de dicho curso.
PALABRAS-CLAVE: Currículo de formación de maestros, Formarse, Educación Física
REFERÊNCIAS
CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA. Centro de Educação Física e Desportos, Colegiado do Curso, Vitória, 2005.
JOSSO, M. Experiências de vida e formação. Lisboa: EDUCA, 2002.
PARASKEVA, J. M. Currículo como prática (regulada) de significações. In: PARASKEVA, J. M. (Org.). Educação e poder: abordagens críticas e pós-estruturais. Porto: Edições Pedago. 2008, p. 135-168.
PIMENTA, S. G.. Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 2000.
SACRISTAN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000.
PRO DIA nascer feliz. Jaime Monjardim, Rio de Janeiro: Copacabanca Filmes, 2005.
Recebido em: 15/05/2009
Revisado em: 18/06/2009
Aprovado em: 11/09/2009
Endereço para contato:
Zenólia Christina Figueiredo
Universidade Federal do Espírito Santo
Centro de Educação Física e Desportos
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