A REVISTA VIDA E SAÚDE: MODOS DE OLHAR E EDUCAR O CORPO FEMININO E SUAS PÁGINAS (1940-1950).

André Dalben*

Carmen Lúcia Soares**

RESUMO

A revista Vida e Saúde sustentou durante a década de 1940 uma educação do corpo pautada nos discursos sobre a saúde e a beleza feminina construída a partir de três instituições: a científica, a religiosa e a política. Procurando compreender como se organizava nas páginas da revista essa proposta, explicitamos os diferentes dispositivos utilizados para sustentar os modos sobre como se deu a educação do corpo feminino pelas páginas da referida revista.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo – Beleza – Higienismo – Mulher – Revista.

INTRODUÇÃO

O início do século XX foi caracterizado pela transição de uma imprensa do tipo artesanal, cujas publicações, esporádicas, eram realizadas em folhas tipográficas, o que limitava sua circulação a um espaço territorial restrito a uma imprensa de larga escala, na qual os jornais eram qualificados como empresas capitalistas, com estrutura e equipamentos específicos, que permitiam a impressão de um material de qualidade superior, com um número maior de páginas e uma divulgação mais ampla (SODRÉ, 1966). Foi nesse período que os recursos de ilustração e de fotografia manifestaram-se com maior força e consolidaram-se enquanto discurso.

No que se refere especificamente aos periódicos destinados às mulheres, a Revista Feminina foi exemplo ímpar. Criada em 1914, na cidade de São Paulo, circulou até 1935 e chegou a alcançar uma tiragem de 30.000 exemplares, com distribuição em todo o território nacional. Era uma publicação com número de páginas considerável, que apresentava variedade de temas e uma perspectiva mais comercial do que as suas congêneres anteriores da impressa artesanal. Entre os temas abordados, incluía-se beleza, trabalhos manuais, culinária, vida social, família, educação e higiene, além de também se posicionar favoravelmente a alguns direitos das mulheres, como o direto de voto.

Outra característica recorrente nesse tipo de publicação, criada no século XX e denominada como revistas ilustradas, era a presença cada vez maior de espaços reservados à publicidade e às fotografias da vida mundana das elites. Eram imagens que denotavam os códigos de civilidade de uma nova sociedade, que queria se mostrar urbana e cosmopolita. Esse é o caso da revista A Cigarra, criada em 1914 e publicada até 1954, e que oferecia ao leitor um dos aspectos da vida urbana paulistana, dando destaque para os divertimentos das elites, como os bailes, os teatros, o cinema e o esporte.

O número de revistas ilustradas que circularam na primeira metade do século XX no Brasil foi bastante expressivo. Dentre elas encontram-se as revistas Fon-Fon!, Para Todos e O Cruzeiro, cada qual com suas características específicas, mas também com similaridades. Eram periódicos que, de modo geral, destinavam-se também, quando não principalmente, ao público feminino. Muitos de seus textos e imagens diziam respeito diretamente ao universo feminino: tanto o representavam, quanto o construíam. Com temas que variavam entre moda, saúde, arte, higiene, beleza e família, tais revistas ditavam normas e regras de conduta para as mulheres e estabeleciam debates ambíguos. Ao mesmo tempo em que defendiam uma “nova mulher”, cosmopolita e metropolitana, representante da vida urbana, também a ironizavam e rechaçavam, impondo valores de um modelo “tradicional” de família, no qual o espaço reservado para o feminino seria o interior doméstico do lar. Ao lado de imagens que as retratavam em bailes, no burburinho da cidade e em publicidades cada vez mais recorrentes sobre produtos de embelezamento, que muito se apoiavam no glamour da beleza feminina advinda do cinema norte-americano, é possível encontrar imagens que as restringiam ao seio familiar, ao universo da casa e da natureza.

Revistas como a Cinelândia, Cinearte e Scena Muda levaram ao público, principalmente entre as décadas de 1920 e 1950, formas de educação do corpo baseadas na beleza dos corpos míticos apresentados nas telas de cinema espalhadas por todos os centros das grandes cidades nascentes. Essas revistas eram contrapostas por outras, tais como Vida e Saúde, objeto de análise deste artigo, que mantinha um discurso a respeito da beleza feminina ancorado na natureza dos corpos circunscritos a uma moral religiosa e científica, que não admitia nenhum tipo de artificialidade.

Mesmo não sendo uma revista específica sobre beleza feminina, uma vez que tratava, de modo geral, sobre doenças e higiene, a revista Vida e Saúde discorria constantemente, como o próprio título sugere, sobre as relações estabelecidas entre a beleza e a saúde. Seus artigos, escritos em grande parte por médicos, apresentavam concepções de saúde e de corpo advindos do pensamento médico-higienista e, ao tratarem sobre questões ligadas ao feminino, seu principal público-alvo, sempre as relacionavam com uma concepção de beleza que se distanciava, em alguns aspectos, daquela presente em outras publicações, ou seja, que retratavam as estrelas do cinema hollywoodiano.

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Capa de Junho, 1940. Capa de Março, 1941. Capa de Janeiro, 1942. Capa Dezembro, 1942.

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Capa de Junho, 1944. Capa de Novembro, 1944. Capa de Maio, 1946. Capa de Setembro, 1946.

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Capa de Janeiro, 1949. Capa de Janeiro, 1950. Capa de Setembro, 1950. Capa Novembro, 1950.

A REVISTA VIDA E SAÚDE

Partindo das imagens produzidas para as capas de Vida e Saúde, é possível “lê-las” pensando no que as constituem. Isso porque, como nos ensina Milton Almeida (1998, p.xxi):

A imagem – uma gravura, uma pintura, uma fotografia - revela-se de uma só vez. Permite que o olhar, delimitado somente pelas bordas, comece a vê-la a partir de qualquer ponto, vagueie por ela em diferentes direções, permaneça onde quiser, imagine. A forma imagem, com suas linhas, superfícies, perspectivas, manchas, é também a forma de pensar o que a imagem mostra. Os significados das imagens são também os significados de como elas se mostram. E aí as imagens tornam-se signos. Então, também se lê uma imagem. Uma imagem é um texto.

As imagens das capas de Vida e Saúde, portanto, revelam-se também como um texto, um texto diferente da escrita, que toca de forma mais imediata os leitores da revista em seu primeiro contato com ela. A imagem ali é que envolve o observador, persuadindo-o a vê-la. Mas, é sempre bom recordar que as palavras lidas e as imagens vistas se querem juntas e separadas. “[...]Juntas para que o leitor ganhe a imaginação que lhe falta e a imagem ganhe a estabilidade de que carece. Separadas para que cada uma conte sua história. Juntas-separadas para que o leitor construa outra história e imagine novamente.” (idem, xxii)

Concebida como seu conteúdo mais exterior, era precisamente nas imagens das capas de Vida e Saúde que se sistematizava todo o discurso presente em suas páginas; texto e imagem em constante e intermitente proximidade, complementaridade, cumplicidade. A cada nova edição, sua capa era tomada por uma nova imagem, mais sofisticada ou mais adequada ao momento, chamando a atenção do público e convidando-o à leitura.

Durante toda a década de 1940, as imagens apresentadas nas capas de Vida e Saúde apresentaram uma certa continuidade temática e, em sua maioria, retratavam mulheres e crianças em contato com a natureza, com um sorriso no rosto. A própria natureza, frutas, flores, o ambiente do campo e da praia, também compunham essas imagens, também constituíam seus “textos”. Até o ano de 1943, as capas não mantinham uma estrutura padrão, ou seja, as letras do título não apresentavam um desenho único, assim como uma posição dentro espaço físico da capa, elas, as letras, variavam de formato mês a mês.

A partir do momento em que começam a ter características mais uniformes, as capas de Vida e Saúde ganham uma estrutura mais fixa e passam a se repetir nas edições. O título passou a ser impresso sempre acima da figura, com letras brancas de desenho límpido e contornos simples, envolto por uma caixa laranja. As imagens também começaram a ter menos detalhes, apresentando tonalidades mais claras e a capa foi-se construindo sem excessos, sem adereços, sem tons carregados e escuros, tais quais os corpos que se pretendia revelar pelo enredo da revista, sobretudo, os corpos femininos e infantis.

Logo em sua primeira edição, em janeiro de 1938, Vida e Saúde anunciava seu desejo de ser um periódico específico sobre higiene, que apresentaria ao leitor, de maneira simples e agradável, o conhecimento científico sobre o corpo humano. Ao transcrever parte do texto de abertura de sua primeira edição em comemoração aos dez anos de sua existência, o médico Luiz Waldvogel, rememora que a principal meta de Vida e Saúde era a de “levar ao povo a leitura que os inicie suavemente nos mistérios de nosso corpo, nas leis que regem o organismo, nas condições ideais da boa saúde” (1948, p.3). Era uma publicação que se apresentava “como um veículo de vulgarização de conhecimentos. Sem eruditismo científico” (1948, p.3), uma vez que, utilizava uma linguagem popular e de fácil compreensão.

Transcrita na edição de agosto de 1942, a carta de apreciação do dr. Peixoto da Silveira, bem sintetizava o olhar do médico leitor a respeito da revista:

Para as famílias e para os rapazes, para os educadores e para os estudantes, para os patrões e para os operários, para os intelectuais e para o povo, para todos, enfim, são vitalmente necessárias as regras de Higiene. Por razões várias, nem todos lêem os livros técnicos desta Ciência tão vantajosa e tão nobre. Donde há necessidade de publicações periódicas e leves a respeito, que são lidas nas horas feriadas. [...] Eis porque, instrutiva sem ser pedante, popular sem ser charlatanesca. Vida e Saúde é a revista mais eficiente do Brasil. [...] Não é uma revista técnico científica para médicos, mas a própria família do médico pode lucrar com sua leitura. (1942, p.10)

Sem utilizar um linguajar técnico–científico rebuscado, os artigos de Vida e Saúde afirmavam à população regras de condutas e formas de pensar específicas. Seus ensinamentos colocavam-se como necessários para todos. A ciência a legitimava, mas não ditava as regras de escrita de seus artigos, os quais não se pretendiam por demais eruditos. Seus textos eram escritos de forma leve e dinâmica. A medicina, em suas páginas, procurava fazer-se compreender por toda a sociedade, apresentando artigos sobre alimentação, puericultura e cultura física, porém com um conteúdo bem dosado, não demasiadamente culto, nem entediante. Assim, já em sua primeira edição, a revista colocava-se como um meio de iniciar o leitor nos conhecimentos médicos sobre o seu próprio corpo, sobre a saúde e os mais diversos meios de preservá-la e, sobretudo, de cultivá-la. Afirmando sua importância como veículo altamente educativo da população, e o número de exemplares divulgados, o médico Peixoto da Silveira escreve:

Não sei qual é a tiragem, mas por maior que seja, acho que precisa ser aumentada, precisa ser mais difundida. Os livros e brochuras de vulgarização científica são raros entre nós, e os poucos que existem, ou são científicos demais e o povo não entende, ou são vulgares demais e só servem para fabricar charlatães. (idem, ibidem)

A divulgação de Vida e Saúde, já na primeira década de sua existência, mostrava-se bastante abrangente, uma vez que havia 11 distribuidoras espalhadas por todo o território nacional. Abrangia 21 estados brasileiros, alcançando um grande número de leitores e configurando-se como um veículo sólido de persuasão do conhecimento médico à sociedade brasileira.

O evangelho da higiene é proclamado da tribuna pública, impresso em grande variedade de jornais, folhetos, revistas e livros, apresentado na tela, espalhado pelo rádio, exposto na conversação à mesa familiar. “Insulina”, “Vitamina”, “Vacina”, e “extrato hepático” são todas palavras de comum emprego doméstico. (CAMPBELL, 1946, p.4)

Vida e Saúde colocava-se como veículo de divulgação desse evangelho da higiene destinado à população, adensando um conteúdo de verdade cientifica adaptado à vida cotidiana, à ordem usual das coisas, às maneiras de ser e de viver. A gráfica/editora responsável por sua publicação era a Casa Publicadora Brasileira (CBP), a qual se situava, desde 1907, na cidade de Santo André e que permanece até a atualidade como de propriedade da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD).

Ela não era uma revista de catecismo, de cunho religioso. Para esse fim, a CPB publicava, desde 1906, a Revista Trimestral, atual Revista Adventista. Vida e Saúde era um periódico que abordava temas diversos, contemplavam desde a alimentação até a cultura física de todos, porém, desenvolvidos e fartamente ilustrados do ponto de vista da saúde. Sua publicação existe até hoje, de domínio da IASD, porém com características que se alteraram com o passar do tempo, adaptando-se às sensibilidades e necessidades de cada tempo.

Neste artigo, trabalhamos somente as edições de sua primeira década de existência. Apesar de ser uma revista editada por um grupo religioso, não houve em suas páginas, durante os anos de 1940, nenhuma referência direta à IASD. É possível que, para atingir uma população maior que a dos seus fiéis, ela tenha ocultado essa informação. O importante é percebermos que, apesar de não tratar diretamente de temas próprios de sua filiação confessional, os temas abordados foram, sem dúvida, expressão dessa filosofia religiosa em seus diferentes matizes.

O conteúdo de Vida e Saúde, portanto, foi perpassado, ainda que de modo sutil, por instituições religiosas, porém, não menos importantes e eficazes nesse mesmo conteúdo. Há duas outras instituições bastante presentes: a científica e a política. A instituição científica, caracterizada pelo pensamento médico-higienista, era a base de seus autores; a política, caracterizada por menções explícitas e sempre afirmativas às figuras do presidente Getúlio Vargas, do Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema e outras autoridades do governo.

Como nos ensina Habermas (1987, p.12), a ciência como instituição constrói-se em íntima relação com a política, pois “[...] todo conhecimento é posto em movimento por interesses que o orientam, dirigem-no, comandam-no. É ‘neles’, e não na suposta imparcialidade do chamado método científico, que a pretensão pela universalidade do saber pode ser avaliada.” Assim, com a revista Vida e Saúde não foi diferente e ela mostrou-se bastante próxima de interesses políticos e econômicos que se consolidavam por meio de argumentos científicos, eram eles que lhes davam validade. A relação estreita entre ciência e política na sociedade brasileira desse período foi traduzida em suas páginas e várias passagens que se revelam esclarecedoras como, por exemplo, a que segue: “o govêrno está de mãos dadas com a ciência, [desta forma] trabalhará o médico sanitarista com muito mais certeza de ver coroada a sua propaganda” (PELA, 1941, p.3).

A ciência e a religião como instituições confluíam harmoniosamente nas páginas de Vida e Saúde, e muitos dos que escreveram em suas páginas eram médicos adventistas: cientistas e religiosos. Não havia na revista nenhum tipo de discordância entre a doutrina religiosa adventista e o pensamento médico-higienista, ao contrário, eles constantemente convergiam. Pode-se concluir que o conhecimento científico veiculado no periódico estava de acordo com os princípios da IASD.

Apesar de não haver referências diretas, repetimos, da IASD em suas páginas, verificam-se, em algumas de suas edições, pequenas transcrições dos textos de Ellen Gould Harmon White, co-fundadora dessa Igreja1. São poucas, mas tratavam de temas relacionados à saúde e estavam em sintonia com os demais textos do periódico. Fragmentos de obras de autores como Jean-Jaques Rousseau, Francis Bacon e Rui Barbosa também eram transcritos, quer seja em citações esparsas, quer seja em artigos completos.

Na revista Vida e Saúde, além dos religiosos, os médicos tinham também papel preponderante. Eles faziam-se presentes na equipe de redação, na autoria dos artigos, bem como davam as respostas às cartas dos leitores e escreviam nas diversas seções do periódico, como, por exemplo, as intituladas Novidades Médicas e Comentário do Mês. Eram médicos de diferentes regiões do país, em sua maioria catedráticos das faculdades de medicina brasileiras, além de estrangeiros: ingleses, americanos, portugueses, entre outros. Na edição de janeiro de 1942, a revista é dedicada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e traz todos os artigos escritos por seus docentes. Técnicos de higiene e inspetores sanitaristas de órgãos oficiais2 também se agregaram ao perfil de autores deste periódico, assim como professores de Ginástica e Educação Física.

O saber médico, na década de 1940, permeava inúmeras publicações, oficiais e não-oficiais, diárias, semanais ou mensais, e sua abrangência não se restringia ao território brasileiro. Refletindo essa característica, Vida e Saúde transcrevia constantemente textos de jornais, revistas e livros, tanto nacionais, quanto internacionais. Observam-se títulos como aqueles dos jornais como Folha da Noite, da cidade de São Paulo, Globo do Rio de Janeiro e A Gazeta do Espírito Santo, além de periódicos como Higiene e Saúde do Paraná, Life & Health de Nova Iorque, Viva Cien Años de Buenos Aires e trechos de livros da própria CBP e de outras editoras. Em conjunto, essas publicações formaram um eficiente meio de divulgação do saber médico para a sociedade e o afirmava como verdadeiramente responsável por educar, corrigir e curar o corpo. Eram textos e publicações que apresentavam características próprias, uns mais políticos, outros mais religiosos, mas todos científicos.

Temos aprendido tanta coisa com a leitura desses preceitos e artigos que não nos cansamos de recomendá-los às pessoas com quem nos damos. O Serviço Nacional de Educação Sanitária (SNES) do ministério da educação, e a Secção de Propaganda e Educação Sanitária (SPES) de São Paulo ensinam a conservar a saúde e a melhorar a educação. [...] Outra publicação que também merece todo o apreço é “Vida e Saúde”. Não é gratuita, como a desses serviços, mas não é cara em vista da matéria que apresenta e da beleza material que o seu todo constitui. (MESQUITA NETO, 1950, p.17)

Praticamente todas as páginas de Vida e Saúde eram ricamente ilustradas, em sua maioria, por imagens de mulheres e crianças. As imagens de mulheres detinham-se nos afazeres domésticos, nos cuidados com os filhos, com a casa, com o esposo e consigo mesmas, conferindo um atrativo à leitura da revista, uma vez que a tornava mais descontraída. As legendas contidas em todas as imagens, assim como os textos, ditavam o caminho dessa leitura. O próprio artigo, em conjunto com o recurso da legenda, delimitava, aparentemente, a leitura possível da imagem apresentada. Médicos e religiosos, principais responsáveis pelo conteúdo da revista, tanto dos textos, quanto das imagens, construíam esse jogo, educando o olhar do leitor ao mesmo tempo em que afirmavam um estereótipo para o feminino. Conforme Michelle Perrot (1992, p.17) nos alertara: “As representações figuradas que permitem aprofundar a história das mulheres oferecem, na realidade, pouquíssimas imagens da feminilidade que não sejam criações masculinas”.

Veículo de divulgação do pensamento médico-higienista, a revista Vida e Saúde procurava focalizar sua atuação no feminino, considerando sua “influência educativa sobre a vida de cada membro da família, [uma vez que] a boa ordem e o bom gosto que dispõe tudo que concerne a vida domestica” (A MESA, 1940, p.6) eram atribuídos aos cuidados da mulher. A seção Página da Dona-de-Casa foi bem representativa dessa questão, como o próprio nome já definia, voltava-se para a figura da mulher, representada como dona-de-casa, contendo pequenos conselhos para os cuidados do lar e da família. De 1943 a 1948, incorporou-se a essa seção o tópico Segurança do lar, trazendo sempre um desenho ilustrativo, da maneira correta de cuidar da casa e dos filhos com a intenção de prevenir acidentes domésticos.

Outra seção era a Para meninos e meninas, dedicada às crianças, que trazia historietas com temas relacionados à higiene, saúde e bons costumes. Ocupando o espaço de uma página, a cada mês, um novo atrativo infantil apresentava-se na revista, um texto literário com muito simbolismo. O dr. Peixoto da Silveira definiria essas duas seções como “Uma história edificante para as crianças e sábios conselhos para as mães e donas-de-casa” (1942, p.10).

Em Vida e Saúde, o dever de assegurar tanto a limpeza e a ordem do espaço físico da casa, quanto a “higienização dos papéis sociais representados no interior do espaço doméstico” (RAGO, 1997, p.61), era da mulher. Seus ensinamentos estabeleciam uma ordem e um modelo de organização não somente da casa, mas da própria estrutura familiar. A figura da mulher era desenhada em Vida e Saúde segundo o olhar do médico escritor e editor. Um olhar que se valia da ciência para construir justificativas biológicas que atrelavam o feminino ao doméstico, sendo a mulher a responsável direta pela educação dos futuros cidadãos. A estrutura familiar bem definida, com seus “manequins higiênicos”, pai e mãe, marido e esposa, todos a serviço da higiene, possibilitava a estruturação do saber médico na sociedade de forma que sua perpetuação era garantida através das gerações, uma vez que ofereciam padrões de conduta a serem seguidos.

O DISCURSO DA BELEZA FEMININA

Para além dos afazeres domésticos e maternos, outro assunto constantemente discutido na revista era o da beleza. Ao público feminino assegurava-se que a “verdadeira beleza só se pode encontrar onde existe boa saúde” (UMA, 1943, p.8). Mas qual seria essa verdadeira beleza defendida nas páginas de Vida e Saúde? O artigo A conservação da saúde fornece indicações interessantes:

A bondade, a saúde e a beleza constituem uma unidade. A bondade é a perfeição do caráter, e a saúde, a perfeição do corpo. ‘Espírito são em corpo são’, é a definição completa de beleza. (ROSSITER, 1943, p.8)

Era um ideal de beleza que não se limitava à questão física, a ele agregava-se a bondade. Apropriando-se da máxima de Juvenal - Mens sana in corpore sano – para definir a beleza, o artigo A conservação da saúde abandona a abrangência dessa máxima pronunciada na Antigüidade e a encerra nos cânones do pensamento cristão3. O corpo definia-se pela saúde e o espírito pela bondade, mas, eles não se relacionavam com a vida política e pública. Conforme esse ideal, para ser bela, a mulher deveria apresentar não apenas um corpo considerado saudável, mas, também, um espírito são. Colocava-se o termo bondade para se definir a conduta moral da mulher para com a sociedade, e o termo saúde, para a conduta que esta devia ter com o seu próprio corpo.

[...] e aquele que se propõe alcançar a perfeição do caráter e do corpo, a glória da verdadeira beleza, precisa usar de sabedoria e força de vontade, a fim de pôr tôdas as energias físicas, intelectuais e espirituais em harmonia com as leis da natureza, que são as leis de Deus. (idem, ibidem)

Bondade e caráter, saúde e corpo, conquistados por meio das leis da natureza que seriam as leis divinas, eram as instruções para se garantir a beleza. Não se trata aqui de mera busca pela beleza, mas sim, que esta seria conseguida pela aceitação de um conjunto de valores médicos e religiosos que se faziam presentes na revista. Eram, pois, esses valores que compunham uma educação do corpo pautada por um modelo de beleza feminina. Ao admitir uma beleza verdadeira como expressão do bem, do espírito bondoso, Vida e Saúde a aproximava à moral religiosa, dirigida pelas leis de Deus.

A pessoa que hodiernamente deseja tornar-se bela, precisa trazer cada hábito de sua vida à luz dos conhecimentos modernos e fazê-lo examinar de conformidade com o último padrão científico da saúde. [...] Precisa convencer-se de que saber viver constitui um dever sagrado; e, si qualquer hábito for condenado por essas investigações, estar pronta a executar contra ele a sentença condenatória, com determinação e bom senso. (idem, ibidem)

Para a obtenção da beleza descrita na revista, colocava-se como necessário criar novos hábitos na população, mudar seus comportamentos para adequá-los tanto aos preceitos científicos, quanto religiosos. O discurso da beleza afirmava não apenas um padrão de corpo, mas principalmente, um padrão de conduta feminina, para o qual qualquer atitude que não fosse condizente com os ensinamentos da revista seria desaprovada e condenada.

A culpa desse atentado biológico, que muitas vezes parte da ignorância real ou voluntária, provém de aceitar as imposições da moda que teima em não se afinar pelo diapasão científico. [...] Tanto na alimentação, na indumentária, nos adornos, etc., como em todos os hábitos ditados pela moda, a norma a seguir é aquela que caminha paralela às leis biológicas e que nos aproxima da Natureza. [...] Toda moda que não corresponde a isso não deve vingar... Pois que a Natureza se vinga dos que quiserem enganá-la. (OLIVEIRA, 1944, p.6-7)

As leis biológicas, naturais, eram aquelas que melhor marcavam o conceito de beleza defendido por Vida e Saúde. Em diversos artigos, esse conceito era definido nos termos de beleza natural ou beleza biológica e uma vez mais se atrelava o natural, o biológico, ao universo do feminino. A mulher deveria ser naturalmente bela, não deveria usar maquiagens e outros artifícios, pois seu modo de ser quando pautado na sua natureza já a definia como o belo sexo. Como ressaltado por Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2005, p.123) “Numa época em que a ‘Natureza’ se escreve em maiúsculo, que sua obra é considerada da ordem do prodígio divino, é perigoso intervir no próprio corpo em nome de objetivos pessoais e de caprichos da moda4”. O uso de recursos não seria necessário se a mulher seguisse as leis de sua natureza, todas essas, descritas pelos médicos e religiosos no âmbito da revista Vida e Saúde.

Colocada como uma forma de viver segundo os padrões médicos e religiosos, a beleza não se limitava à aparência, ela devia estar inscrita no corpo, no comportamento das pessoas. Toda e qualquer forma de manipulação corporal era mal vista em Vida e Saúde. Não se admitia utilizar artifícios como maquiagens para se ter bela. Dizia a revista em um de seus artigos: “‘A beleza não vai além da epiderme’, dizem alguns, e isso é verdade, si ela é ‘aplicada’ tão sómente no exterior. Mas uma cútis realmente bela e sadia é resultado do viver higiênico” (UMA, 1943, p.8).

À “natureza” do corpo não eram permitidas grandes alterações ou mesmo a utilização de artifícios que “imitassem” o que deveria ser “natural”. Não era permitido o fingir-se bela. Como observado por Vigarello (2006, p.37): “a modernidade prolonga à sua maneira as velhas críticas religiosas associando maciçamente a maquiagem à impureza”.

Procure dormir suficientemente e fazer exercícios físicos, ginástica, marcha ou trabalho braçal. Verás, então, como teu espêlho é um amigo mais complacente, e contemplarás um rosto lindo, terás para ti mesma um sorriso de lábios túrgidos e vermelho ao natural. Empreende uma reconciliação com a natureza e suas leis, e não terás necessidade de ostentar nas faces, nos lábios, nos olhos, a pintura que é o sêlo da tua ruína física, a confissão da tua fealdade que se mascara de tintas para embair a credulidade dos que te admirarem assim. (VIEIRA, 1942, p.8)

Pautados pela premissa da beleza natural, os médicos de Vida e Saúde prescreviam, não apenas exercícios físicos, mas, principalmente, formas de viver. Para eles, a beleza não se encontrava unicamente inscrita no físico, ela tinha também um caráter moral. A mulher apreciada bela era aquela considerada virtuosa, que demonstrava, além de um corpo considerado bonito, gestos, gostos, comportamentos e até mesmo uma forma de pensar, que se adjetivava de bela. Como já observado por Naomi Wolf (1992, p.17): “O mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência”.

A maquiagem em Vida e Saúde era considerada como uma forma de esconder um interior deteriorado, pois era na pele, na porção mais exterior do corpo, que viria à tona uma vida desregrada. Esse interior, biológico e espiritual, quando de acordo com as regras de saúde e de bem viver, não necessitaria de intervenções.

Não é debalde que se vêm nos rostos, por tôda parte, pastéis e aquarelas futuristas variando do escarlate gritante dos lábios, ao carmin discreto das faces e ao crayon fúnebre dos olhos. Busca-se na mistificação multiforme da maquillage um arremêdo ao que a natureza presentearia si a saúde a brotasse das células e desabrochasse nas côres sadias que enfeitam e engalanam um rosto de mulher bonita. Por detrás do rouge há, quasi sempre, peles macilentas e encarquilhadas. O baton encobre, não raro, lábios pálidos e flácidos, sorrindo um sorriso inexpressivo... (VIEIRA, 1942, p.8)

Ao conceito de beleza natural contrapõe-se aquele defendido por uma indústria da beleza5, na qual se parecer bela eventualmente era aceitável e não dependia de leis naturais. Assim o faziam as estrelas do cinema. Seus rostos e corpos, maquiados e desenhados pela direção da luz e da câmera, quando projetados nas telas, durante o momento de exibição do filme, tornavam-se reais e não dependiam de leis científicas ou religiosas. O glamour das atrizes do cinema norte-americano revelava outros modelos de beleza à população, no entanto o pensamento explícito em Vida e Saúde se opunha a qualquer outra forma de educação do corpo que não fosse aquela defendida em suas páginas.

Mas como os tempos mudam!... No passado, era a realeza e a aristocracia que ditavam a moda para o povo; hoje são os ‘valentes heróis’ de cinema, e as ‘celebérrimas heroínas’ de cassinos, chás-dansantes, etc! [...] Tôda moda que obedece às regras da higiene, aliando o simples ao saudável, o útil ao agradável, etc., é aquela que mais condiz conosco. Sempre se deve ter em conta que a moda deve estar sujeita às condições biológicas do homem e da mulher; só assim pode redundar em proveito imediato. (OLIVEIRA, 1944, p.4)

Não cabia a esse discurso qualquer outra forma de se conceber a beleza que não fosse por meio de atributos científicos e pelo embasamento religioso advindo da doutrina adventista de Vida e Saúde. Era a moda propagada pelo cinema norte-americano e esmiuçada pelas revistas especializadas, a sua maior adversária. Feita de luz, construída pela filmadora e pelos estúdios cinematográficos, ela não era considerada verdadeira, pois não era útil.

[...] a moda deveria estar sujeita às necessidades biológicas do homem, o que vale dizer, adaptar-se ao homem; mas, o contrário é o que se vê: a moda escravizando o homem, tornando-se sua imperatriz, ou ditadora absoluta, isto é, o homem adaptar-se a moda. (idem, p.8)

Criava-se um discurso em que a moda presente nos anúncios dos produtos de embelezamento, fartos em diversos periódicos da época, mas praticamente ausentes nas páginas de Vida e Saúde, era percebida como uma forma de escravidão, e aquela defendida pela beleza natural, como uma forma de libertação. No entanto, o que Vida e Saúde não aceitava era que o cinema tinha a seu favor uma forma de discurso diferente, que cativava não pela razão ou pela fé, mas pela própria beleza de suas imagens em movimento. O cinema, com suas imagens em movimento feitas de luz, juntamente com a trilha sonora, proporcionava uma forma discursiva completamente distinta daquela de Vida e Saúde. O cinema criava seu conceito de beleza sem a necessidade de explicação pela ciência ou pela fé, pois trabalhava com o encantamento e a imaginação, ou como dito por Sevcenko (1998, p.600), “o cinema não explica nem persuade, ele seduz”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Como observado por Denise Bernuzzi de Sant’Anna (1995, p.124), “durante grande parte da primeira metade do século [XX] a austeridade presente nos discursos sobre a beleza não se limita às prescrições médicas. Ela se alia às regras de uma moral católica, amplamente presente nos manuais e revistas femininas”. Esse foi o caso da revista Vida e Saúde que embora sendo uma revista de orientação adventista também uniu ao discurso da beleza as prescrições científicas e religiosas. Escrita por médicos, em sua maioria do sexo masculino, prescrevia não apenas as normas da verdadeira beleza, mas, principalmente, as condutas esperadas do sexo feminino assegurando valores como pureza, bondade de espírito, perfeição de caráter e de saúde. Em suas páginas foi possível observar a tentativa de afirmar maneiras de conhecer e educar o corpo, sobretudo o feminino. Poderíamos assim dizer que Vida e Saúde desejou e ousou ser uma espécie de bíblia a ser seguida, não apenas pelas mulheres, mas por toda a população.

NOTAS

* Mestrando em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas.

** Doutora em Educação e professora da Universidade Estadual de Campinas

1 Entre essas transcrições localizamos trechos do livro A ciência do bom viver, publicado no Brasil também pela Casa Publicadora Brasileira.

2 Como os da Secção de Propaganda e Educação Sanitária do Departamento de Saúde do Estado de São Paulo e do Serviço Nacional de Educação Sanitária do Ministério da Educação e da Saúde.

3 A máxima de Juvenal Mens sana in corpore sano, pronunciada na Antigüidade greco-romana, reportava-se aos cuidados com o corpo, entre eles o exercício físico e os regimes alimentares numa implicação direta com o viver bem, ou seja, participar com os outros em ações políticas, participar da vida publica, em nada relacionado com o debate médico-higienista dos anos de 1940, tratado na revista. Ver a respeito da máxima de Juvenal em MENDES, Maria Isabel Brandão de Souza. Mens sana in corpore sano: saberes e práticas educativas sobre corpo e saúde. Porto Alegre: Sulina, 2007.

4 Essa discussão sobre a busca da beleza pela mulher e a relação com a natureza em algumas épocas é tratada mais amplamente por SANT’ANNA, Denise Bernuzzi em sua tese de doutorado intitulada La recherche de la beauté, de 1994.

5 Sobre a indústria da beleza ver: FAUX, Dorothy Schefer (et all). Beleza do século. São Paulo: Cosac & Naify, 2000; ver também: YTZHAK, Lydia Ben. Petite histoire du maquillage. [s.l.]: Stock. 2000.

VIDA E SAÚDE MAGAZINE: WAYS OF SEEING AND EDUCATING THE FEMALE BODY IN ITS PAGES (1940–1950)

ABSTRACT

Vida e Saúde magazine kept a body education approach while it was published in the 1940s. Such an approach was marked by discourses about feminine health and beauty as they were established by three institutions: science, religion, and politics. In order to comprehend how such an approach was organized in the magazine’s pages, we discuss the different strategies that were used to maintain the magazine’s views on the education of the female body.

KEYWORDS: Body – Beauty – Hygienism – Woman – Magazine

LA REVISTA “VIDA E SAÚDE”: MODOS DE MIRAR Y EDUCAR EL CUERPO FEMENINO EN SUS PÁGINAS (1940-1950)

RESUMEN

La revista “Vida e Saúde” sostuvo durante la década de 1940 una educación del cuerpo basada en los discursos sobre la salud y la belleza femenina, construida a partir de tres instituciones: la científica, la religiosa y la política. Intentando comprender como se organizaba en las páginas de la revista esa propuesta, explicitamos los diferentes dispositivos utilizados para sostener los modos de cómo se dio esa educación del cuerpo femenino en las páginas de la mencionada revista.

PALABRAS-CLAVES: Cuerpo – Belleza – Higienismo – Mujer - Revista

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YTZHAK, Lydia Ben. Petite histoire du maquillage. [s.l.]: Stock. 2000.

Recebido em: 03/12/2008

Revisado em: 26/11/2008

Aprovado em: 05/12/2008

Contato: carmenls@unicamp.br.

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