RESENHA

FREIRE, João Batista. Pedagogia do futebol. Londrina: Ney Pereira, 1998.

RENATO SAMPAIO SADI *

O livro em questão aborda o fenômeno do futebol na sociedade brasileira, pensado na sua possibilidade de ensino–aprendizagem, ou seja, na sua pedagogia. Diferente dos demais escritos do autor, cujo conteúdo central dominantemente mescla teoria e prática da Educação Física, Pedagogia do Futebol é uma boa receita de bolo. Prefaciado pelo jornalista Juca Kfouri, para quem a democracia deve ser um valor importante e possível no Brasil, o livro prioriza o mundo da bola, que deveria estar ao alcance de todos e ser, na medida do possível, qualitativamente utilizado dentro da pedagogia. Para o pensador-escritor da obra, ensinar – e todos os que ensinam sabem disso – é trabalho pesado, é ciência e arte [...]. Conseguir ensinar Futebol no Brasil é uma tarefa que exige, entre outras coisas, trazer a cultura futebolística do brasileiro para dentro da escola.

Os trunfos que valorizam este livro localizam-se na linguagem objetiva, muitas vezes distante das produções da Educação Física escolar. O autor mostra a possibilidade de ir além das aulas de Educação Física, ou seja, a figura do professor dessa disciplina não aparece na obra, salvo em raros momentos. (Não fica claro o porquê desse ocultamento ou esquecimento: seria intencional? uma crítica à área?) O fato é que Pedagogia do futebol flui tranqüilamente para o leitor iniciante ou iniciado, sem o estereótipo do professor formado/graduado em Educação Física e sem a figura do componente curricular da disciplina. Esta se encontra apoiada naquilo que a cultura nacional tem de mais significativo para as crianças: a rua.

Inicialmente são apresentadas reflexões filosóficas sob o tema “Quero ser jogador de futebol”. Aqui, Freire cita quatro princípios que poderiam subsidiar um ensino de qualidade no futebol: 1 – ensinar futebol a todos; 2 – ensinar futebol bem a todos; 3 – ensinar mais que futebol a todos; 4 – ensinar a gostar do esporte. Tais princípios devem estar relacionados a vinte condutas pedagógicas que seriam os procedimentos metodológicos do professor (p. 12-14). Para não “repetir” a rua na escola o autor esclarece: “Há na pedagogia da rua os grupos infantis que costumam excluir os mais fracos. A pedagogia da rua é muito suscetível tanto às coisas boas quanto às ruins” (p. 6).

No capítulo 2, “Desenvolvimento das habilidades motoras”, remonta-se o cenário da infância como o tempo da brincadeira possível, da aprendizagem prazerosa, da aquisição de segurança na motricidade, dos símbolos, fantasias e sonhos do universo lúdico. Afirma-se o contraditório ao mundo adulto, criticando-o quanto à sua perspectiva “danosa” e “prejudicial” às crianças e jovens. As habilidades motoras para o futebol são apresentadas como coordenações relacionadas à “arte com os pés”. Elas se assentam em capacidades que são propícias para dar alicerce às ações humanas (p. 27-28). Nesse capítulo o autor alerta para as diferenças entre crianças e adultos, atribuindo aos pequenos a fantasia e o poder corporal e enfatizando o pensamento e a linguagem entre os adultos.

É interessante notar a continuidade lúdica presente no futebol quando o livro aborda memórias da infância. Muitos dos registros pessoais e lembranças que os brasileiros têm sobre o assunto revestem-se de paixão, de alegria e de retorno ao mundo simbólico da aventura futebolística. Registra-se ainda nesse capítulo (item II.2.4) a idéia de precocidade no esporte. De fato, concordando com o autor, antes dos seis, sete anos, não deveria haver escola de esportes para crianças. Ou no mínimo tais escolas teriam de ser totalmente reformuladas e, muito mais do que simplesmente “fiscalizadas”, ser estimuladas a buscar sua qualificação.

O período da primeira infância, favorável às brincadeiras, poderia ser enriquecido com formas esportivizadas, que, espelhando-se em gestos motores esportivos (mas não os copiando), resgatassem a brincadeira como possibilidade educativa. Assim, “os espaços de nossa infância ficam em nossas mentes como mundos irreconhecíveis por nossas percepções adultas”(p. 37).

O capítulo 3, “Fundamentos do futebol”, sintetiza o conteúdo das aulas e está distribuído em dez temas, cada um dos quais com um conjunto de exercícios, jogos e brincadeiras: finalização (onze exemplos), passe (onze exemplos), controle de bola (sete exemplos), drible (seis exemplos), condução (nove exemplos), desarme (cinco exemplos), lançamento (sete exemplos), cruzamento (dois exemplos), cabeceio (cinco exemplos) e defesas/goleiro (sete exemplos). São propostos jogos adaptados, preferencialmente realizados na segunda parte da aula (na primeira, uma conversa informal com os alunos sobre a aula). Tais jogos estão assim distribuídos: passes (quatro jogos), finalização (sete), desarme (três), drible (três), cabeceio (dois), lançamentos (um jogo), cruzamentos (um), além de mais dez que servem para diversos fundamentos. A maioria dos exemplos espelha-se nas brincadeiras de rua, na cultura lúdica reproduzida nos campos de várzea e nos mais variados espaços adaptados para o jogo. Assim, atividades como gol-a-gol, rebatida, bobinho, mãe-da-rua e cruzamentos são formas passíveis de construção pedagógica e interação sócio-educativa. Na seqüência desse capítulo o autor retoma as capacidades motoras básicas para o futebol ressaltando a integração e interdependência entre elas. Assim, equilíbrio, motricidade fina, velocidade de reação, força de chute, velocidade de chute, velocidade de deslocamento, agilidade, força geral, força de salto vertical e força de salto horizontal são conceitos que João Batista Freire adensa com a realidade do fenômeno “futebol”. Tais conceitos implicam a classificação dos fundamentos anteriormente destacados, ou seja, para cada fundamento, um con-junto articulado de conceitos/capacidades motoras básicas (p. 110). O autor classifica ainda quatro tipos de habilidades: individuais, coletivas de oposição, coletivas de cooperação e cognitivas de integração.

A questão central que permeia as inquietações dos pensadores da pedagogia é a necessidade de enfrentar a polêmica: Pode o futebol ser ensinado? Ou seja, como as crianças aprendem futebol? Se ele pode ser pedagogizado e organizado em conteúdos de aula na Educação Física escolar ou em quaisquer outros espaços educativos, como por exemplo a rua, para que precisaríamos de professor? Ou será que Freire compreende a aprendizagem motora como intrínseca ao desenvolvimento psicogenético do ser social? O fato é que o autor posiciona-se como professor; aliás sua foto, em forma de desenho, faz parte da capa do livro. Qualquer adulto – não importa qual seja a sua formação, vinda da Universidade ou da prática da vida – que tenha sido nutrido com os saberes do futebol, com uma quantidade razoável de conhecimentos sobre o assunto, pode aplicar perfeitamente a proposta do livro.

As sistematizações e esquemas de aulas, os procedimentos metodológicos e as periodizações são divididas através dos quadros Distribuição de Temas durante Aulas de Futebol (1), Exemplo de um Plano de Aula (2) e Interesse pelas Habilidades em Diversos Períodos de Desenvolvimento (3), respectivamente.

No capítulo 5 o tema abordado é a avaliação. Fazendo referência aos conteúdos e às possibilidades de faixas etárias, os seguintes procedimentos são descritos para a checagem da aprendizagem: atuação individual, atuação coletiva, competições e conduta. Pode parecer esquemática tal abordagem, entretanto a mescla de pensamentos e significados socioculturais sobre o futebol torna a obra atrativa para as possibilidades do ensino (e da reprodução) das propostas práticas de Educação Física. O ensino caminha, pois, em direção à qualidade social almejada por muitos na teoria. Avaliar além do sentido meramente técnico, que é uma das propostas do autor (p. 137-142), implica uma dimensão de totalidade lúdica do universo do jogo, absolutamente indispensável para se construir qualquer tipo de “aula de futebol”. Os capítulos 4 e 6, respectivamente, “Organizando as aulas” e “Metodologia do ensino do futebol” reiteram as propostas sobre a pedagogização do fenômeno em situações diversas: ensino formal, escolinhas, alto nível etc. Há um reforço da idéia de que o bobinho, o controle, a rebatida e a pelada são elementos da cultura da rua perfeitamente organizáveis em situação de ensino.

Registra-se que no esporte de alto nível, salvo raras exceções, os atletas não brincam. Dominantemente o trabalho realizado visa o rendimento e o lucro, muitas vezes abstraindo a humanização do fazer corporal, técnico e artístico. Traçando um paralelo da prática com as idéias de Pedagogia do Futebol, pode-se afirmar que muitos dos exercícios de preparação física, técnica e tática estão ali presentes. Enganam-se, pois, aqueles que, preconceituosamente, enxergam apenas brincadeiras no livro.

Por fim, enganam-se também aqueles que, na crítica ao autor (bem como ao conjunto de sua obra), visualizam elementos teóricos de consenso, conformismo ou mesmo conservadorismo. O que pode ser retirado com objetividade de Pedagogia do Futebol para a construção de uma Educação Física de qualidade é seu conteúdo articulado, que, na medida de sua constituição e consolidação, possibilita a riqueza da superação dialética.

Recebido: Setembro de 2002
Aprovado: Novembro de 2002
Endereço para correspondência:
Renato Sampaio Sadi
Rua 20, Q. 18, Lote 7
Conjunto Itatiaia III
Goiânia - Goiás
CEP 74690-450
E-mail: rsadi@fef.ufg.br

TOPO