GOELLNER, Silvana Vilodre. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Unijuí, 2003. 152 p. (Coleção educação física).

Miguel Fabiano de Faria*

O livro Bela, maternal e feminina, de Silvana Vilodre Goellner, trata de imagens de mulher, produzidas e veiculadas por um periódico especializado, num tempo de significativas mudanças econômicas, sociais e culturais na e da sociedade brasileira. Chamado Revista Educação Physica, esse periódico é criado no Rio de Janeiro em 1932, sob iniciativa de um grupo de professores civis de Educação Física e financiado por uma editora particular, a Cia. do Brasil. As indicações são de que tenha tido ampla circulação nacional e também internacional, sendo produzido até outubro de 1945, quando é publicada sua última edição.

Silvana Goellner, doutora em Educação pela Unicamp e professora do departamento de Educação Física da UFRGS, escreve com extrema competência e sensibilidade um texto que privilegia a Revista Educação Physica como a única fonte de pesquisa utilizada. A linguagem empregada, bem como as explicações feitas ao longo do texto, conferem prazer à leitura, além de indicar a possibilidade de atingir não apenas o público especializado em Educação Física, como o público em geral.

A autora anuncia construir e narrar uma história sobre as imagens do corpo feminino, presentes na Revista e também com seus silêncios e ausências em determinados aspectos. Tais imagens representam o corpo descrito nos textos ou apresentado nas fotos e nos desenhos do periódico. Três são os imperativos utilizados para se contar essa história: ser bela, ser maternal e ser feminina. Imperativos ditados, estrategicamente, pela Revista para definir o que seria uma “verdadeira mulher”. Neste sentido, as mulheres deveriam tomar a beleza como obrigação, a maternidade como dever cívico e a feminilidade como conseqüência dos anteriores.

O livro demonstra que a voz “autorizada” pela Revista Educação Physica é, principalmente, a dos homens. São eles que divulgam e impõem os modos e as formas que os corpos femininos devem assumir. Assim, ao projetarem identidades visuais e comportamentais, tomam como referência a mulher adulta jovem, branca, saudável, heterossexual e de classe média, para a qual as atividades físicas e esportivas contribuiriam com o ideal de eugenia, de regeneração da raça. Diz, ainda, a autora, que a Revista tanto incentiva quanto repreende a mulher no que diz respeito a sua vida individual e social, ora impulsionando-a a transgredir determinados códigos sociais e sexuais, ora cerceando possíveis ousadias. A leitura desse livro leva a conhecer como a Revista Educação Physica afirma um discurso voltado para a produção da “nova mulher”: moderna, ágil, companheira, responsável, capaz de enfrentar os desafios dos novos tempos. Porém, a Revista traz poucas possibilidades para uma emancipação feminina, à medida que recomenda à mulher ousar sem com isso esquecer de preservar suas virtudes gráceis e feminis, nem abandonar o cumprimento daqueles deveres que, ao longo da existência, lhe foram designados: o cuidado com o lar e a educação dos filhos.

A autora convida o leitor a perceber a relevância e o impacto de determinadas expressões. Quando associadas a imagens que retratam mulheres exibindo corpos belos, saudáveis e bem dispostos, tais expressões conferem a estas imagens um tom de ordem: “Faça ginástica”, “Aprenda a usar seus músculos corretamente”, “Verifique se sua beleza é moderna”, “Fortaleça seu busto”, “Ame a Pátria”. Ou seja, nas palavras e interpretação de Goellner: “não coloque em dúvida o fato de fazer ou não ginástica, de usar ou não corretamente os músculos ou de amar ou não a Pátria. Simplesmente faça, use, ame”. Assim, a autora ajuda-nos a perceber o caráter prescritivo e doutrinário que possui a Revista Educação Physica.

Bela, maternal e feminina é dividido em cinco partes, a começar com o prefácio que Guacira Lopes Louro escreve com muita propriedade, destacando pontos chave da obra, com um tom sempre convidativo à prazerosa leitura que se segue. Subseqüente, temos a apresentação elaborada pela própria Silvana Goellner, seguida das três partes respectivas àqueles imperativos que dão nome à obra: seja bela, seja mãe e seja feminina.

Comentando, mais detidamente, sobre o primeiro desses imperativos – a beleza –, a autora coloca que os colaboradores da Revista não poupam esforços para aproximar a prática de atividades físicas da beleza feminina. Assim, eles seguem, através de discursos e imagens, ditando regras, cânones e ideais de perfeição corporal, seja em artigos de cunho científico, conselhos médicos, dicas e truques para melhor cuidar do corpo, propagandas de produtos que buscam melhorar a aparência física ou notas sobre a moda esportiva. Tais discursos podem ser exemplificados a partir dos títulos ou legendas de algumas matérias e imagens, reproduzidas no livro: “Cultura Physica Feminina”, “Exercícios para combater o excesso de gordura e pêso”, “Saúde e belleza pelo exercício”, “Verifique, leitora, se seu corpo é belo”, “A Beleza Feminina: raras, raríssimas são as mulheres verdadeiramente belas”, “Educação Física e Beleza Feminina”.

Tomada pela Revista como sendo uma obrigação, a beleza é analisada pela autora, a partir do periódico, como resultante de um trabalho árduo e constante, que requer disciplina e dedicação, deixando para segundo plano a idéia de ser um dom divino. O periódico utiliza para tal, termos como “tenacidade”, “insistência” e “empenho pessoal”.

Em vários momentos, a obra remete ao principal modelo de perfeição corporal adotado pela Revista, o da estatuária grega, que ajuda a concluir que a prisão da mulher ao mito do embelezamento não é o fato de ela desejar cuidar de si e de sua aparência, mas, sim, as representações que este mito cria e que faz com que ela se sinta invisível ou incorreta se não atingir os padrões para ela estipulados.

Outro ponto interessante, levantado pela autora, refere-se ao fato de a Revista Educação Physica, apesar de prescrever a beleza feminina como algo fundamental, enaltecendo a sexualidade como essência para se conseguir, por exemplo, um bom casamento, dissociar este movimento da maternidade, como se fossem almejadas duas mulheres distintas em uma só, como se maternidade e sexualidade, embora complementares, não pudessem ser vividas simultaneamente. Ainda que a Revista incentive as mulheres a exercitarem seus corpos no espaço público, ao sol, junto ao mar, quando o tema é casamento e maternidade o espaço doméstico é dignificado e recomendado para as práticas corporais.

Sobre essa nova possibilidade, ou até mesmo imposição para a mulher, apontada pelo periódico, é que a autora analisa o imperativo da maternidade, partindo de duas representações, divulgadas pela Revista, para afirmar o modelo que se pretendia forjar: a mulher-mãe e a mãe-cívica. Tais representações são produto das práticas higienistas, eugênicas e cívicas associadas às imagens da mulher que é ou será mãe, produzidas ou reproduzidas pelo periódico. Enquanto a representação da mulher-mãe está voltada para o fortalecimento da raça no que diz respeito à saúde, ao vigor físico e à eficiência dos indivíduos frente aos obstáculos da vida e do mundo do trabalho produtivo, a representação da mãe-cívica adquire voz, quando esta incorpora e defende o discurso oficial da preservação da soberania e da honra nacional. Com a iminência da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, a mãe-cívica vê na Educação Física uma possibilidade imediata de preparar os jovens para a guerra, suprimindo suas dores e temores, formando seus filhos física, moral e intelectualmente para se constituírem defensores da pátria.

Como nos alerta Goellner, ideais eugênicos e nazi-fascistas pulsam nas páginas de sua fonte de pesquisa. A mulher deveria ser mãe sim, mas não de qualquer prole. Seus filhos deveriam nascer fortes e saudáveis, pois somente esses fazem um povo forte e produtivo e esses são os desejados. Nesta lógica, em se tratando de refinamento social e regeneração da raça, é na Educação Física desenvolvida na Alemanha Nacional-Socialista que a Revista Educação Physica busca elementos para exemplificar como uma nação pode desenvolver programas de cultura física para melhor fortalecer o seu povo. Inúmeras são as imagens de jovens atletas alemães – homens e mulheres – assim como são omitidas imagens de corpos obesos, fracos ou negros.

Para tratar do terceiro imperativo almejado pela Revista, a feminilidade, a autora confirma que além da beleza e da maternidade, ser feminina configura-se exigência primordial para a permanência das outras duas. Com isso, os colaboradores do periódico combatem implacavelmente o homossexualismo, os “distúrbios sexuais” e a “masculinização” dos corpos e modos femininos, merecendo estes atenção e controle, terreno fértil para a intervenção das práticas corporais e esportivas. Não seriam bem vindos, no entanto, o excesso de competição, nem a inatividade física, mas beleza, saúde, graça, harmonia de movimentos, leveza, vigor físico, energia e delicadeza. Conclui portanto, que se é necessária a exercitação do corpo da mulher, que seja realizada de forma a que estejam garantidas as características que asseguram seu jeito feminino de ser.

A leitura do livro é sugerida não somente para aqueles interessados na História da Educação Física, da Educação, do Corpo ou das Mulheres, mas sobretudo para aqueles que pretendem se deliciar e viajar por um livro com diversas possibilidades de leituras, que pode proporcionar incríveis descobertas, não de algo que ficou para trás, mas sim, por estar presente na história, nos instiga a pensar sobre as representações dos corpos, que hoje envolvem a sociedade, nos interpelando e nos produzindo. Nas palavras de Silvana Goellner: “Bela, maternal e feminina: imagens afirmativas que permitem compreender que o corpo da mulher, ao mesmo tempo que é seu, não lhe pertence”.

NOTAS

* Estudante de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

REFERÊNCIA

GOELLNER, Silvana Vilodre. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Unijuí, 2003. 152 p. (Coleção educação física).

Recebido em: 26/03/2008

Aprovado em: 09/05/2008

Contato: miguelfabifar@yahoo.com.br.

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