MEMÓRIAS DAS INFÂNCIAS NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS EDUCADORAS*

Márcio Xavier Bonorino Figueiredo**
Luiz Carlos Rigo***

RESUMO

Este artigo nasce dos memoriais, caminhos descobertos ao longo das reflexões propostas na formação de educadoras das Infâncias.1 Ao trabalhar com as memórias, produzimos histórias, vivências, experiências e outras formas de ação no cotidiano da Escola. O objetivo deste trabalho foi permitir às educadoras em processo de formação continuada uma reflexão sistemática das memórias de suas infâncias para que pudessem conhecer também as memórias das infâncias que integram suas salas de aulas. Utilizamos uma metodologia que inclui fragmentos de falas das educadoras, observações registradas no diário de campo, escritas das lembranças das infâncias, das brincadeiras, dos brinquedos, das marcas da escola guardadas nos baús dos tempos e da escola sonhada. Relembramos nossas coisas de criança, escancarando os velhos baús e fisgando retalhos multicoloridos, com muitas formas, repletos de significados nas infâncias. Nas vivências, tecemos o encantamento das educadoras, colocando no palco iluminado suas infâncias. Assim, neste processo, fomos tecendo redes de relações com as infâncias vividas pelas educadoras e as infâncias das crianças na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE: infâncias – memórias – formação – educadoras

LABIRINTOS DAS VELHAS INFÂNCIAS: “TODO MENINO É UM REI... EU TAMBÉM JÁ FUI REI... MAS ‘QUÁ’... DESPERTEI”2

O que descobrir nas diferentes infâncias? Que histórias elas anunciam, denunciam nas salas de aulas? Que magias perambulam nos labirintos das escolas e da vida? Deixemos que a música Redescobrir, de Elis Regina e Luiz Gonzaga Jr (2007) nos leve a outros encantos que dançam em muitos cantos.

Como se fora brincadeira de roda, memória Jogo do trabalho na dança das mãos, macias O suor dos corpos na canção da vida, história O suor da vida no calor de irmãos, magia Como um animal que sabe da floresta, perigosa Redescobrir o sal que está na própria pele, macia Redescobrir o doce no lamber das línguas, macias Redescobrir o gosto e o sabor da festa, magia Vai o bicho homem, fruto da semente, memória Renascer da própria força, própria luz e fé, memória Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, história Somos a semente, ato, mente e voz, magia Não tenha medo, meu menino bobo, memória Tudo principia na própria pessoa, beleza Vai como a criança que não teme o tempo, mistério Amor se fazer é tão prazer que é como se fosse dor, magia Como se fora brincadeira de roda, memória Jogo do trabalho na dança das mãos, macias O suor dos corpos na canção da vida, história O suor da vida no calor de irmãos, magia.

Embalados por este canto, fomos redescobrindo as nossas infâncias, tramando uma teia de lembranças e de vida e adentramos a outros tempos, tempo da imaginação onde tudo acontece num passe de mágica, tornamo-nos super-heróis, professores, artistas, interpretamos personagens, ser adulto, sem ser adulto, só de “faz-de-conta”.

Entra o convite de Bachelard (2001, p. 120) que compreende a infância como um processo que se constitui por:

...é mais que a soma de nossas lembranças. Para compreender o nosso apego ao mundo, cumpre juntar a cada arquétipo uma infância, a nossa infância. Não podemos amar a água, amar o fogo, amar a árvore, sem colocar nelas um amor, uma amizade que remonta a nossa infância [...]. Todas essas belezas do mundo, quando as amamos agora no canto dos poetas, nós amamos numa infância redescoberta, numa infância reanimada a partir dessa infância que está latente em cada um de nós.

Diante de uma multiplicidade de rostos desfigurados, fomos tecendo a redescoberta de um tempo passado, em que, com um toque de criação, as velhas coisas se transformavam, os ritmos estavam ligados em um tempo sem tempo – Tempo do Coração – que, na bela crônica “Um caso de amor com a vida”, Alves (1999, p. 165) demonstra a dança dos tempos vividos pelos gregos, expressos nas palavras chronos e kairós:

Ao tempo que se mede com as batidas do relógio – embora eles não tivessem relógios como os nossos – eles davam o nome de chronos. Daí a palavra ”cronômetro”. ... O tempo do relógio é indiferente às tristezas e alegrias.
Há, entretanto, o tempo que se mede com as batidas do coração. [...] A esse tempo de vida os gregos davam o nome de kairós.

Embaladas no Tempo do coração, fomos caminhando com as lembranças de nossas infâncias, pensamentos, olhares, angústias e medos... Fomos constituindo nosso dia a dia, buscando uma dança da “não monotonia” que não se expressava no pêndulo do relógio, este que se repete eternamente numa absoluta indiferença à vida.

Lentamente as vozes, os gestos, as faces silenciadas começam a assumir outros coloridos. As falas revelaram que – embora seduzidas a interagirem com o espaço/ambiente – havia implícito, em suas histórias de vida, que “aquilo” era “coisas de crianças”, portanto, não merecedoras de atenção: não eram conhecimentos a serem aprendidos no processo de formação.

Freire (2000, p. 40) traz sua contribuição, quando fala da consciência do mundo, ao dizer que:

A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. Consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo, enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos histórias, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna, portanto, históricos.

Seguindo o pensamento do autor acima, fomos tecendo uma rede com as nossas histórias. Percebendo as múltiplas dimensões, rompendo com os rituais individualizados, de não perceber a si mesmo por aqueles que se pautaram em ações coletivas, de encontro, de escuta de si próprias, do outro e do mundo. Neste processo, a roda foi um dos rituais simbólicos que introduzimos durante a formação. Fomos criando um processo de perceber as relações com os outros e com o mundo.

MEMÓRIAS... “CONHECER AS MANHAS E AS MANHÃS”3

Os textos que seguem são fragmentos das memórias,4 recortes de histórias reencontradas no exercício de pensar a ação. As autorias estão travestidas de características das próprias infâncias, reencontradas e socializadas pelas autoras. Escolhemos essa maneira para trazer, na linguagem, os sinais perdidos no horizonte das culturas adultas. É como se fôssemos buscar – no fundo das gavetas – as lembranças, as histórias escondidas, ensimesmadas e carregadas de conhecimentos.

Carretero, Rosa e González (2007, p. 19) enfatizam que:

Os atos da lembrança sempre estão a serviço das ações presentes, são recordações para que se possa sentir, evocar, imaginar, desejar ou sentir-se impelido a fazer algo, aqui e agora, ou em um futuro mais ou menos próximo. O importante é que a lembrança seja exata, que a representação seja a mais parecida possível com o sucedido no passado. O que nos importa é que a recordação sirva para os propósitos da presente ação. A recordação é feita do que, em cada momento, se registra, inscreve-se o que se considera digno da memória, da lembrança futura. Por isso, a memória coletiva é feita também de esquecimentos; de esquecimento do que, em cada momento, não se considera digno de ser registrado; de esquecimento do que não é memorável, por ser doloroso ou incômodo.

Então, adentram, no palco lembranças, histórias... Esquecimentos, registros das memórias de educadoras com aproximadamente 30 anos de vida. Guardadas, silenciadas nos baús dos tempos, assim elas são representadas nos fragmentos das memórias das educadoras/atoras nos próximos momentos:

Chega a Menina que Brinca na Rua com Irmãos – pede licença, anunciando:

Vivi muito da minha infância brincando na rua, com meus irmãos. Era o que acontecia com boa parte das crianças daquela época. Tínhamos um tempo maior para brincar, para ter infância. Nosso maior e mais sério compromisso era a escola e o tempo que dedicávamos a ela era relativamente pequeno (FM).

Há um contraste bem definido na comparação com a criança de hoje. Tínhamos tempo, oportunidade e local para brincar em casa e a escola era para estudar.

Entra em cena a Menina da Amiga Imaginária – Clarisse:

Começou em 1974, na zona rural, numa família composta por meu pai agricultor, minha mãe agricultora e do lar, dois irmãos e uma irmã e eu (a caçula). Neste cenário, lembro-me de brincar com batatas e chuchus como se fossem vaquinhas, com os pés fazer pequenas tocas nos montes de areia. Reunia vários personagens da família e vizinhos e íamos tomar banho no açude. Fazia minha casinha com todos os cômodos em cima do pé de bergamoteira, construída só na imaginação. Não levava nem um objeto concreto para lá, ia pela estrada – a fora, conversando com minha amiga imaginária, Clarisse (FM).

Entra em campo a Menina da Bola, cantando e contando suas vivências de infância entre água, castelos, praias, músicas, festas:

Infância vivida na cidade. Lembro-me de meus primos, meus pais e meu irmão mais velho indo para a praia. Durante o percurso, eu e meu pai íamos cantarolando músicas escolhidas por ele até chegarmos à praia e brincar de castelo de areia utilizando sabugos de milho que encontrávamos na beirada da água. Sempre gostei de água era a companheira assídua de meu pai para dar uns mergulhos. Ele me ensinou a nadar - na verdade me ensinou a não morrer afogada... Desde muito pequenina já me consideravam um peixinho (FM).

Aos sons dos risos, adentra no cenário o Menino Poeta, trazendo o mundo intrincado de sua infância, falando das cores, das dores, dos odores desses tempos de jogos no campo do time do Rei. Assim se expressa:

Os meninos brincavam juntos, uns nos pátios dos outros, dividindo brincadeiras, brinquedos, palavras, e briga –, ódios que não duravam uma tarde. Essa coisa de chegar na hora do almoço, na sua casa, um colega e logo ser convidado para almoçar. O convidado sentava e comia, enquanto ouvia as conversas da família que só tinha aquele momento para conversar. Logo, a mãe, os irmãos mais velhos saiam para trabalhar e só voltavam à noite. A mãe vinha para a casa e os irmãos para a escola noturna (FM).

Nos dizeres do Menino Poeta, tempo de parar de brincar, de viver tão sério, hora de voltar para a sala da entrevista, de jogar futebol de gol pequeno no meio da rua, jogo do taco com latinha, na calçada ou no meio da rua, jogar de vaza-entra e de cruzar do escanteio, e brincar de casa na árvore... Mas, só tinha a árvore; a casa, não... A brincadeira de soldado e guerra no meio das canas verdes, ou de trilha no meio do ferro velho. A brincadeira de guerra de bexiga de água, que sempre acabava em choro.

No ritmo das falas sobre o estourar as bexigas de água, entra desfilando na sala a Artista das Bonecas Barbie e anuncia o que rolou na sua infância, dizendo que:

Fui criada num ambiente familiar, onde havia muito respeito e amizade. Desde pequena, aprendi o que é responsabilidade, palavra que meu pai fez questão de ensinar e cobra até hoje. Meus pais permitiram que eu e minhas irmãs fôssemos crianças. Brincamos quando deveríamos ter brincado, acompanhados quando necessário. Até hoje me recordo dos momentos de alegria e trocas que passamos juntos aos domingos em família (FM).

Entra em cena a Artista das Noites de Inverno, esculpindo sua infância com muitos traços nos vidros das janelas marcadas por:

Das noites frias de inverno, tenho muito viva a lembrança das janelas, nos vidros embaçados. Neles, desenhava paisagens repletas de montanhas, nuvens, casas, rios, árvores, flores, sóis, estrelas, pessoas... O local preferido era a cozinha. Enquanto a janta estava sendo preparada no fogão, a lenha aquecia os que se reuniam para esperar a comida e a hora de dormir. O calor e o aconchego daquele espaço estimulavam a imaginação, ao mesmo tempo em que congelavam os dedos que entravam em contato com o vidro frio. As imagens sucediam-se uma após a outra, em cada vidro, à medida que tornavam a embaçar novamente, fazendo desaparecer as formas desenhadas (FM).

Falam de vários cenários esquecidos, perdidos nos labirintos da vida – que tudo fragmentam e excluem. No brilho dos corpos e rostos, surgem as brincadeiras de roda, de cabra-cega, pega-pega, esconde-esconde, passa-passará, de mamãe posso ir, brincadeira da fita no meio da rua. O palco era a vizinhança, as ruas das proximidades, as árvores que emprestavam seus galhos para deliciosos balanços. As crianças, nas brincadeiras, chegavam à noite, tendo a lua como a companheira a iluminar os cenários da casa cósmica. A noite findava na cama, um merecido descanso, para partir, ao amanhecer, para a escola, a qual tem marcado as infâncias de muitas maneiras. Veremos alguns desses sinais nos próximos momentos.

TEMPO DE ESCOLA E MARCAS... “HÁ UM MENINO... MORANDO NO CORAÇÃO...”5

Que lembranças vêm das escolas? Que marcas ficaram no nosso corpo? Não há adulto que não se lembre de sua infância, não há adulto que não se lembre de sua trajetória de escola. Dessas lembranças, das saudades risonhas e tristonhas falam as cenas vindouras.

Chega a Menina que Brinca na Rua com Irmãos – anunciando, denunciando cenas vividas na escola quando criança:

Lembranças do primeiro dia de aula, das alegrias, das religiosas – professoras, os cantos, a capela, as rezas, os conhecimentos sobre Deus. Enfim, expressam que: o primeiro dia de aula, na primeira série, minha mãe preparando o material escolar, o uniforme, a pasta, o lanche... Que alegria! Tinha uma idéia do que seria a escola; mas, ao mesmo tempo, medo. Será que saberei o que fazer? A disciplina na escola era bem rígida, controlada por freiras, as quais, ao mesmo tempo, eram amorosas e cuidadosas. Uma vez por semana tínhamos ensino religioso na capela da escola. Foram as primeiras instruções escolares sobre Deus. Cantávamos, rezávamos, e aprendíamos sobre a vida de Deus... Gostava muito e ficava ansiosa para que a semana passasse rápido, para chegar o dia em que iríamos para a capela (FM).

Ouvindo os badalos de sinos, entra no palco a Artista das Bonecas Barbie com as lembranças do tempo de escola expressos nos fragmentos de escrita:

No pré, pela primeira vez, passei por outras vivências boas, mas tive medo. Aprendi a ter vergonha, fui criticada através de risadas. Fui me isolando, mas nunca deixei de brincar. Tinha medo de ir para o colégio e chorava no início do ano. Sempre tive receio de me expor, talvez por ter sido marcada na infância (FM).

Entra em cena a Artista das Noites de Inverno, esculpindo com muitos traços o rosto, as mãos, o cheiro do perfume, a vaidade feminina que vê pelas frestas das janelas do tempo passado imagens da Eliete – uma das muitas professoras escreve:

Eliete era seu nome, foi a primeira pessoa que despertou minha vontade de ser adulta, aliás, ser uma adulta como ela. Acredito que foi minha única inspiração de vaidade feminina. Naquele tempo, a televisão não havia, ainda, massificada imagens femininas estereotipadas (FM).

Com a chegada da Menina da Amiga Imaginária – Clarisse – anunciando um “conto” do seu tempo de escola, lembranças, com muitas cores, de não querer dar a mão, das discriminações, de como se comportar na escola.

Atuar de um só jeito. Esperei ansiosamente o dia de ir para a escola. Ingressávamos direto na 1ª série e nos espelhávamos na professora. Nas brincadeiras, sempre queríamos dar a mão para ela. Gostava muito de ir para escola e quando chovia e não havia aula, ficava chateada. Em casa, com as primas e amigos, brincávamos de representar a escola.

Saudosa, invade a cena A Menina da Bola, contando suas vivências da infância na escola. Lembranças do que rolava, das festas, de gostar da função da escola, dos desenhos comportados, dos traços, das cores que seguiam um padrão, uma uniformidade, onde pouca coisa restava a fazer. Assim, anuncia:

Que saudade...! Do tempo de escola...! Minha mãe conta que eu chorava quando meu irmão mais velho saía para ir à escola. Eu queria muito ir junto. Foi então que meus pais decidiram me matricular na pré-escola, onde eu curtia muito cada dia de aula. Sempre gostei da função de colégio, de ir às compras, escolher o material que comprava o plástico para encadernar os livros e os cadernos... (FM).

Como vimos nas falas antes expressas, muitas vezes o tempo de escola foi roubando a dimensão do lúdico, das brincadeiras. Ficamos restritos ao espaço da seriedade, das coisas vistas como sérias. Fomos bombardeados pelas interrogações: Quando crescer? O que tu vai ser?

Esquecemo-nos de nossas professoras, suas imagens são desbotadas, suas faces, corpos são riscos fugitivos em nossa memória. Algumas foram especiais nas relações afetivas, na auto-estima, no carinho. Estavam preocupadas com outros sinais que iam além dos conteúdos, dos métodos, das leituras e das avaliações. Outras foram frias, duras preocupadas com a disciplina, uniformes, vinham com um conhecimento pronto e acabado. E hoje, como somos como educadores/as? Não somos cópias das professoras e professores que tivemos? Recriamos os seus jeitos de ensinar e aprender?

Professoras e professores: espelhos que o tempo não apaga das memórias. Preocupadas por sermos crianças, perguntavam: do que gostávamos? Partiam de nossa realidade, na busca da autonomia, da cooperação, tinham autoridade sem serem autoritários, liam os sinais dos corpos, os rostos, as transformações da sociedade. Éramos – quando crianças – no nosso imaginário, cientistas, poetas de nossos ritmos, de nossos sonhos num tempo sem tempo. Esquecíamos as horas seduzidas nas brincadeiras de nossas infâncias. O tempo estava a nossa disposição.

O QUE ENCONTRAMOS NOS BAÚS: “... QUEM VOOU NO PENSAMENTO FICOU COM A LEMBRANÇA QUE O OUTRO CANTOU...”6

Retornamos às diferentes infâncias, às travessuras, a um mundo único de cada criança... Tempo de brilhos, delírios, de bruxas, de lobisomem, os quais chegavam com a escuridão da noite, onde o tempo se fazia pela intensidade de cada momento vivido, pela cara do dia, das chuvas e dos ventos.

Freire (1993, p.71) fala da necessidade de o professor ou professora deixar que sua imaginação criadora possa voar nos espaços da escola. Assim, poderemos compreender a importância da imaginação em nossas vidas. O parágrafo seguinte esclarece que

A imaginação ajuda a curiosidade e a inventividade da mesma forma como aguça a aventura, sem o que não criamos. A imaginação, naturalmente livre, voando ou andando ou correndo livre. No uso dos movimentos do corpo, na dança, no ritmo, no desenho, na escrita, desde o momento mesmo em que a escrita é pré-escrita – uma garatuja. Na oralidade, na repetição dos contos que se reproduzem dentro de sua cultura. A imaginação que nos leva aos sonhos possíveis e impossíveis, é necessária sempre. É preciso estimular a imaginação dos educandos, usá-la no “desenho” da escola com que eles sonham. Por que não pôr em prática, na própria sala, parte da escola com que sonham? [...] Quando a criança imagina uma escola alegre e livre é, porque a sua lhe nega liberdade e alegria.

Desta forma, começamos este processo de formação. As educadoras lembram-se das memórias adormecidas e esquecidas pelos tempos, das noites de chuva, da chegada da primavera, das flores que nasciam das faces faceiras e sorridentes, dos amigos da vizinhança, dos abraços, dos desafiados, dos medos, das esperanças-sonhos.

Indagamos: É possível articular o tempo das batidas do coração e o tempo dos ponteiros do relógio?

Nas aulas fomos abrindo espaços para vivências e articulando o tempo das batidas do coração com o tempo dos ponteiros do relógio. Assim, foi surgindo encantamento nas educadoras, entrando no palco iluminado as infâncias que brincavam de se esconder, de pegar, pular corda, as árvores, os espaços, os cenários, o mundo imaginário, as discussões, os acordos, enfim o jogo. A natureza, os banhos de açude, as casinhas nas árvores, os amigos imaginários, as histórias contadas pela mãe, as visitas, as tias, os tios, primos, parentes, os amigos, o sestear após o almoço, as brincadeiras na rua. Tempo para ser infância, espaço para brincar, leituras, contos, canções, faz-de-conta, a magia, a mãe, as bonecas alunas, os cenários para as festas de aniversários, o cheiro de limpeza, os quitutes, o pudim, enfim, a vida que se expressava numa polifonia.

Os espaços das saudosas praças, dos campinhos das peladas de futebol, na atualidade muitos já não existem, pois a ganância da exploração imobiliária varreu-os dos mapas das cidades. Havia as infâncias das praças, as brincadeiras que divertiam crianças e avôs. Tempos (não tão distantes) esquecidos, queridos, repartidos, com cheiro de pipoca e de algodão doce, revividos por diferentes infâncias em muitos espaços e tempos. Será que não esquecemos que as crianças ainda brincam? Que os brinquedos já não nascem das mãos pequenas e criativas que transformavam sucatas em mágicos encantos num permanente ato de criação? O que é possível descobrir neste canto?

Interrogamos: Que significados as novas tecnologias impõem ao imaginário infantil? Dificultam o criar e o recriar? Há influência das novas tecnologias nos processos de formação das crianças e adultos. As brincadeiras, histórias e afetos muito significam para construir o adulto que somos. Percebemos, na infância atual, uma tendência do individual sobre o coletivo, criando novas formas de interação.

E hoje, onde andarão as infâncias dos adultos, das crianças? Que marcas têm deixado? Talvez as luas, as noites estejam estampadas nas telas da TVs, computadores, ao menos àqueles que têm acesso à tecnologia. Os velhos brinquedos, estórias, histórias foram incorporados à indústria cultural7. Os espaços das ruas deram lugar aos condomínios fechados, a monotonia, a alegria das longas horas presas às máquinas virtuais, pregadas nos bancos das escolas, perambulando pelas ruas das cidades, perdidas nos becos sem horizontes de uma nação indecente que mata os inocentes. Que infâncias são essas? O que elas ensinam nos processos de formação?

NOTAS

* Referimos-nos a educadora por serem predominantes nas escolas de educação infantil.

** Doutor em Educação, atua na Escola de Educação Física e na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas.

*** Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Ciência do Movimento Humano pela Universidade Federal de Santa Maria e professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas.

1 Memoriais da Especialização em Educação e do Curso de Pedagogia em Serviço na Faculdade de Educação da UFPel.

2 Trecho da música Todo menino é um rei (BRAZ, 2007).

3 Trecho de Tocando em frente, música de Almir Sater (2007).

4 Usaremos a abreviatura FM para os Fragmentos das Memórias retirados dos memoriais escritos.

5 Bola de meia, bola de gude, de Brant e Nascimento (2006).

6 Trecho de Canção da América, de Milton Nascimento (2006).

7 Os brinquedos não são mais criados pelas crianças. Existe uma indústria que os produz de forma massiva, visando comercializá-los.

CHILDHOOD MEMORIES IN THE TEACHER EDUCATION PROCESS

ABSTRACT

This article was born of the memoirs and paths opened as a result of reflections made during a teacher education program for child educators. The work with memoirs led to the production of stories, experiences and other forms of daily actions at school. The aim of this work was to allow in-service educators to systematically reflect on their childhood memories in order to bring them closer to the childhood memories that are a part of their classrooms. As a methodological path we used speech fragments from the educators themselves, field journal observations, writings on their childhood memories, games and toys as school records that have been kept in the memory chests of time and of the dreamed school. We remembered our school things and opened old chests to pick up multicolored rags of many shapes, full of childhood meanings. As these memories were relived and brought to center stage, we were able to weave enchantment back into the educators lives. Through this process, we were able to network the educators’ childhood memories to the childhood experiences of their present-day pupils.

KEYWORDS: Infancies – Memoirs and Memories – Teacher Education – Educators

LAS MEMORIAS DE LAS INFANCIAS EN EL ENSAYO DE LA FORMACIÓN DE LOS EDUCADORES

RESUMEN

Este artículo nace de los memoriales, los caminos descubiertos a lo largo de las reflexiones propuestas en la formación de educadoras de las Infancias. Al trabajar con las memorias, produjimos historias, vivencias, experiencias y otras formas de acción en el cotidiano de la escuela. El objetivo de este trabajo fue permitir que las educadoras en proceso de formación continuada una reflexión sistemática de las memorias de sus infancias para que pudieran conocer también las memorias de las infancias que integran sus aulas. Utilizamos una metodología que incluye los fragmentos de discursos de las educadoras, observaciones registradas en el periódico de campo, escritas de los recuerdos de las infancias, de los juegos, de los juguetes, de las marcas de la escuela guardadas en los baúles de los tiempos y de la escuela soñada. Recordábamos lo nuestro cuando niño, abriendo de par en par los puertas de los viejos baúles y atrapando pedacitos multicolores, con muchas formas, lleno de significados en las infancias. En las vivencias, tejimos el hechizo de las educadoras, poniendo en el escenario iluminado sus infancias. La naturaleza, los baños de presa, las casas en los árboles, en los amigos imaginarios, y en las historias contadas por la madre, a las visitas, las tías, los tíos, los primos, los parientes, los amigos, el sestear después del almuerzo. Los chistes en la calle. El tiempo para viva la infancia, los espacios para el chiste, las lecturas, las historias, las canciones, el fingimiento, la magia, la madre, los estudiantes de muñecas, los ajustes para los partidos del aniversario, el olor de limpiar, las golosinas, el pudín, por último, la vida que fue expresada en una polifonías. Así, en esteproceso, fuimos tejiendo redes de relaciones con las infancias vividas por las educadoras y las infancias de los niños en el tiempo presente.

PALABRAS-CLAVE: Infancias – Memorias – Formación – Educadoras

REFERÊNCIAS

ALVES, R. O amor que acende a lua. Campinas, SP: Papirus, 1999.

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BRANT, F.; NASCIMENTO, N. Bola de meia, bola de gude. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2006.

BRAZ, R. Todo menino é um rei. Disponível em . Acesso em: 12 jul. 2007.CARRETERO, M.; ROSA, A.; GONZÁLEZ, M. F. O ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007.

CARRETERO, M.; ROSA, A.; GONZÁLEZ, M. F. O ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

______. Professora SIM tia NÃO: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d´Água, 1993.

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REGINA, E.; GONZAGA JR, L. Redescobrir. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2007.

SATER, A. Tocando em frente. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2007.

Recebido em: 05/07/2008

Revisado em: 18/07/2008

Aprovado em: 18/07/2008

Contato: bonorinosul@gmail.com.

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