ACERCA DA VIOLÊNCIA POR MEIO DO FUTEBOL NO ENSINO DE EDUCAÇÃO FÍSICA: RETRATOS DE UMA PRÁTICA E SEUS DILEMAS1

Beatriz Staimbach Albino *

Cristiane Camila Zeiser **

Jaison José Bassani ***

Alexandre Fernandez Vaz ****

RESUMO

Este artigo trata de uma experiência pedagógica em Educação Física, associada ao estágio supervisionado de formação universitária. Nessa experiência, realizada em uma escola pública da área urbana de Florianópolis, desenvolvemos, por meio do futebol, a sensibilização dos alunos e das alunas para as relações de violência que permeavam suas práticas. Descrevemos e analisamos as escolhas didáticas, os acordos e regras adotados, os avanços e fragilidades da experiência. Os resultados suscitam dúvidas quanto à formação de professores ao apontar para a falta de legitimidade da disciplina no espaço pedagógico e questionar os impasses de uma pedagogia que se pretenda crítica: vetores que não se restringem ao âmbito do racional e que impulsionam a prática, a necessidade (e dificuldade) de se ultrapassar o saber-fazer e tomar o corpo em sua multiplicidade como objeto.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Física Escolar – pedagogia crítica – violência – futebol –  formação de professores

1. INTRODUÇÃO

A crise acerca da legitimidade da Educação Física no âmbito da formação escolar vem caracterizada, entre outros aspectos, pela instauração de um quadro de incertezas, sobretudo àqueles que atuam de modo direto nas escolas e que se vêem diante do dilema sobre “o quê” devem ou não ensinar nessa disciplina. Esta crise não chega a ser propriamente teórica, não tem alcance para tal, e a problemática se apresenta, de fato, com razões de ordem prática: na “crítica” que rechaça a disciplina corporal, a prática esportiva tradicional e a dependência a outras disciplinas (“a Educação Física auxilia na alfabetização”), é de se perguntar o que então deve e pode ser feito.

Sem desconsiderar os avanços da prática pedagógica, e reforçando as tintas na afirmativa para dar-lhe o devido contraste, podemos dizer que em meio à emergência de diversas perspectivas ou “tendências” no cenário acadêmico2, muitas das quais alimentando cursos de formação e diretrizes curriculares de estados e municípios brasileiros, o que pemanece é a dificuldade em traduzir a crítica em prática pedagógica – o que talvez nem mesmo seja legítimo – e o quadro de frustração, insegurança e constrangimento, ficando as aulas comumente reduzidas a um ensino do esporte freqüentemente caricato, já que as condições se mostram inapropriadas ou a simplesmente nada, um vazio pedagógico preenchido, no entanto, pela nulidade disforme das “aulas livres”.

O cenário de dúvidas e incertezas não nos foi isento em uma intervenção pedagógica que realizamos no segundo semestre de 2005, no contexto do estágio supervisionado no interior da disciplina obrigatória de Prática de Ensino de Educação Física Escolar II, do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina3. A formação fragmentária aliada ao impulso que leva senão ao fascínio, à orientação por uma perspectiva que seja crítica – no sentido mais rigoroso do termo, como negação do presente –, tudo isso unido à nossa própria insuficiência pedagógica, nos lançou a campo com disposição para o enfrentamento de problemáticas que já vislumbráramos no semestre anterior, quando desenvolvemos prática no mesmo contexto: para além da já antes citada falta de legitimidade que coloca as aulas de Educação Física na berlinda escolar, as expressões da experiência corporal de alunos e alunas, materializadas, entre outros aspectos, nos conflitos de gênero, na violência e na desenfreada disputa pelo poder de comando das aulas, frequentemente radicado em práticas tirânicas. É essa experiência pedagógica que trazemos à descrição e análise nas próximas páginas, tanto como contribuição ao prosseguimento da (auto)crítica, porque ferramenta fundamental para a prática pedagógica, quanto como uma tentativa de reordenação de uma memória que não é isenta de frustrações e mal-estares.

Nas próximas páginas descrevemos o contexto da instituição e da turma em que atuamos e apresentamos a proposta de intervenção pedagógica. Logo após descrevemos as principais estratégias utilizadas durante o processo de ensino, bem como as dificuldades durante o seu desenvolvimento. Finalizamos com a apresentação de algumas considerações sobre a intervenção realizada.

2. APRESENTANDO O CAMPO E A TURMA DE ESTÁGIO

A intervenção foi realizada entre os meses de setembro e novembro de 2005, em uma escola pública municipal em bairro da zona urbana da cidade de Florianópolis, Santa Catarina, em uma turma de terceira série do ensino fundamental, composta por 24 alunos (13 meninos e 11 meninas). A observação das crianças – com suas roupas simples e diariamente repetidas, materiais escolares pouco variados, mochilas adquiridas no comércio popular e flagrante disparidade etária – mostrava que pertenciam, em maioria absoluta, às camadas populares. A turma possuía ainda uma criança com diagnóstico de transtorno bipolar.

Considerando a intervenção já realizada no semestre anterior, as observações sistemáticas ou não, as entrevistas e conversas informais com a professora de classe e com o professor de Educação Física, o cenário pôde ser caracterizado como composto de crianças que falavam alto, levantavam freqüentemente das carteiras, não mantinham a atenção por muito tempo e sustentavam relações mediadas pelo poder que se exercia pela expectativa de violência corporal e psicológica4. Essas se davam de maneiras e intensidades diferentes em cada espaço, sendo as aulas de Educação Física os momentos em que a violência se fez presente de modo mais agudo e visível5.

Apesar disso, em conversas particulares na hora do recreio ou mesmo na observação em sala, essas crianças se apresentavam muito carinhosas e atentas, contrastando com o que se vislumbrava nos momentos em que estavam em grupo. O fato de adquirirem uma outra postura nessa situação possivelmente está relacionado a uma necessidade de se fazer/sentir pertencente, de diluir-se no coletivismo, algo simultaneamente dolorido e sedutor e potencialmente gerador de violência (ADORNO, 1995)6. O comportamento é assim moldado conforme a tirania daqueles que alcançavam as posições de liderança. Por sua vez, esses também acabam agindo de acordo com o rótulo dado pelos colegas, no caso, de fortes e violentos. Como chamara a atenção Arendt (2002), esse processo de coletivização está intimamente relacionado à falta de autoridade dos adultos – que pode se manifestar por meio da ausência tácita de regras e limites, bem como da supressão da capacidade de ouvir e deliberar mediante a presença de um adulto –, de modo que as crianças são “jogadas a si mesmas, ou entregues à tirania do seu próprio grupo, contra o qual, por sua superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o qual, por serem crianças, não podem argumentar.” (ARENDT, 2002, p.230-1).

Tomando como ponto de partida a realidade aqui brevemente descrita, desenvolvemos a proposta de intervenção pedagógica tendo como questão central as práticas de violência, uma temática que perpassa o corpo e que era claramente protagonista nas aulas. O lugar que encontramos para que a temática se desenvolvesse como problema de ensino e reflexão foi o esporte, mais especificamente o futebol, modalidade preferencial da maioria das crianças, elemento da cultura nacional com forte presença nas expectativas, representações e fantasias dos alunos e alunas, mesmo que nele ocorressem com freqüência momentos de exclusão. O futebol era também uma experiência, para eles, de livre manifestação de uma hierarquia que passava menos pela qualidade técnica ou pela habilidade de alguns e muito mais pela possibilidade de infringir ao outro sua própria vontade, frequentemente de forma violenta.

A intervenção pedagógica que será aqui descrita utilizou como um de seus recursos pedagógicos a inserção de regras específicas (adaptadas ou não) na prática do futebol que as crianças desenvolviam nas aulas. Além disso, foram elaboradas normas de conduta e de inclusão mais concreta das meninas na prática da modalidade, de forma que isso não se limitasse, como era o caso, à participação efetiva de algumas e na exclusão ou participação secundária de várias. A intenção era oferecer algum tipo de organização e mediação nas relações que ocorriam durante as aulas de Educação Física, que até então não se diferenciavam com a presença ou ausência do professor (de classe ou da disciplina) – durante nossa experiência predominou a ausência.

As “aulas” eram assim espaços para que as crianças fizessem aquilo que desejassem momentaneamente, o que se resumia, para a maior parte da turma, na prática do futebol sem qualquer tipo de mediação. Dinâmica que tinha como resultado a imposição da vontade dos mais fortes e de atos de violências entre os alunos/as. Isso tampouco se mostrava muito diferente quando dos momentos em que o professor estava presente, já que este, ao contrário do que era esperado pelas crianças7, muitas vezes se eximia da função de zelar pelas regras do jogo, ou ainda ignorava os atritos entre elas.

Abordar a temática da violência por meio da institucionalização de normas para o desenvolvimento das atividades encontrava alguma inspiração nas assertivas de Elias e Dunning (1992) a respeito da relação dessas com o que o primeiro denominou em sua vasta obra como processo civilizador8. O próprio esporte moderno surgira da institucionalização de regras nos jogos e passatempos, sendo também parte desse processo. Ele se desenvolveria no ritmo de um balanço entre a proteção dos participantes por meio de regras que diminuem a violência, mas que não tornem o jogo isento de alguma agressividade necessária ao desenvolvimento à excitação que a competição exige. Um processo que foi produto e também produtor da diminuição dos limiares de violência toleráveis pelas pessoas.

Nosso objetivo era, por meio do estabelecimento de algumas regras suplementares ao futebol que então se realizava, oferecer um pouco de estabilidade às relações interpessoais e ao jogo, de modo que as atitudes violentas diminuíssem de modo efetivo. Assim, a partir da experimentação e de discussões promovidas durante as aulas, pretendíamos sensibilizar os alunos/as quanto às situações de violência que permeavam as suas relações, sobretudo propiciando-lhes experiências alternativas às costumeiras.

3. RELATANDO A EXPERIÊNCIA

Iniciamos a intervenção discutindo e construindo, de modo conjunto, alguns acordos e limites para um melhor relacionamento entre todos. A decisão por regras a serem observadas coletivamente não é propriamente uma novidade em experiências pedagógicas, e optamos por construí-las conjuntamente9, de modo que os alunos e alunas se sentissem responsáveis por elas e assim – essa era nossa expectativa – as cumprissem mais facilmente, já que não seria algo propriamente imposto.

Após conversarmos e chegarmos a um acordo sobre algumas atitudes que permeariam as aulas durante todo o período de intervenção, confeccionamos um cartaz com as regras, que foi fixado numa das paredes da sala. Essas eram lidas no início das primeiras aulas de Educação Física e novamente todas as vezes que se julgava necessário lembrá-los/as dos acordos. Dentre essas regras estava a de que nas situações de violência, tanto no decorrer dos jogos como em outros momentos da aula, faríamos uma discussão a respeito do tema, algo que de fato nem sempre se mostrou possível – nosso excesso de otimismo não considerava a impaciência das crianças associada à constante necessidade de parar para discutir as regras em acordo.

Obviamente o processo de construção das regras não se deu de modo tranqüilo, especialmente porque o tumulto e a dificuldade de conversar com os alunos/as eram muito freqüentes. Avaliamos que essas dificuldades se deveram a não ser costumeiro (muito menos desejável para eles) ter aulas em sala, ou mesmo conversas no transcorrer dessa disciplina, que, no imaginário social e escolar, é tida como eminentemente “prática”. Adicionado a isso, percebemos que os alunos/as não identificavam a Educação Física como um espaço legítimo de aula, talvez porque as atividades realizadas pelo professor dessa disciplina, tal como dito anteriormente, em nada diferiam das que ocorriam em caso de sua ausência. Possivelmente por isso ficava difícil para eles diferenciarem entre um momento e outro. Um fator a mais era o descaso com essa disciplina na escola. A Educação Física parecia ocupar um lugar secundário, juntamente com a disciplina de Artes, ambas sem sequer possuir qualquer detalhamento na parte correspondente do Projeto Político-pedagógico da instituição.

Verificamos então que seria necessária uma organização inicial para elaborar as regras conjuntamente. Essa foi buscada num momento em que um maior controle – esta é a palavra que traduz aquilo que buscávamos naquele momento – estivesse instituído, como, por exemplo, nas aulas da professora de classe. Por isso, solicitamos alguns minutos do seu período para, enquanto ela estivesse presente, dar prosseguimento e finalizar a atividade. Tal fato vem a corroborar a tese de não-aula de Educação Física, já que nessa situação os alunos/as comportaram-se de forma suficiente para que a intervenção se concretizasse.

3.1 INSTITUIÇÃO E MODIFICAÇÃO DAS REGRAS DO FUTEBOL

A aula que se seguiu a esse primeiro processo foi realizada em quadra e nela concordamos que as crianças praticassem o futebol como de costume, não fazendo muitas intervenções, de modo que esse primeiro jogo servisse como parâmetro – para nós e para eles/as –, mesmo que precário, sobre a dinâmica da violência antes e depois das modificações que seriam propostas.

Antes de instituir as primeiras regras do futebol, experimentamos uma estratégia para chamar a atenção dos alunos/as quanto à sua necessidade para a efetivação do jogo. Propusemos a elaboração de desenhos com elementos que fossem relacionados ao futebol e a partir deles conversamos sobre a imprescindibilidade das regras. Apesar da agitação, o que trouxe dificuldades de compreensão para as crianças, a fala de alguns apontava para a importância das regras para que “o jogonão fique bagunçado!” (Relatório 3).

Logo após tratamos de gradativamente introduzir regras próximas àquelas tidas como oficiais do esporte (distância mínima do time oposto para que possa ser efetuada a cobrança de lateral; reposição de bola com as mãos pelo goleiro etc.), seguidas de outras que oferecessem noções técnicas e táticas do futebol, como a organização das equipes em atacantes e defensores. Junto a essas tentativas de mudança estrutural foram feitas também modificações que procuravam atender às necessidades e dificuldades apresentadas pelos alunos/as, como uma maior participação das meninas no jogo10 e a diminuição da violência de modo mais imediato (cobranças de faltas e laterais feitas pelas meninas; considerar falta quando alguém falasse palavra de baixo calão, bem como chutasse com força a bola contra um/a colega; procedimento disciplinares em caso de não cumprimento das regras: 1. conversar a respeito; 2. dois minutos fora do jogo; 3. conversar com a direção). Destaque-se que procuramos realizar esse processo a partir da problematização de situações que haviam ocorrido durante os jogos, de modo que todos compreendessem (ainda que isso nem sempre acontecesse) as mudanças propostas.

Dentre as modificações, destacamos a divisão permanente da turma em equipes e a separação dentro de cada uma delas entre atacantes e defensores11. Esta adaptação proporcionou uma distribuição mais equilibrada na quadra, permitindo a diminuição da incidência de chutes muito fortes e com pouca efetividade – os quais pareciam ser usados como única alternativa para que a bola se aproximasse do gol –, bem como possibilitou que passes e algumas jogadas individuais acontecessem12.

Um número maior de alunos/as assim se encorajava a participar de modo efetivo das práticas, inclusive as meninas que normalmente ficavam junto com os colegas que também se excluíam/eram excluídos da atividade – geralmente os de pouca habilidade e/ou força física –, conversando na beira da quadra. Apesar desse avanço, observamos no decorrer da intervenção que as crianças não compreendiam a necessidade da separação das equipes em ataque e defesa, ainda que tivéssemos realizado uma conversa explicativa em que eles próprios concordaram que quando todos corriam ao mesmo tempo atrás da bola “era ruim, que poderia machucar os outros com os ‘chutões’” (Relatório 7). Se por um lado o jogo melhorara pela restrição à violência, por outro ele tornou-se algo monótono para as crianças porque entendiam que sua participação se limitava aos momentos em que estavam correndo atrás da bola. Nos termos de Elias e Dunning (1992), o balanço teria sido quebrado, tornando-se o jogo inadequado para uma sensibilidade que procura a todo o custo uma aceleração sem intervalos.

Na tentativa de que a necessidade de organizar o jogo ficasse mais clara para os alunos/as, com vistas a uma gratificação futura mais interessante em sua dinâmica, construímos uma maquete de um campo de futebol com cartolina, de modo que visualizassem a distribuição dos jogadores em campo, bem como a existência das posições específicas. Apesar da escola possuir somente uma quadra de futsal, ao invés de um campo de futebol, a opção pela construção do segundo se deu devido ao interesse e conhecimento das crianças sobre o futebol, de maneira que por meio desse referente mais imediato pudessem compreender a existência de diferentes posições para os jogadores. Essa atividade, no entanto, não foi bem sucedida, pois não conseguimos obter a colaboração suficiente deles/as, irritados pelo fato de permanecerem em sala ao invés de ir para a quadra. Novamente aqui se nota a dificuldade de realização de um trabalho pedagógico frente ao não reconhecimento da Educação Física como um espaço de aula, de produção e socialização de um conhecimento que também passe pela mediação intelectiva e não apenas pela fundamental incorporação de gestos e técnicas organizadas em favor de uma atividade de jogo, dança, luta, esporte etc.

CONSTRUÇÃO DO CADERNO E FINALIZAÇÃO DO TRABALHO

As regras ou adaptações elaboradas ao longo das aulas foram registradas pelos alunos/as em cadernos individuais. A intenção era proporcionar-lhes uma assimilação mais efetiva delas, uma vez que apresentavam dificuldades em lembrar de todas as regras durante o decorrer dos jogos.

Se no início da atividade os alunos/as se mostraram receptivos, participando e comemorando o sucesso, esse estado não durou até o final da aula inicialmente destinada à tarefa, com a maioria passando a tumultuar a atividade ao não prestar atenção ao que era dito, levantar de seus lugares, falar alto e brigar entre si. Tais atitudes parecem ter sido uma espécie de protesto, de revolta contra a organização que se exigia dos seus corpos, uma vez que já de antemão sabiam que ficaríamos em sala, o que em nada lhes agradava. Tornava-se claro que as aulas de Educação Física não podiam, na ótica deles, perder sua condição de refúgio de “liberdade” e compensação ao domínio corporal que pouco podiam transgredir durante os momentos disciplinares outros que viviam em sala.

Uma vez não alcançado o necessário grau de organização, a intenção de finalizar o caderno em uma única aula não se concretizou, sendo necessárias duas aulas mais. Ainda assim houve aqueles que não terminaram de copiar as regras, depois de discutidas e escritas na lousa, e por isso permaneceram em sala numa outra aula, juntamente com uma das estagiárias, enquanto os demais participavam do jogo de futebol em quadra. Essa estratégia foi empregada com o intuito de dar ênfase à necessidade do cumprimento do que havia sido combinado e de trabalhar a responsabilização pelas próprias atitudes, algo que nem sempre se efetivava porque, entre outros motivos, convivíamos com um não reconhecimento das estagiárias como autoridade legítima e das aulas como espaço pedagógico13.

Para finalizar a intervenção pedagógica construímos uma estória em quadrinhos – “Cebolinha e Cascão em: Amizade”. A narrativa se deu entre os personagens Cascão, Cebolinha, Mônica e Magali, de Maurício de Souza. Abordamos questões que permearam a nossa prática como, por exemplo, a exclusão das meninas nos jogos, as manifestações de violência e a importância das regras. Pretendíamos estimular a reflexão e o reconhecimento da importância das questões acima citadas.

Ao término da leitura, perguntamos aos alunos/as o que pensavam da estória e qual a relação dela com as nossas aulas. Na fala das crianças notamos que a maioria estava ciente do fato de que “é o que acontece nas nossas aulas!” e que “a briga não compensa, tem que ser amigo!” (Relatório 18). No entanto, o que verificamos no decorrer das intervenções anteriores e até mesmo nessa, é que suas atitudes não condizem com suas falas14.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Diferentes elementos emergem do contexto de ação pedagógica que experimentamos. Como aspecto central destacamos a falta de legitimidade pedagógica da disciplina de Educação Física, algo que ficou evidente pela relutância dos/as alunos/as frente às intervenções na prática do futebol por eles realizada, na inserção de momentos de discussão e nas atitudes de rebeldia (conversas, provocações feitas aos colegas que participavam das atividades, falas sem sentido em relação ao que era perguntado) que mostravam não concordar com o modo como as aulas se realizavam.

Considerada pelas crianças como um momento de não-aula, como então desenvolver por meio da Educação Física elementos pedagógicos que sejam significativos para a formação, tal como é idealizado não apenas pelas pedagogias críticas, mas por toda tradição ocidental, em especial a republicana? Como lidar criticamente com um conteúdo se sua falta de legitimidade já está de antemão posta na medida em que se equipara ensino de algo com a prática (seja ela de que maneira for) do jogo ou do esporte? Já sabemos que não se trata de substituir a prática por um discurso sobre ela, equivoco freqüentemente associado às perspectivas críticas em Educação Física (BRACHT, 2000). Por outro lado, se observarmos que o ensino de uma prática cultural se dá simultaneamente por sua dimensão intelectiva, tanto quanto pelo plano da prática (corporal), e se considerarmos que um tema não se esgota na quadra ou no pátio, então é preciso tratá-lo em dimensões que desafiam a Educação Física como disciplina do conhecimento e não como atividade complementar ou como mera ocupação do tempo.

Esse parece ser um grande desafio, sobretudo se acrescentarmos a esse quadro um outro elemento: a não congruência entre a “fala” das crianças e aquilo que se efetiva. O abismo entre esses dois momentos – já que na maioria das vezes as crianças são “esclarecidas” sobre o que é correto ou não fazer, porém agem muitas vezes em oposição ao que elas mesmas dizem ser importante (ou seja, pela “vontade imediata” ao invés da “razão”) – se coloca como uma aporia para uma Educação Física que se pretenda crítica. Uma questão central parece residir não exatamente naquilo que é “racional”, mas sim na necessidade de elaboração dos próprios desejos, possível, por exemplo, pela gestão de uma experimentação outra, diferente das situações de violência habituais. Em outras palavras, é preciso que uma Educação Física crítica se desvencilhe de um otimismo iluminista extremado que acredita de forma pouco autocrítica na força da razão. Se não é possível, nem desejável, que se abra mão do pensamento racional e do convencimento segundo o argumento que seja objetivamente mais racional, é preciso considerar que há outros vetores a impulsionar a prática de alunos e professores na escola. Ao mesmo tempo, é importante refletir sobre a co-existência de distintas motivações que nem sempre se coadunam com as expectativas do professor. A este, sem abrir mão da autoridade que lhe é exigida no trato pedagógico, não resta alternativa senão observar e incorporar em suas práticas a pluralidade de compreensões e expectativas que povoam as aulas de Educação Física.

Por fim, assinalamos a dificuldade existente no campo da Educação Física de tomar como conteúdo das aulas questões que fogem daquilo que se entende como saber-fazer, já que as “tendências críticas” em Educação Física não ajudam muito no que se refere a aspectos como as relações de poder e de gênero, entre outras, que se materializam a todo tempo nas aulas. Vale assim refletir sobre os limites das pedagogias críticas, da maneira como são abordadas pelo campo, com vistas a desenvolver princípios de autonomia e liberdade do sujeito (se ainda é possível falar nele). Talvez seja preciso levar mais a sério o fato da Educação Física ser uma disciplina que tem o corpo como elemento central e buscar assim percebê-lo em suas múltiplas manifestações e relações, as quais ultrapassam em muito o simples explorar e explicar as possibilidades de movimentação.

NOTAS

* Licenciada em Educação Física pela UFSC; Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação Física (PPGEF/CDS/UFSC). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq).

** Licenciada em Educação Física pela UFSC.

*** Licenciado em Educação Física pela UFSC; Doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC; Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq).

**** Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Hannover, Alemanha; Professor do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-graduação em Educação(CED/UFSC); Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea(UFSC/CNPq); Pesquisador CNPq.

1 O trabalho é resultado parcial do projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação II, financiado pelo CNPq (Auxílio pesquisa, bolsas de produtividade em pesquisa, mestrado, apoio técnico,  iniciação científica).

2 Ver sobre  tema, entre outros , Bracht (1999).

3 Essa disciplina é ministrada na sétima fase do curso. Para a intervenção em pauta foram programadas 24 aulas, porém somente 18 foram ministradas, sendo que a maior parte delas ocorreu em sala. Isso se deu devido à necessidade de rodízio da quadra com os alunos de quinta a oitava séries, às condições climáticas desfavoráveis, ao grande número de feriados e paralisações de protesto durante o período de nossa intervenção.

4 De acordo com Zaluar e Leal (2001), a violência está presente quando o indivíduo oprime pelo excesso de força corporal ou armada (socos, chutes tapas, empurrões, armas de fogo), mas não somente nela. Há ainda aquilo que as autoras denominam como violência psicológica, exercida pelo poder das palavras que negam, oprimem ou destroem psicologicamente o outro (imposição do medo, terror, anulação...). Em ambas formas não há espaço para o diálogo, para a negociação ou argumentação.

5 As observações sistemáticas foram cinco (duas do recreio, duas das aulas de Educação Física e uma em sala). Outras duas foram feitas durante as Olimpíadas que ocorreram na escola no período do estágio.

6 A coletivização não deixa de se fazer presente na medida do sofrimento individual: “a pressão do geral dominante sobre tudo o que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência.” (ADORNO, 1995, p. 122).

7 Tal atitude era notável em momentos que os alunos/as reivindicavam algum posicionamento do professor frente a determinado acontecimento durante a aula. Quando esse ignorava o ocorrido, então eles/as partiam para a imposição da força sobre o outro (exemplo presente na observação 2 da aula de Educação Física).

8 De acordo com Elias e Dunning (1992), o processo civilizador é um processo imemorial que apresenta um impulso importante na Alta Idade Média e que apesar de não planejado, possui uma estrutura determinada proveniente da interligação dinâmica entre ações e experiências dos diferentes indivíduos e da sociedade. Esse processo se caracteriza, entre outros, pelo estímulo ao autocontrole e a sensibilização quanto à visão de cenas de morte e de ferimentos. Entre os elementos que o compõem estão a formação do Estado, um certo equilíbrio de poderes entre as classes sociais, uma pressão para que se exerça um controle da sexualidade, a esportivização das práticas lúdicas.

8 Ver, entre outros trabalhos, o de Vaz e Col. (2002).

10 Mesmo assim as meninas permaneceram tendo poucas possibilidades de participação, fato que as desmotivava a realizar a atividade. De acordo com Damo (2006), o jogo de futebol é um espaço em se dramatizam de modo incessante as configurações de gênero, sendo por meio dele possível tanto a constituição de um ideário de masculinidade, como, ao inserir meninas nessa prática, colocar entraves a uma determinada constituição simbólica dos papéis sexuais.

11 Essa divisão em times e a diferenciação das posições de cada uma das crianças, entre atacantes e defensores, se deu por meio da entrega de tiras de pano de cores específicas para cada um. Na metade da aula as posições seriam invertidas, de forma que aqueles que estavam na defesa fossem para o ataque e vice-versa. Essa adaptação do jogo teve o intuito de promover uma melhor distribuição/organização dos alunos/as em quadra, já que quase todos corriam ao mesmo tempo atrás da bola.

12 Pesquisas (ZALUAR, 1991; TORRI; ALBINO; VAZ, 2004) demonstram que os alunos valorizam a aprendizagem técnica do esporte, vista como propiciadora de atividades com sentido, organizadas quanto ao tempo e à complexidade que desafia e agrega valor.

13 Isso acontecia, entre outros motivos, pela constante interrupção das aulas por diversos motivos e por uma certa fadiga geral da escola, materializada, por exemplo, numa certa indiferença em relação a momentos em que a mediação dos conflitos entre alunos/as com as estagiárias se fazia necessária.

14 Esta é uma contradição freqüente, também encontrada, entre outros/as, por Lovisolo (1995).

ON VIOLENCE THROUGH SOCCER IN PHYSICAL EDUCATION TEACHING: SNAPSHOTS OF AN ACTIVITY AND ITS DILEMMAS

ABSTRACT

This article relates a pedagogical experiment in physical education which was associated to an undergraduate practical teaching program. In this experiment, which took place in a public school in the urban area of Florianopolis, we used football as a means to develop male and female students’ perceptions of the violence that permeated their activities. We described and analyzed teaching choices, the rules and agreements that were reached, as well as the strengths and weaknesses of the experiment. Results have casted doubts over teacher education as they point to a lack of pedagogical legitimacy in physical education as a school subject. They also lead to questioning the difficulties for implementing a critical pedagogy: elements that are not restricted to the rational scope of things and yet set the activities in motion; the need and the hardship of going beyond the know-how in order to consider the human body in all its multiplicity.

KEYWORDS: school physical education – critical pedagogy – violence – soccer – teacher education

ACERCA DE LA VIOLENCIA POR MEDIO DEL FÚTBOL EN LA ENSEÑANZA DE LA EDUCACIÓN FÍSICA: RETRATOS DE UNA PRÁCTICA Y SUS DILEMAS

RESUMEN

Este artículo trata de una experiencia pedagógica en Educación Física realizada en escuela pública de un barrio de la zona urbana de una ciudad del sur de Brasil, asociada a la práctica de la enseñanza de la formación de profesores. En esa experiencia,  desarrollamos, por medio del fútbol, la sensibilización de alumnos y alumnas para las relaciones de violencia que atraviesa sus prácticas. Describimos y analizamos las elecciones didácticas, los acuerdos y reglas adoptadas, los avances y fragilidades de la experiencia. Los resultados suscitan dudas cuanto a la formación de profesores al señalar la falta de legitimidad de la asignatura en el espacio pedagógico y plantear los impases de una pedagogía que se pretenda crítica: vectores que no se restringen al ámbito racional y que impulsan la práctica, la necesidad (y dificultad) de ultrapasarse el saber-hacer y tomar el cuerpo como objeto en su multiplicidad.

PALABRAS-CLAVES: educación f ísica escolar  – pedagogía crítica – violencia – fútbol – formación de profesores

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. Educação e emancipação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.

BRACHT, V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos CEDES. Campinas, v. 19, n. 48, 1999, p. 69-88.

_____________. Esporte na escola e esporte de rendimento. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 06, n. 12, p. XIV-XXIV, 2000.

DAMO, A. S. As dramatizações de gênero numa configuração futebolística. In: VII Seminário Fazendo Gênero, 2006, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Fazendo Gênero, 2006. p.1-7.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992.

LOVISOLO, H. A Educação Física como arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.

TORRI, D.; ALBINO, B. S.; VAZ, A. F. “Nada se consegue sem sacrifício!”: estudo sobre práticas do esporte escolar. In: II Congresso Sul-Brasileiro de Ciências do Esporte, 2004, Criciúma. Anais... Criciúma: Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2004. p. 1-9. [Cd-room].

ZALUAR, A. O esporte na educação e na política pública. Revista Educação e Sociedade, nº 38, 1991.

ZALUAR, A.; LEAL, M. C. Violencia extra e intramuros. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 16, n. 45, fev. 2001. p. 145-164.

VAZ, A. F. e COLABORADORES.  Escolarização do corpo e construção de identidades: um estudo em algumas instituições da Grande Florianópolis. In: XXI Simpósio Nacional de Educação Física, 2002, Pelotas. Coletânea de Textos e Resumos. Pelotas: UFPel, 2002. p. 60-65.

Recebido em: 09/01/2008

Aprovado em: 16/01/2008

Contato: bia_ufsc@yahoo.com.br

kriska_zeiser@yahoo.com.br

jaisonbassani@uol.com.br.

TOPO