A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO E O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA

MARCIA FERNANDES BARTHOLO *

RESUMO

Este estudo parte da premissa de que toda ação pedagógica realiza-se a partir de e para a concretização de determinado projeto político-social, com o qual a educação física encontra-se, de algum modo, envolvida. Por isto, procuramos, numa primeira aproximação, identificar alguns dos fundamentos do projeto de educação explícitos na LDB. Destacamos a necessidade que tem o professor de educação física de compreender o projeto político-pedagógico que põe em funcionamento, assim como de projetar novas possibilidades de pensamento e ação, para uma intervenção pedagógica crítica e responsável, que possa contribuir para a formação de sujeitos criativos, na conquista de sua cidadania.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física, projeto político-pedagógico, emancipação do sujeito

A educação física, enquanto área de conhecimento e de atuação profissional, vai se construindo e reconstruindo na medida em que a sociedade que a solicita vai enfrentando problemas novos, que, para serem solucionados, exigem recursos teóricos e práticos. Assim, certas funções profissionais vão sendo preenchidas como resposta ao desafio de produção ou de reprodução do campo social.

O processo de conhecimento e a prática pedagógica da educação física vêm conquistando legalidade e legitimidade sociais, em decorrência de sua capacidade de negociação com um projeto político-social mais amplo, com o qual se encontram, irremediavelmente, envolvidos.

Sabemos que a educação como um todo e, portanto, também a educação física servem à reprodução das relações de produção dos sistemas político-social e econômico-capitalista, que necessitam da auto-renovação permanente de potencial cultural e capacidade operacional, para a manutenção do sistema, em suas linhas gerais.

Com o processo de globalização econômico, cultural, político, o neoliberalismo, como ideologia desse novo capitalismo mundialmente interdependente, vem assumindo a feição de um novo totalitarismo, propagando, entre outras coisas, a necessidade da competitividade e performatividade, como princípio de desenvolvimento do homem e da sociedade. O valor do homem passa a estar mais no que produz e consome do que no que ele é, como ser que se autoconstrói pelo trabalho, tendo como referência seus próprios afetos e limites. Com o avanço da tecnologia dos meios de comunicação – que oferecem modelos de realização, de felicidade, de comportamento –, de um modo geral, dominados somos todos, que, de uma forma ou de outra, encontramonos sob sua influência. Portanto, mesmo sem deixar de ser condicionada, mas sendo, ao mesmo tempo, princípio de condicionamento, a educação não pode se furtar ao compromisso com os anseios de emancipação da maioria, porque se encarrega de formar uma camada crítica, capaz de converter intenções de manipulação da subjetividade, consciente e inconsciente, numa força ativa na valorização do homem e de tudo que ele puder vir a realizar para a humanização da sociedade.

Mas, para isso, a educação necessita de uma pedagogia, ou seja, de um corpo teórico, capaz de fundamentar a prática, na construção de um projeto desejado pela maioria, como sugere Garrido (1996). Sendo assim, não pode faltar à crítica, pois, sendo práxis, a educação é uma ação social, política, cultural de compreensão, análise e julgamento e realização, vivência e concretização das necessidades e anseios dos sujeitos que dela participam e que a constituem. É, então, fundamental que o educador esteja em condições de interpretar e captar as intenções embutidas no instrumento legal que normatiza a prática social da educação institucionalizada.

A educação física, como parte do processo educativo, recentemente reconhecida como disciplina pedagógica que compõe a grade curricular da educação formal, contempla princípios e fins da educação. Torna-se necessário, então, que a educação física lance, permanentemente, esforços de compreensão do sentido subliminar e do projeto político-social contidos nesses princípios, para uma intervenção pedagógica mais atenta à ação dos sujeitos, a quem ela tem por função atender. Conforme diz a LDB n.o 9.394/96, no Art. 2º,

a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifos nossos).

Cabe, pois, ao professor de educação física buscar uma experiência acadêmica alargada, que lhe possibilite uma abstração conceitual, na busca de referências categoriais, para a construção de um projeto pedagógico que seja o vetor da produção de cultura, e não, apenas, de sua reprodução. G. Fourez (1995) ressalta que a produção do conhecimento deve se guiar por um projeto ético-político, sem o qual a teoria vira pura especulação, sem nada propor. O reconhecimento disso já nos lança para novos patamares de inteligibilidade do real e perspectivas de construção de práxis transformadoras. Afinal, por um lado, liberta-nos da visão mecânica de aplicação da teoria, em seus propósitos de cumprir objetivos utilitários no campo da produção e, por outro, abre a possibilidade de movimentação em outros níveis de conhecimento (filosófico e científico), capazes de nos conduzir a uma investigação do sentido de nossos conhecimentos e práticas pedagógicos, levando a um exame mais amplo da situação que nos cerca.

Neste sentido, teoria e prática devem caminhar juntas, pois uma aplicada à outra informa e forma nosso contexto de ação. A teoria permite-nos sair do plano do imediato, do espontaneísmo inconseqüente, o que nos permite compreender os condicionamentos conjunturais e estruturais que nos envolvem (Limoeiro, 1977), e a prática é o próprio solo possibilitador da teoria, como assegura Bornheim (1977). Mannheim (1972) afirma que a posição/vinculação social do pensador irá determinar o modo como este irá formular os seus problemas. Cabe-nos reforçar que o modo de problematizar interfere na posição política do professor.

A razão instrumental, aquela que expulsou a crítica (Habermas, 1982), levou à tecnização da educação física, condizente com a socieda-de performática que se pretendia criar. Acontece que os padrões de desenvolvimento neoliberais/capitalistas não estão sendo capazes de construir um país onde caibam todos, o que tem levado à necessidade de redimensionamento da função do conhecimento, bem como da prática que ele deve fertilizar. A adesão à crítica ao projeto político-social oficial (atrelado ao grande capital) afasta-nos da possibilidade de um diálogo íntimo com a sociedade, na interpretação das aspirações e necessidades da maioria (que é minoria, do ponto de vista político). Por isto, precisamos contextualizar e questionar o projeto político-pedagógico oficial, procurando identificar seus avanços e retrocessos para o processo de democratização social, instrumentalizando-nos, assim, para a busca de alternativas teórico-metodológicas para uma ação pedagógica pautada numa ética criadora e numa política social transformadora.

A EDUCAÇÃO FÍSICA E O SEU PROJETO

A educação física, como disciplina pedagógica integrada às finalidades gerais da educação, não pode abrir mão de se deter na análise do significado dos princípios ético-políticos e dos programas sociais ali contidos em tensionamento com os desejados.

Passemos, então, à análise de cada finalidade educativa expressa na LDB.

O desenvolvimento pleno

Na perspectiva de uma educação transformadora, a questão do desenvolvimento pleno remete à abordagem do sujeito, como objeto da educação física.

A questão do sujeito pode ser analisada sob diferentes pontos de vista: o antropológico, o sociológico, o psicológico, o pedagógico, entre outros. Cada campo disciplinar, com seu enfoque e problemática próprios, ajuda-nos a compreender aspectos da constituição do sujeito, em sua concretude, como ser que fala, sente, produz, age, sonha, em sua existência finita (provisória) e infinita (imprevisível). Do ponto de vista pedagógico, Freire (1989) adverte que a educação é uma prática de liberdade e de consciência que se faz entre sujeitos. Uma educação para a liberdade baseia-se na conscientização de que, entre sujeitos, não há relações de dominação e subordinação, mas, sim, de vontades compartilhadas, que vão se autodeterminando.

A corporeidade (condição de ser-no-mundo, como corpo social, cultural, político, histórico) e a motricidade (não só como intencionalidade operante, mas também expressão do sentido, consciente e inconsciente) configuram elementos da constituição do homem, a partir das quais a educação física intervém na realidade do sujeito, para o seu desenvolvimento.

Uma educação física para a liberdade busca tematizar os sentidos do corpo em movimento, procurando descortinar as forças e as intenções heterônomas que se apropriam do “movimentar-se”, como as de expressão da performance motora e estética que fazem da corporeidade objeto de produção e consumo, levando, a partir disso, à ampliação da capacidade de construção auto-referente da corporeidade e da motricidade, como elementos voltados para a autonomia do sujeito. O processo de conscientização da condição do homem, como sujeito, passa pela compreensão dos desejos e modos de vida dos indivíduos, grupos e classes sociais e dos condicionamentos investidos em sua corporeidade. Foucault (1986) já havia dito que a afirmação do sujeito se dá na luta contra a submissão da subjetividade.

Assim, para poder contribuir na organização auto-referente do modo de vida cotidiano, as práticas corporais de movimento precisam se inspirar no potencial criador do sujeito, como forma de afirmar o respeito por si próprio, pelo outro e pela vida. A educação física, quando pautada numa ética criadora, desafia valores estabelecidos na concretização de um projeto político-pedagógico emancipatório.

Ostrower (1978) ajuda-nos a compreender melhor o processo de criação. Para a autora, o ato de criar está relacionado à auto-referência do sujeito como construtor de sua própria existência. Criar significa, então, mais do que produzir objetos novos, relacionar, ordenar, contextualizar, de modo novo, o acontecer em torno de nós. Criar é, fundamentalmente, produzir novos sentidos, rompendo com o já constituído, quando este fragiliza a autonomia do sujeito, desmontando, assim, estereótipos sociais e culturais, e subvertendo o que parecia estável, natural, acomodado.

Dessa forma, o professor de educação física, quando desconsidera a importância de se apropriar dos elementos de compreensão teórica do processo de constituição do sujeito, em seus constituintes crítico e criativo, contribui mais para inibir do que para promover o desenvolvimento pleno do educando.

A formação para a cidadania

Neste enunciado, o “formar para” expressa, implicitamente, uma noção propedêutica de educação e de homem, quer dizer, o educando não é, mas pode vir a ser cidadão, caso operem certas condições educativas para isto. Não considera, portanto, que a própria educação é expressão de cidadania, que a sociedade deve exercer o direito de participar da construção do projeto social em causa, em determinado momento histórico.

Um ligeiro apanhado histórico do contexto sociopolítico que deu origem ao conceito de cidadania pode nos ajudar a elucidar o modo como, predominantemente, a cidadania vem sendo compreendida. O sentido moderno de cidadania surge, em 1774, na França, no período da revolução burguesa em que a nova classe econômica ascende ao poder, como classe dominante e dirigente. Neste contexto, a base das relações sociais torna-se o contrato, que devia ser realizado, tanto para compra quanto para venda, por homens jurídica e economicamente livres. É, pois, com base nos direitos e deveres cívicos que a burguesia cria o conceito de cidadania.

Entretanto, esta noção limita a compreensão da cidadania, pois não consegue dar conta da dinâmica social em que se desenvolvem seus princípios e sua prática. A dimensão da cidadania, como exercício institucional da política, faz do sujeito objeto da ação do Estado, o qual define, em última instância, as regras do jogo político de como e quando o direito à cidadania pode ser exercido, como pondera Bobbio (1986).

Para Souza (1991), no entanto, cidadania é o elemento fundamental da democracia; cidadania e democracia referem-se à justiça social, à distribuição do poder, à capacidade de optar e decidir. Cidadania, portanto, não é uma outorga, algo que se dispõe ao homem, mas uma conquista, um dispor-se do homem ao mundo, como ser interferidor, que cria relações sociais e configurações de sentido. Bordenave (1983) identifica a participação como elemento fundante da cidadania, que a distingue em dois níveis, o da macro e o da microparticipação.

A macroparticipação está relacionada à esfera da política, em que ocorrem decisões sobre o modo de produção, gestão e usufruto dos bens de uma sociedade. Neste nível, decide-se o que se deve produzir, por quem, como e para quem, ficando, assim, a grande maioria fora deste processo.

No nível da microparticipação, ao contrário, não há quem não participe. Acontece que não basta estar na situação para dela participar efetivamente. A participação requer a decisão de tomar parte, de fazer parte e de ser parte de uma conjuntura, intervindo, de forma engajada e responsável, na sua criação e transformação. A participação refere-se, pois, a um modo peculiar de atuação, que exige aprendizagem e pode ser aperfeiçoado.

Cabe à educação física, portanto, ser o espaço onde se aprende o valor da participação para a formação da cidadania e para a construção da democracia, através do aprimoramento das relações sociais que ocorrem no interior dos muros da escola, mas que, também, os transcende. O domínio sobre si e sobre o grupo, a partir dos princípios de liberdade, cooperação e responsabilidade, leva, em conseqüência, a uma maior autonomia do sujeito, no que diz respeito à possibilidade de experimentar diferentes papéis e funções no contexto da aula, os quais correspondem às relações sociais e de poder presentes na sociedade maior. Assim, a responsabilidade sobre o planejamento, execução e avaliação das atividades pedagógicas deve ser partilhada pelo grupo. A prática seria, também, o espaço de análise e de crítica de certas representações sociais transportadas por noções estereotipadas, ética e estética, de culto ao corpo forte, vencedor, belo e, portanto, rentável. Acredito que a identificação de novos valores para a educação física, como os de mobilização, integração e organização sociais, pode melhor contribuir para a construção de um projeto democrático de educação e de sociedade. O exercício de práticas como o jogo, o esporte, a dança e outras manifestações da cultura corporal de movimento – enquanto instrumentos pedagógicos utilizados para a aprendizagem da integração e organização social, que prepare o educando para a prática autônoma, na identificação, compreensão e solução dos problemas de sua comunidade – é, sem dúvida, de grande valor para a emancipação do sujeito e para a democratização social.

A cidadania é, pois, um processo em permanente estado de construção; ela não tem limites na capacidade de criação dos homens, que reinventam, teórica e praticamente, as condições de sua existência. Como práxis, transformação contínua dos sentidos e das vivências concretas, a educação física negocia com saberes e poderes constituídos, visando a sua superação, na plasmação de uma realidade social mais justa e humana.

Cabe, então, passarmos a falar e a praticar uma educação física da cidadania para a cidadania. Penso que não podemos mais adiar esta decisão.

Qualificação para o trabalho

Este item merece uma análise cuidadosa, pois nele podem estar implícitas armadilhas ao desenvolvimento pessoal, como busca de si mesmo, e à construção da cidadania, como exercício livre e responsável da vontade de cada um.

Remontando à história recente da educação, no Brasil, Marília Fonseca (1995) procura mostrar quanto a educação tem sido afetada pelas políticas internacionais neoliberais, que, na forma de incentivos financeiros à educação – por parte de agências de crédito como o BM, o BIRD –, vêm definindo a nossa política educacional em conformidade com o processo de modernização da sociedade brasileira (bem como de outros países hegemonizados), para o ingresso na economia de mercado internacional. Supostamente isto garantiria o acesso do Brasil ao mundo do capitalismo desenvolvido. A exemplo disso, na década de 1970, a prioridade foi o ensino profissionalizante, necessário para o fornecimento de mão-de-obra para as indústrias multinacionais implantadas em solo brasileiro; nas décadas de 1980-1990, tem sido a formação básica de cultura geral, devido ao novo perfil do mercado, em decorrência da chamada “segunda revolução industrial”, que trouxe a informatização e a terceirização da economia mundial. Nesta perspectiva, qualificar para o trabalho significa não propriamente dotar o educando da capacidade de influir, de forma crítica, na organização do trabalho e no gerenciamento do mercado, mas prepará-lo para o ingresso imediato no mercado de trabalho, produzindo e consumindo o que o mercado determina. De acordo com Frigotto (1996), os objetivos da educação, no que tange à qualificação para o trabalho, passam a se subordinar às leis do mercado.

Segundo Frigotto (1996, p. 145), “a valorização da educação básica geral para formar trabalhadores com capacidade de abstração, polivalentes, flexíveis e criativos fica subordinada à lógica do mercado, do capital e, portanto, da segmentação e exclusão”. Não é de se estranhar que os grandes patrocionadores do projeto da Pedagogia da Qualidade têm sido entidades ligadas à indústria e ao comércio, como CNI, SENAI, SESI. A relação entre educação e produção passa a ser quase imediata, privilegiando as demandas do mercado. Assim, o mercado torna-se o sujeito do processo educativo e social, cabendo ao homem e suas práticas sociais adaptarem-se à demanda do mercado e seus produtos materiais e simbólicos. Pelo contrário, não se cogita a criação de um mercado ajustado às necessidades do homem e da sociedade.

A identificação entre capital, trabalho e educação minimiza o homem como sujeito. Este passa a ser visto como força de produção, ser que deve se adaptar à ordem capitalista, no cotidiano, em seu modo mais íntimo. O gibi que foi distribuído nas escolas de São Paulo, procurando mostrar os benefícios da ordem neoliberal e reproduzindo a experiência feita com vídeos que foram “consumidos” por escolas da cidade de Washington, é expressão da assimilação da educação ao capital (Torres, 1995).

Acredito que começar por desmascarar os ardis da política neoliberal presente no nosso projeto educativo pode servir como subsídio para um projeto social transformador. Ao conferir à educação espaço de resistência intelectual e prática ao modo como o capital vem conduzindo nossas vidas, podemos, ainda, depositar na educação a esperança de construção de um mundo melhor.

A educação física, quando se coloca à disposição do mercado, fica esfacelada em seu potencial transformador, fazendo da performatividade física o meio caminho para a performatividade social, no campo da produção. Performatividade, competitividade e disciplinarização do movimento formam princípios básicos de uma educação física para o trabalho, produtora de produtores hábeis, talentosos, saudáveis e disciplinados. A competição que o neoliberalismo advoga é uma transgressão à natureza humana. Trata-se de uma competição que faz crescer, movida pelo gosto pelo inesperado, pela mimesis, pela von-tade de descobrir, de exercitar e de superar limites. O apelo comercial da visão de competição baseada no “vale tudo para vencer” vai se constituindo numa ética frágil e pobre, incapaz de levar a uma realização real do ser humano. A incorporação acrítica desses valores inibe o potencial criador do sujeito, na construção de uma nova ética.

É função da educação física, portanto, buscar desarticular visões padronizadas, assimiladas, em grande medida, dos meios de comunicação de massa. Uma educação física que seja práxis persegue uma qualificação que esteja ajustada às perspectivas de

desenvolvimento de condições físicas, mentais, afetivas, estéticas e lúdicas do ser humano capazes de ampliar a capacidade de trabalho na produção de valores de uso em geral como condição de satisfação das múltiplas necessidades do homem (Frigotto, 1996, p. 31).

Trata-se, parece-me, da criação de valores fora da esfera das visões da produção e do consumo.

Uma educação física voltada para a qualificação para o trabalho é, sim, uma força produtiva, não para satisfazer as necessidades do mercado, mas, sim, para transformá-lo em fonte de pressão, na criação de modos de organização e na realização de um trabalho que seja, ao mesmo tempo, lúdico, criativo e construtivo de um projeto democrático. A educação física estaria, assim, ocupada com a utilidade do corpo não correspondente à sua docilidade; a utilização estaria relacionada à capacidade de criar o novo, como condição para o exercício efetivo da cidadania.

CONCLUSÃO

A incorporação ao discurso da educação e, mais especificamente da educação física, de conceitos como liberdade, cidadania, participação, solidariedade, autonomia, manifesta uma tendência de pensamento que busca a construção de novos paradigmas para a prática. O grande desafio que parece se apresentar a nós é como transformar ideais em ação, valores em procedimentos metodológicos e pedagógicos concretos, projetos em realidade. Sabemos que projetar, idealizar, emitir juízos é bem mais fácil do que realizar, concretizar, implementar, mas, no estado atual das artes, ou a educação física começa a construir o seu projeto político-pedagógico com base numa ética profissional-criadora, ou terá de continuar conformada a um projeto que não é, propriamente, seu, mas importado de um poder inautêntico (vendido para o capital).

Enquanto a educação física apenas “preparar para”, ela estará abdicando do seu espaço de vivência concreta de valores, de prática efetiva da cidadania, de construção de um processo de trabalho humano e democrático. O simples “preparar para” parece mais uma forma evasiva de não se comprometer, firme e decididamente, com um projeto de sociedade, realmente, para todos.

A educação física (os sujeitos que a realizam) poderá se tornar uma força transformadora de relações de opressão, caso se coloque como força condicionante, capaz de um pensar utópico, resistente às ideologias do fim, do fim da história, do fim da luta de classe, do fim do socialismo, que não é mais do que a autorização para o exercício pleno do poder, e o começo de uma era em que o poder seja valorizado pelo que puder criar de novo para a construção de um mundo mais humano. Teoria e prática da educação física devem, pois, estar a serviço deste fim. Tudo depende de nossa capacidade de criação.

ABSTRACT

This paper considers that every pedagogical action is based upon a social and political project. It is important to stress that physical education is in a certain way involved in this action. Due to this fact, we tried, in a first approach, to identify some of the principles of the educational plan presented in LDB. We emphasized how much the physical education teacher should understand the pedagogical and political plan he puts into action as well as the necessity of new possibilities of thought and action. This critical and pedagogical practice would contribute to the formation of creative individuals in the conquest of their citizenship. KEYWORDS: Physical education, political and pedagogical project, emancipation of the citizen.

NOTA

* Professora Assistente da Escola de Educação Física e Desporto da UFRJ. Mestre em Educação, pela UERJ.

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