FUTEBOL, SOCIABILIDADE E PSICOLOGIA DE MASSAS: RITOS, SÍMBOLOS E VIOLÊNCIA NAS RUAS DE GOIÂNIA

MARCUS JARY *

RESUMO

Este artigo tem como objetivo fulcral estabelecer uma análise comparativa entre os componentes etnográficos das práticas sociais da Torcida Esquadrão Vila-novense e as referências teóricas no campo dos estudos nacionais sobre torcidas organizadas. Buscase, ao alcançar o objetivo, cumprir a finalidade de responder ao seguinte questionamento: Quais os significados da adesão de torcedores vila-novenses à agremiação “Torcida Esquadrão Vila-novense”? O campo de amostragem ficou circunscrito às práticas sociais produzidas nas escoltas organizadas pela Polícia Militar em dias de jogos do Vila Nova Futebol Clube contra o Goiás Esporte Clube, durante o Campeonato Goiano de 2006. Também foram analisados textos produzidos pelos jornais Diário On-line e O Popular.

PALAVRAS-CHAVE: futebol – sociabilidade – Goiânia

INTRODUÇÃO

Surgido oficialmente durante a primeira metade do século XIX, nas universidades públicas inglesas e, praticado, sobretudo, pela juventude da crescente elite industrial britânica, o futebol ostenta hoje o status de ser a manifestação esportiva mais praticada em todo o mundo.

Enquanto fenômeno de massa, o futebol consolidou-se no Brasil durante as três primeiras décadas do século XX, popularizando-se em todo o país a partir do eixo Rio/São Paulo, com os primeiros feitos esportivos da seleção nacional. Com o desenvolvimento posterior, os espetáculos futebolísticos foram ganhando a participação importante e singular dos chamados torcedores. Neste sentido, é possível identifi carmos que o padrão de sociabilidade dos torcedores nas arquibancadas traduzia-se nas manifestações de apoio ao clube por meio das camisas, dos distintivos, das bandeiras e das manifestações de tristeza e alegria que caracterizam a derrota ou a vitória.

A partir do final dos anos setenta, este padrão muda para a dramatização das manifestações, que não se limitam a incentivar o clube, mas também a cobrar do clube e do time mais empenho nas situações de derrota. Neste contexto, a cena futebolística brasileira assiste, a partir dos anos oitenta, formas associativas de torcer, popularmente conhecidas nos dias de hoje como torcidas organizadas.

Importantes estudos já foram feitos para compreender estes grupos. Há pesquisas com abordagens antropológicas, como Toledo (1996) e Teixeira (2006); outras destacam a análise do signifi cado sociológico da adesão de jovens às torcidas organizadas. Independentemente da diversidade de enfoques que tratam do tema torcidas organizadas, um traço é peculiar a estes trabalhos: existe nestas análises uma congruência geográfica caracterizada pelo interesse exclusivo por torcidas organizadas das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

Dada a importância destas cidades para o desenvolvimento políticoeconômico e cultural do Brasil, as escolhas parecem estar dentro de um quadro razoável de justificativas. Porém, a heterogeneidade cultural deste país impõe aos pesquisadores de outras unidades federativas, a necessidade de trazer à cena acadêmica fenômenos importantes das culturas futebolísticas regionais, em clássicos como Atletiba (Atlético Paranaense e Curitiba), Bavi (Bahia e Vitória), Grenal (Grêmio e Internacional), entre outros.

Por conseguinte, a centralidade do sudeste brasileiro para as análises das pesquisas sobre torcidas organizadas nos motivou a desenvolver uma investigação científica que pudesse revelar à comunidade acadêmica as características próprias de uma agremiação torcedora do centro-oeste brasileiro.

Este artigo tem como objetivo divulgar dados preliminares de uma análise comparativa feita entre elementos etnográficos das práticas sociais da Torcida Esquadrão Vila-novense (TEV), de artigos de jornais e as referências teóricas relativas ao tema torcidas organizadas. O escopo deste trabalho é compreender os significados da adesão de torcedor goianiense à torcida organizada do Vila Nova Futebol Clube (VNFC).

A técnica utilizada para a coleta dos componentes etnográficos foi a observação total. Segundo Lüdke e André (1986), nesta técnica, o pesquisador desenvolve suas observações sem estabelecer relações pessoais com o grupo. Faz a observação sem ser visto ou percebido.

Também foram analisados textos jornalísticos publicados nos jornais Diário da Manhã On-line e O Popular. As amostragens para a coleta de dados etnográficos foram as práticas sociais desenvolvidas pela TEV durante as escoltas feitas pela Polícia Militar de Goiás em dias de jogos do VNFC e do Goiás Esporte Clube (GEC) durante o Campeonato Goiano de 2006.

O artigo está dividido em três secções; na primeira, voltamos às origens do VNFC, trazendo à luz o processo de sua fundação em meio às condições próprias da cidade de Goiânia e todo o arcabouço simbólico que a adesão ao VNFC constrói, produzindo formas peculiares de ver a cidade e também de ser visto por ela.

Na segunda secção, apresentaremos o surgimento na cena esportiva brasileira das torcidas organizadas e a descrição da etnografi a da TEV. Na terceira secção, faremos uma reflexão sobre a pertinência dos pressupostos da psicologia de massas para a abordagem do tema.

A CIDADE, AS DESIGUALDADES E OS ESTEREÓTIPOS SOCIAIS

É próprio das representações sociais da cidade de Goiânia conferir ao VNFC, o título de detentor da torcida mais vibrante, mais alegre, mais fiel e mais apaixonada. Motivo de orgulho entre diretores e torcedores do clube, tal título, em algumas ocasiões, chega a ser um fi m em si mesmo, como compensação ou consolo, pela diferença econômica, material e física para o arqui-rival GEC.

Este significado que o VNFC assume para a sociedade goianiense também é corroborada pelos meios de comunicação, quando tentam traçar um perfil do torcedor vila-novense. Segundo o jornalista Alexandre Petillo, o torcedor vila-novense é “apaixonado, vibrante, fiel, conservador, apegado às suas raízes, teimoso, forte em suas convicções, irredutível, acolhedor e romântico” (DM On-line, 15/04/2005 – “Perfil: o torcedor vila-novense”).

Outrossim, o goianiense mais atento, também já deve ter percebido que, este perfil vila-novense também tem seus aspectos negativos.

Para boa parte da sociedade goianiense o torcedor vila-novense (apelidado pelos torcedores rivais de “vila não vence”) tem como traço identificador mais fundamental, o prazer pelo sofrimento. A idéia surgiu diante da fidelidade do torcedor vila-novense (manifesta mais enfaticamente pela expressiva média de públicos mantida pelo VNFC, mesmo não tendo participação efetiva no cenário nacional) 1 frente à grande desvantagem que o VNFC leva nos confrontos com o GEC.

Ainda sobre o perfil do torcedor vila-novense, o jornal Diário da Manhã convoca a opinião de dois professores universitários que refutam a tese do prazer pelo sofrimento. Primeiro, com a palavra, a psicóloga, professora Beatriz Soares:

Não é que ele goste de sofrer. [...] Ele deve ser uma pessoa mais ligada às suas raízes, que não muda de opinião facilmente, mais apaixonado. Ou seja, a torcida colorada já pode emprestar e adotar o slogan do governo brasileiro: “Sou Vila Nova e não desisto nunca” (DM On-line, 15/04/2005 – “O perfi l real”).

Logo em seguida, uma professora, mestre em sociologia, é chamada a dar o seu depoimento:

Manter-se fiel em épocas ruins é um exercício de caráter. Veja só quantos times acabaram por falta de torcedores. Você conhece alguém que quer torcer para o Goiânia ou para o Olaria? (DM On-line, 15/04/2005 – “O perfil real”).

Os depoimentos relatados abrem possibilidades para entendermos a maneira como a cidade de Goiânia apreende, pelo menos simbolicamente, a relação do torcedor vila-novense com o clube. Poderíamos até mesmo, de forma empírica, apontar outras representações a respeitodesse torcedor. É comum em rodas de amigos ouvirmos comentários que imputam ao VNFC a agregação de “bandidos, maloqueiros, pobres e pessoas incultas” entre sua torcida. Durante o período em que desenvolvia este estudo foi possível coletar comentários tais como: “Eu torço para o Goiás. Já o meu pai, coitado, não estudou, torce para o Vila”; “A impressão que fica é a de que os torcedores do Vila Nova saem direto do Cepaigo para o Serra Dourada”.

Retraçando a história, percebemos que as representações das pessoas não estão assim tão distantes das condições objetivas que engendraram a fundação e construção do VNFC. De fato, o clube nasceu em uma região muito pobre da cidade de Goiânia, na época de sua construção. Vila Nova e adjacências situavam-se em uma região que foi escolhida para abrigar pessoas que vinham de outros estados para trabalhar na construção da cidade. A região era considerada uma área muito precária, com baixos índices de desenvolvimento urbano.

Sua fundação contou com a participação de policiais militares, da igreja católica que incentivou a fundação do clube com o objetivo de estimular a ocupação do tempo livre dos trabalhadores da região, e com o referendo de dona Gercina Borges, mulher do Interventor do Estado Novo – Pedro Ludovico Teixeira –, que também era chamada na época de “mãe dos pobres”. E é exatamente em um depoimento de dona Gercina que vamos buscar as condições da época. O ano é 1945.

Enquanto os vários setores de Goiânia propriamente dita foram delineados obedecendo aos mais modernos princípios da técnica urbana; enquanto as casas que aqui se constroem à risca dos preceitos de higiene e saúde [...] os barracos levantados no bairro Botafogo e na Vila Nova primam pela insalubridade e pela promiscuidade dos seus moradores (ORIENTE, 1981, p.165).

Um dado do depoimento acima nos chama a atenção, o fato de a primeira-dama dividir a cidade em “Goiânia propriamente dita” e os bairros Botafogo e Vila Nova, como se os dois últimos fi zessem parte da “Goiânia propriamente não dita”. A construção de Goiânia mostra a configuração das distinções sociais que teve o córrego Botafogo como importante divisor, não só geográfico, mas também social e cultural.

Pedreiros, mestre-de-obras, carpinteiros, serventes eletricistas, recrutados pelo capital ou não, vinham em bandos ou sozinhos, de cavalo, de carona, a pé, em busca de trabalho em Goiás, de melhoria das condições de vida, enfim, em busca de riquezas. Portanto, à crescente migração cuja meta era Goiânia, o Estado via-se na contingência de responder à situação construindo alojamentos à margem direita do Córrego Botafogo (ARAÚJO, 2006, p. 2).

Os antecedentes históricos do desenvolvimento de Goiânia atestam que a fundação do VNFC foi um importante fator de agregação de diversos e diferentes elementos culturais, pois, nascido na Vila Nova (margem direita do córrego Botafogo), o clube dava um sentido de identificação coletiva, com a cidade, a forasteiros, operários, ambulantes e miseráveis, que segregados do plano urbanístico central, tinham no clube de futebol um importante meio de identificação com a capital.

Na Vila Nova, bairro fundador do VNFC, predominava a figura do goiaba (pessoas vindas da Bahia que se radicavam em Goiânia).

Conheço esse caminho e no dia de Santo Reis deste ano completei 30 anos de Goiânia, trazido e transido aos 15 anos de idade nos solavancos de um caminhão pau-de-arara até me aportar na Vila Nova, nosso abrigo baiano, e iniciar uma trajetória que hoje me transforma em um verdadeiro GoiaBa (DM On-line, 26/03/2006 – “Goiaba”).

O perfil apaixonado do vila-novense esconde a história de um clube e sua torcida que nasce da discriminação e da desigualdade que caracterizaram a construção de Goiânia e se perpetuaram nas décadas que se seguiram até os dias atuais. Esta representação, forte até os dias de hoje, ainda constitui elemento de importância na definição pela preferência clubística 2 da sociedade goianiense.

Na secção seguinte, iremos mostrar o surgimento das agremiações burocratizadas de torcedores (torcidas organizadas), a maneira como reelaboram coletivamente a afinidade com o VNFC, e como esta apreensão é manifestada nas atividades desenvolvidas durante os espetáculos futebolísticos.

DO TORCEDOR FIEL E SOFREDOR AOS GRUPOS ORGANIZADOS

Antes de partirmos para a descrição e análise dos dados que obtivemos com as observações, é necessário fazer uma diferenciação entre os torcedores comuns e os torcedores organizados que, segundo Pimenta (1997), se distinguem pela burocratização que envolve as agremiações de torcedores organizados. 3 Quais elementos distinguem a forma organizada de torcer e as formas tradicionais? Quando exatamente, e quais fatores favoreceram o surgimento de grupos organizados de torcedores?

No Brasil, não é possível assinalar exatamente quando as torcidas organizadas surgiram. Autores como Pimenta (1997) e Toledo (1996) apontam a Charanga Rubro-negra (1942) e a Torcida Uniformizada do São Paulo (1940), como as primeiras agremiações de torcedores organizados do Brasil.

Porém neste primeiro estágio (1940-1970), as torcidas tinham o objetivo apenas de incentivar o clube. Muniam-se apenas de uniformes e músicas e não tinham a forma burocratizada que as torcidas cariocas e paulistas assumiriam nos anos 80. Neste primeiro momento, as torcidas se organizavam em torno da figura do chefe ou de um torcedor símbolo que personificava a torcida.

Com o surgimento das torcidas organizadas, o comportamento dos torcedores muda substantivamente, saindo da condição de coadjuvantes e passando a dividir com jogadores e dirigentes a protagonização do espetáculo. Isto posto, cabe-nos indagar sobre a segunda pergunta: Quais elementos favoreceram o surgimento de agremiações de torcedores organizados? Segundo Toledo (1996), é preciso levar em consideração o próprio contexto do Brasil nos anos 70, período que, sob a égide de um estado militar e autoritário, o futebol nacionalizou-se e internacionalizou-se, transformando-se definitivamente em mania nacional.

Transformado em mercadoria, o futebol contou com significativo investimento por parte do Estado em estrutura de base. Pelos menos 30 estádios em todo o país foram construídos com recursos do governo federal. Data da década de 1970 ainda, a criação da Loteria Federal e a criação do Campeonato Brasileiro de Futebol, fazendo a economia do futebol passar a representar 10% de todo o dinheiro que circulava no país.

Enquanto mercadoria espetáculo, para o consumo de massa, a partir dos anos de 1970, o futebol não só mobiliza grandes contingentes de consumidores, como também complexifica e diversifica as formas de se consumir, 4 onde as agremiações organizadas são somente uma das facetas engendradas pela indústria do espetáculo futebolístico.

Pimenta (1997), vai mais além: para ele, o aparelho repressivo que deu suporte ao projeto de desenvolvimento econômico do regime militar de 1964, também trouxe alterações profundas na vida política, social e cultural do Brasil. Segundo o autor, o projeto dos militares agudizou desigualdades econômicas, aviltou condições de vida, institucionalizou a violência, provocando uma desconstrução do tecido social.

A desconstrução do tecido social, ao mesmo tempo em que comprometeu as relações interpessoais, atomizou o indivíduo provocando um esvaziamento da construção de projetos coletivos, lançado-o em processos sociais pautados no vazio político, histórico e identitário. O autor ratifica a análise, dizendo que seriam as torcidas organizadas umas das formas que os indivíduos encontraram de reafirmação ante a destruição da identidade subjetiva e coletiva.

Apresentados os elementos distintivos dos torcedores organizados, bem como, levantadas questões preliminares acerca das causas do surgimento das torcidas organizadas, cabe neste momento, abrir um interregno para transcendermos o nível das expressões mais gerais do fenômeno e o compreendermos na sua particularidade, trazendo à tona hábitos, comportamentos e costumes intrínsecos ao universo da TEV.

Nos dias de escolta, por acordo com a PM, o ponto de concentração é sempre o pátio do Estádio Onésio Brasileiro Alvarenga – OBA (às 15:30h), localizado na sede do VNFC. Os torcedores, todos usando o uniforme vermelho e branco da agremiação, chegam de todas as partes da cidade por todos os meios de transporte, a pé, de ônibus e até mesmo de carro. Vale dizer que a prática da escolta é comum nas capitais brasileiras e objetiva evitar confronto entre grupos de torcidas rivais nas ruas da cidade em dias de clássicos.

O estádio OBA, situado na região leste da cidade de Goiânia, em um bairro conhecido como Setor Universitário, é tomado pela intensidade das cores e pelas músicas que são executadas por som mecânico, predominando o Funk e Hip Hop.

Iniciada a escolta, a massa de torcedores altera completamente apaisagem urbana dos bairros por onde passa. À primeira vista, a sensação é de choque, os integrantes da torcida são confinados em um retângulo formado nas extremidades por viaturas que ditam não só espaço como também o ritmo da marcha, que hora é acelerada pelas viaturas e pelos cavalos, provocando uma correria generalizada, animada pela multidão com a seguinte paródia: “Correr correr, correr correr é o melhor para sobreviver”.

A correria, induzida pelas viaturas e pelos policiais montados a cavalo, serve para diminuir o tempo de escolta e também para evitar que a massa de torcedores fuja do controle dos policiais que munidos de pistolas, coletes à prova de balas, cassetetes e montados em cavalos, circulam pelas laterais, garantindo com o emprego da força física o estabelecimento da ordem. Diga-se de passagem, foi comum durante as escoltas, ver policiais montados partirem para cima de torcedores com o intuito de intimidar e evitar a evasão do espaço confinado. O ambiente choca porque é visível o forte clima de hostilidade, recíproca entre os torcedores e a PM.

Indiferentes ao clima do ambiente, os torcedores seguem como que tomados por uma alegria descomunal, cantam gritos de guerra, disparam palavras de ódio contra o rival do jogo e reafirmam o sentimento de fidelidade, “amor” e confi ança no VNFC.

Em coro, as qualidades da TEV também são exaltadas: força, energia, alegria, raça, disposição, mescladas a gritos de ódio contra a torcida FJ (Força Jovem) do Goiás. Os gritos, disparados em uníssono, impressionam e chegam a contagiar. Os comportamentos nos permitem observar certa similaridade com outras festas de caráter popular onde os conteúdos predominantes são os “gritos, músicas, movimentos violentos, danças, procura de excitantes que elevem o nível vital, etc. Enfatiza-se freqüentemente que as festas populares conduzem ao excesso, fazem perder de vista o limite que separa o lícito do ilícito” (DURKHEIM, apud TOLEDO, 1996, p. 40).

É com essa mistura afetiva de amor e ódio, de uma excitação prazerosa 5 proveniente tanto da identificação com o clube, quanto do perigo a permear o espaço, que a escolta consegue arrebatar sócios, moradores e torcedores comuns.

Além da tensão dramatizada, a escolta é capaz de ativar um imaginário popular adormecido, ela recupera conflitos da dinâmica social de Goiânia que no cotidiano são sublimadas pelo comportamento pacífico do cidadão comum. Levanta-se na cidade –reforçada pela estimulação coletiva da TEV – a idéia da disputa entre a força, o poder econômico, contra a raça e a superação. A passagem da TEV mexe com emoções e sentimentos individuais, transformando-os em uma grande manifestação coletiva.

Assim que chegam ao Serra Dourada, aos poucos os jovens vão passando pela revista e adentrando o estádio. Lá, se juntam a torcedores que já os esperam com instrumentos de percussão e passam a acompanhar os mesmos gritos de guerra ditos durante a escolta. A concentração embaixo das arquibancadas faz parte do ritual, pois com o barulho ensurdecedor dos gritos dos instrumentos percussivos, cria-se nas arquibancadas (que tem os lugares dos torcedores organizados devidamente reservados) uma ansiedade e suspense em torno da entrada da TEV. Somente minutos antes da entrada dos times começar é que os integrantes da TEV aos gritos e numa imensa correria tomam seus lugares nas arquibancadas que só então são preenchidos. Olhando de longe, a sensação é de uma grande horda, dirigindo-se ao ataque.

O clima de festa não esconde o caráter bélico do espetáculo. Em matéria do dia 29/01/2006, dia do segundo confronto entre VNFC e GEC no campeonato, o jornal O Popular dava conta de uma estrutura de segurança que contava com um efetivo de 565 policiais militares e mais 90 cavalarianos e 80 soldados da tropa de choque. Câmeras monitoram pontos estratégicos no interior do estádio, que também adquiriu cinco binóculos, 25 detectores de metais, mais 25 rádios comunicadores a serem agregados ao material da polícia.

Apesar de todo o aparato de segurança, um jovem sócio da TEV foi atingido por uma pedra na cabeça no dia 29/01/2006 quando já estava dentro de um ônibus, ainda nas proximidades do estádio. O incidente aconteceu devido o torcedor não ter obedecido às ordens de voltar escoltado pela PM.

As transgressões às regras de segurança do espetáculo, estabelecidas pela PM, são marcadas por conflitos e por hostilidades de ambos os lados, porém, dado o poderio bélico da PM, esta hostilidade é muito maior por parte dos policiais. Foi regra, em todas as escoltas, a recomendação da PM para que os cânticos e xingamentos não fizessem alusões depreciativas à corporação. Os cânticos e xingamentos à torcida adversária eram permitidos pela PM, que ameaçou reagir com violência física caso os integrantes da TEV usassem xingamentos do tipo: “ei PM vai tomar no c...”, ou “Sou esquadrão, eu sou. Vou dar porrada eu vou e ninguém vai me segurar, nem a PM”.

Na escolta do dia 26/03/2006, por confusões entre os próprios integrantes da TEV, a polícia avança contra as pessoas, um princípio de tumulto se inicia. As pessoas tropeçam umas sobre as outras. Alguns policiais aproveitam o tumulto para agir com violência, outros mais cautelosos pedem calma aos jovens. No fim, foi só um pequeno susto que terminou com um torcedor detido pela polícia. Desta vez, o exagero levou o tenente a interceder, impedindo o espancamento do rapaz. A julgar pela atitude do tenente que apontava para pessoas portando máquinas fotográficas, a iniciativa deu-se por temor de que o espancamento público tivesse testemunhas.

Mas nem só de conflito vive a relação da TEV com a PM. Na mesma escolta do dia 26/03/2006, assisti a uma conversa entre o major e o tenente em que o primeiro dizia: “se o Vila ganhar mesmo do Goiás, e eles se comportarem, no próximo jogo a gente coloca umas bandeiras do Vila nos cavalos”. A hostilidade recíproca entre os integrantes da torcida e a PM não impossibilita manifestações de identifi cação entre ambos. Logo em seguida, o major, passou a falar o mesmo para os torcedores que aplaudiam a promessa e entoavam os gritos de incentivo ao Vila. O tenente faz ainda uma brincadeira com o major e incentiva os torcedores a dizerem em coro “Ão ão ão o major é esquadrão”.

TORCIDAS ORGANIZADAS E PSICOLOGIA DE MASSAS

Ao retomarmos a análise sobre as causas da adesão de torcedores à TEV devemos fazê-la levando em consideração, não somente causas externas, como o contexto macro-estrutural e o padrão de sociabilidade, mas também, fatores intersubjetivos da dinâmica grupal, que levam o indivíduo a agir de forma diferente dos papéis que assume no seu cotidiano. Uma análise interna parece ser oportuna para a introdução do que Freud (1996) chama de psicologia de massas, como sendo uma parte da psicologia social orientada para o estudo do indivíduo como membro de uma raça, nação, profissão, instituição ou como membro de uma multidão que, em ocasiões determinadas, para fi ns determinados se reúne para cumprir certo objetivo.

Sob determinadas situações, e não outras, aparece no indivíduo um fenômeno mental que Freud classifica de instinto social, capaz de promover comportamentos peculiares para a ocasião. A este conjunto de situações e comportamentos peculiares que regulam as atividades de certos coletivos dá-se o nome de grupo psicológico:

é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas obtidas por cada célula isoladamente (FREUD, 1996, p. 83).

Certamente, não estamos desconsiderando que os integrantes da TEV, enquanto cidadãos, habitam os mais diferentes espaços da cidade, podendo ou não trazer consigo a experiência da violência familiar, social ou institucional, a desagregação da ordem instituída que resulta no comportamento transgressor e a intolerância que é cultivada na própria dinâmica social. Até consideramos que estes componentes do comportamento da torcida organizada guardam suas mediações com o contexto social mais amplo. No entanto, a observação empírica dos fatos mostra que, como membro da torcida organizada, o comportamento do indivíduo ganha contornos mais acentuados.

Componentes similares à etnografia dos grupos psicológicos, descrita por Freud (1996), foram encontrados no comportamento da TEV durante as escoltas: bárbaro, 6 entusiasmado, violento, primitivo, heróico; extremado, acrítico, espontâneo, intolerante, exagerado e com ações simples, não adere à bondade, a vê como fraqueza e exige de seus heróis a força e a violência. A noção de impossibilidade desaparece, é conservador e tem respeito ilimitado pela tradição.

A coesão grupal que sustenta estes comportamentos é garantida, segundo Freud (1996), por um instinto de harmonização com a maioria que leva os indivíduos a se contagiarem com os comportamentos do grupo. Quanto maior é o número de pessoas que repetem o mesmo comportamento, mais força o comportamento ganha. O contágio do movimento é tanto mais acentuado quanto mais simples e grosseiro este for. Assim a carga do movimento se intensifica por interação e excitação mútuas.

Até aqui a caracterização do grupo psicológico nos oferece elementos comportamentais similares ao comportamento da TEV, que no seu comportamento verbal exige dos associados fi delidade, desprendimento e submissão do eu ao coletivo, sintetizando estes atributos com a frase que vai estampada em seu uniforme: “O Vila nos une. Nada nos separa”.

A frase também nos remete à idéia de que as características do grupo psicológico encontram na sugestionabilidade um forte elemento propagador, contudo ainda não explica o elemento principal da coesão do grupo.

Freud (1996) fala que a libido é a condição necessária para aunidade do grupo. É preciso haver confluência de energia libidinal de modo que o indivíduo se sinta mais motivado a confluir para essa energia do que opor-se a ela. Cumpre papel importante na constituição da libido a figura do líder, da idéia ou da coisa, como alguém ou algo que se transforma no próprio objeto do desejo do amor e da energia libidinal do grupo. Os laços libidinais que unem o grupo só são rompidos em situações de pânico, quando as ordens ou as sugestões originais são substituídas pelos cuidados com a própria vida, onde “os laços mútuos deixaram de existir e libera-se um medo gigantesco e insensato” (FREUD, 1996, p. 107).

O fato é que na desintegração ocorre um afrouxamento na estrutura libidinal do grupo, o indivíduo, antes destemido diante do perigo, sozinho, acha-se envolvido num medo gigantesco ante o pânico. No pânico acontece uma situação em que o individuo é voltado a reconhecer-se como indivíduo pelo medo.

Provisoriamente, as considerações acerca da teoria freudiana sobre a psicologia de massas parece ser terreno fértil para a análise de grupos sociais como as torcidas organizadas. As observações feitas para o escopo deste artigo mostram-nos que nas atividades da TEV há uma grande confluência libidinal convertida em amor ao VNFC. Energia esta responsável pela violência com que é tratada os torcedores rivais, pela forma destemida com que seus integrantes se lançam à defesa de suas verdades, pela intolerância que prevalece em situações em que a ação do outro (juízes, bandeirinhas, torcedores do clube adversário, jogadores e dirigentes) não corresponde às expectativas libidinais.

CONCLUSÃO

Da análise comparativa entre as práticas sociais da TEV e os apontamentos teóricos da literatura relativa ao assunto, concluímos que a TEV, por meio de seu comportamento verbal, dos rituais em dias de jogos, da utilização de uma simbologia e do padrão estético, demonstra muito mais convergências do que divergências em relação à manifestação dos mesmos elementos nas torcidas organizadas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Todavia há de se considerar que a visibilidades destas últimas ganham dimensões de caráter nacional devido às diferenças de contingente humano e dos recursos físicos e materiais que conseguem mobilizar.

Por outro lado, a análise etnográfica revelou-nos que as práticas sociais, desenvolvidas pela TEV, estabelecem relações estreitas com o contexto sociocultural e econômico da cidade de Goiânia, dando contornos simbólicos peculiares à agremiação ainda que em um sentido universal seu padrão de sociabilidade seja igual à de torcidas de outros centros urbanos do Brasil.

Finalmente, quanto ao escopo central deste artigo, a determinação das causas que levam à adesão de torcedores à TEV, não podem ser encaradas unilateralmente. O estudo nos mostrou ser pertinente para o tratamento do objeto, o desenvolvimento de uma postura investigativa que consiga captar as múltiplas determinações que o fenômeno sofre de fatores externos e internos.

 

Football, socialization, and mass psychology: rites, symbols, and violence in the streets of Goiania

ABSTRACT

This article aims at establishing a comparative analysis between the etnographic components found in the social practice of Torcida Esquadrão Vila-novense (a supporter association of Vila Nova football team) and the theoretical references found in Brazilian studies of supporter’s associations. The goal is to answer the following question: What does it mean for Vila Nova supporters to join “Torcida Esquadrão Vila-novense”? The research corpus was narrowed down to the social practices that were produced while supporters were being escorted by the military police during match days in which Vila Nova played Goiás Esporte Clube, along the 2006 state championship. Newspaper articles produced by Diário On-Line and O popular newspapers were also analised.

KEYWORDS: football – socialization – Goiania

 

Fútbol, sociabilidad y psicología de masas: ritos, símbolos y violencia en las calles de Goiânia

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo establecer un análisis comparativo entre los componentes etnográficos de las prácticas sociales de la Hinchada “Esquadrão Vila-novense” y las referencias teóricas en el campo de los estudios nacionales sobre hinchadas organizadas. Se busca, al alcanzar el objetivo, cumplir la finalidad de responder al siguiente cuestionamento: Cuales los significados de la adesión de hinchas vila-novenses a la agremiación “Hinchada Esquadrão Vila-novense”? El campo de muestreo quedó circunscrito a las prácticas sociales producidas en las escoltas organizadas por la Policía Militar en días de juegos del Vila Nova Futebol Clube contra el Goiás Esporte Clube, durante el Campeonato Goiano de 2006. También fueron analizados textos producidos por los periódicos Diário On-Line y O popular.

PALABRAS-CLAVE: fútbol – sociabilidad – Goiânia

NOTAS

* Mestre em Educação Brasileira, professor Assistente da Universidade Estadual de Goiás e da Universidade Católica de Goiás. Coordenador do Projeto de pesquisa “Futebol, desenvolvimento urbano e sociabilidade”.

1 No Campeonato goiano de 2006, o VNFC obteve melhor média de público até ser eliminado pelo GEC nas semifinais. Ver DM On-line, 18/03/2006 – “Público é vermelho”.

2 A hipótese central que levantamos é de que a preferência clubística de um indivíduo é resultado, entre outros fatores, da opção por um estilo de vida, manifesto na identificação com a inserção do clube na história da cidade, sua localização geográfica e conjunto das relações socioeconômicas que essa territorialidade é capaz de engendrar. Ver mais sobre o assunto em Foer (2005).

3 No Brasil em geral, essas entidades são registradas em cartório como entidades privadas sem fins lucrativos e possuem uma estrutura de poder hierarquizada que tem presidente, diretores e conselheiros.

4 Na moderna indústria do espetáculo futebolístico é possível traçarmos uma tipologia dos torcedores com as seguintes categorias: cliente orientado para o consumo, torcedor centrado no futebol e torcedor orientado para eventos. Ver sobre o assunto em Heitmeyer (2006).

5 As pessoas procuram as atividades miméticas ou esportivas exatamente pela excitação agradável provocada pela partida, pela tensão que é concebida por essa atividade, provocando a desrotinização do cotidiano. Ver mais a esse respeito em Reis e Aragão (2006 ).

6 Na nossa pesquisa o termo bárbaro é empregado para caracterizar a intolerância com o diferente. Incapacidade do indivíduo em assimilar outros valores e hábitos e culturas. Ver sobre o assunto em Francis e Novaes (2004).

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, O. C. G. A construção de Goiânia e o protestantismo. (manuscrito). Disponível em: <http://www.bc.ufg.br/sophia>. Acesso em: 2 jul 2006. DIÁRIO DA MANHÃ ON LINE. Perfil: o torcedor do Vila. Goiânia,

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Recebido: 30 de setembro de 2006
Aprovado: 9 de novembro de 2006

Endereço para correspondência:
Rua dona Gercina nº 135, aptº 12, bloco H
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