AS CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOBRE INTELIGÊNCIA HUMANA PARA A PEDAGOGIA DO ESPORTE

Tatiana Passos Zylberberg *

Vilma Leni Nista-Piccolo **

Resumo

Com base nos estudos de Howard Gardner, autor da teoria das Inteligências Múltiplas (IM), e por meio das pesquisas que temos empreendido neste campo, nos propomos a compreender a(s) inteligência(s) de uma maneira diferente daquela proposta pelos modelos clássicos. Defendemos que o entendimento de uma visão pluralista da mente humana inspira uma pedagogia da singularidade, na qual ensinar envolve reconhecer os múltiplos modos de aprender de um aluno. Destacamos, ainda, a responsabilidade dos professores de Educação Física em disponibilizar diferentes caminhos para ensinar um mesmo conteúdo ou modalidade esportiva. Apontamos, neste artigo, algumas contribuições, visando melhorar as propostas pedagógicas para se ensinar o esporte.
PALAVRAS-CHAVE: inteligência – aprendizagem – pedagogia do esporte

Introdução

A pedagogia do esporte tem como foco a arte de ensinar a praticar uma modalidade esportiva. Por meio dela é possível preparar melhor, ou não, um aluno para executar determinadas habilidades exigidas nesta prática. Uma pedagogia eficaz pode levar um aluno a descobrir também o prazer de se exercitar, auxiliando-o a ter consciência de suas capacidades. O bom professor faz de sua atitude pedagógica momentos de técnica, arte e reflexão, mostrando diferentes maneiras de se aprender um movimento (NISTA-PICCOLO, 1999). Muitas vezes, os professores de Educação Física elaboram propostas pedagógicas, mas que não reconhecem em seus alunos as suas múltiplas potencialidades. Assim, não conseguem perceber quais são os caminhos que eles aprendem com mais facilidade, ou ainda, não sabem detectar quais as razões que impedem alguns alunos de aprender, identificando suas dificuldades.

Podemos elencar vários aspectos pedagógicos sempre presentes na prática deste profissional, mas este trabalho busca refletir sobre aqueles que norteiam a aprendizagem, focando seu olhar nas questões da inteligência humana. Com a intenção de revelar como uma compreensão mais plural sobre a inteligência humana pode contribuir na pedagogia do esporte, buscamos destacar pontos que se mostram relevantes no processo ensino-aprendizagem. São inquietações que pulsam veementemente em nossa prática cotidiana, ao nos depararmos com situações inadequadas de aprendizagem.

Defendemos que a visão que temos sobre a inteligência dos alunos direciona a maneira de pensarmos a aprendizagem, e com isso, altera a nossa concepção de pedagogia do esporte. Afirmamos que a visão tradicional de inteligência acabou “autorizando” o confinamento da inteligência plural numa pedagogia da padronização. Isso porque até 1970, a inteligência humana ainda era vista prioritariamente como uma característica biológica do indivíduo, o que fortalecia a crença de que os processos educacionais seguiam “naturalmente” determinados padrões. De maneira simplista, acreditava-se que as pessoas que não conseguiam aprender (da mesma forma e no mesmo tempo que as outras) tinham algum déficit intelectual, ou “falta” de capacidade.

Falamos em “capacidade”, porque historicamente não se utilizava o termo “inteligência” para se referir ao jogador que converte a bola numa cesta espetacular, diferenciada e de uma maneira que ninguém ensinou; ou para comentar a facilidade da execução de movimentos e um bom desempenho técnico de um atleta; mesmo para falar de um aluno que, nas aulas de Educação Física, consegue aprender diferentes modalidades em menor tempo do que os outros.

Apesar de a inteligência não ser colocada de forma evidente nas discussões sobre a pedagogia do esporte, é certo que os professores de Educação Física também baseiam suas compreensões apenas no desempenho dos alunos, se são, ou não, capazes de aprender e fazer, até mesmo após inúmeras repetições.

Escrevemos sobre inteligência fundamentadas nos estudos de Howard Gardner, autor da teoria das Inteligências Múltiplas (IM). Esta teoria apresenta a multiplicidade do potencial humano como um referencial da psicologia que nos permite rever nossas propostas pedagógicas. Isto é, se as pessoas têm diferentes possibilidades de aprender, a educação humana, seja ela formal ou não-formal, não pode continuar restrita à pedagogia da padronização.

Assim, ensinar um aluno a executar um movimento “novo” requer um olhar cuidadoso sobre o seu potencial, reconhecendo o seu modo de aprender, estimulando suas potencialidades, a partir do entendimento de uma visão pluralista da mente humana.

A singularidade humana e a pluralidade da inteligência

O conceito de inteligência proposto por Gardner (1994), inicialmente, era a capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos, importantes em determinado ambiente ou comunidade cultural. Duas décadas após a publicação de sua teoria, ele reformulou este conceito substituindo o termo “capacidade” por potencial biopsicológico, querendo distanciar-se da concepção mais biológica e ressaltar que as influências culturais e psicológicas desempenham um papel determinante. Segundo Marina (1995, p. 277): “A inteligência inventa novos problemas e procura resolvê-los”.

A contribuição fundamental da teoria das Inteligências Múltiplas, segundo Najmanovich (2001), foi a mudança da pergunta “Quão inteligente você é?” para a indagação “De que modo você é inteligente?”. Esta alteração desencadeou um giro crucial que ampliou gradativamente as discussões mais estéreis e polêmicas que marcaram as primeiras pesquisas sobre a inteligência humana.

Indo além do modelo unitário, Gardner (1994) apresentou inicialmente sete inteligências relativamente autônomas: lingüística, lógico-matemática, espacial, corporal, musical, interpessoal e intrapessoal. Acrescentou, anos depois, mais duas possíveis inteligências: a naturalista, que foi posteriormente confirmada, e a existencialista, que até o presente momento se encontra em discussão. Na visão desse autor, outras inteligências podem ser identificadas desde que respeitem os mesmos critérios de análise pelos quais todas as oito apontadas já passaram.

Para melhor compreender esta teoria, Zylberberg (2007) sintetizou os conceitos das inteligências atribuídos por Gardner (1994, 1998, 2000):

Gardner (2006) reafirmou que o número de inteligências é menos importante do que a premissa de que há uma multiplicidade delas e que cada ser humano tem um mix único, ou perfil único de pontos fortes e pontos fracos nas inteligências. Segundo Gardner (1994, p. 45): “não há e jamais haverá uma lista única, irrefutável e universalmente aceita de inteligências humanas”, porque em larga medida a inteligência não existe como uma entidade fisicamente verificável, mas é um construto que se manifesta em comportamentos.

Enquanto psicólogos acadêmicos permaneceram mais relutantes a esta teoria, os educadores a viram como uma possibilidade. Uma das razões pelas quais a teoria encontrou abrigo na educação, é que as experiências diárias dos educadores confirmavam que os alunos pensam e aprendem de formas variadas. Esta concepção levou muitos educadores a buscar formas mais adequadas para atender as necessidades individuais dos alunos.

Cabe ressaltar que ainda persistem interpretações simplistas que apontam cada uma das inteligências como estratégias pedagógicas. Encontramos também propostas contraditórias aos princípios da teoria, porque fomentam e aplicam testes para detecção de talentos de tipos específicos de inteligência.

É importante, nesta concepção, não confundirmos inteligência com domínio. Inteligência é um potencial biológico e psicológico que temos por sermos membros da mesma espécie. Segundo Gardner (2000, p. 105), “Domínio é um conjunto organizado de atividades dentro de uma cultura, caracterizado por um sistema de símbolos específicos e as operações dele resultantes”. Então os domínios ou disciplinas são capacidades humanas socialmente construídas.

Para Najmanovich (2001, p. 53), Gardner propôs-se a pensar que a inteligência, longe de ser uma entidade única e abstrata, “é uma atitude que se expressa através de sistemas simbólicos diferentes e que isso sempre ocorre num domínio cultural”. Discutindo a questão da pluralização das inteligências, a mesma autora afirma que:

Particularmente estéreis são as polêmicas sobre o “número exato” de inteligências. Essa questão, aparentemente ingênua, pressupõe que existe em nós diversas formas preestabelecidas de ser inteligente, ou seja, a questão pressupõe a reificação da inteligência, mas já não de uma, e sim de várias (NAJMANOVICH, 2001, p. 54).

Por isso, a observação de Najmanovich (2001, p. 52) é extremamente pertinente quando diferencia a multidimensionalidade da inteligência das “múltiplas inteligências”, ressaltando que é impossível “desenvolver um modelo teórico onicompreensivo do conjunto complexo de comportamentos que chamamos de inteligência”.

Para Gardner (1994, p. 278):

Não deveríamos pensar nas inteligências como envolvidas numa situação de soma zero: nem deveríamos tratar da teoria das inteligências múltiplas como um modelo hidráulico, onde um aumento em uma inteligência necessariamente impõe o decréscimo em outra.

Em relação à questão da multiplicidade, além da ruptura do modelo tradicional de inteligência amplamente difundido pelos psicometristas, precisamos superar a compreensão simplista comum a muitos que fazem apenas uma leitura superficial da teoria proposta por Howard Gardner. Para o autor, cada inteligência é uma manifestação global que envolve múltiplas habilidades cognitivas, em contextos culturais específicos.

Não devemos, simplesmente, “transportá-las” para a educação e reificar tipos distintos de inteligência. Nossa busca teórica deve se dar em função do conteúdo revolucionário, inspirando-nos a compreender a(s) inteligência(s) de uma maneira diferente daquela proposta pelos modelos clássicos. É importante saber que as pessoas demonstram inteligência também na forma de criar uma obra de arte, tocar um instrumento, representar os sentimentos em gestos e até na maneira de compreender a complexidade do outro apenas num breve olhar (ZYLBERBERG, 2007).

É a partir desta concepção que identificamos como o aluno aprende, ou seja, como se dá o processo que o leva à compreensão do conhecimento. Debruçamo-nos, então, sobre questões pedagógicas presentes no ato de ensinar, e apoiando-nos ainda em Gardner (1999), encontramos o conceito de “rotas de acesso”, o qual procuramos elucidar adiante.

As “Rotas de acesso” ao conhecimento: um aspecto pedagógico importante na aprendizagem

Durante muitos anos alguns psicólogos defenderam o ideário da inteligência única e mensurável. Com este referencial era permissível o professor cometer o “erro pedagógico” de supervalorizar a aprendizagem dos alunos em função da velocidade ou da quantidade de respostas certas. Esta legitimidade científica surtiu efeitos profundos. O dogma hereditarista prevaleceu e o círculo vicioso comprovou-se: o fracasso de alguns alunos na aprendizagem se dá porque eles nasceram assim, e, portanto, continuarão incapazes de aprender.

A busca pela uniformidade e a visão da inteligência como fixa e imutável levaram alguns professores a apontar como “destino inevitável” o fracasso na aprendizagem do aluno. Para Fonseca (2002), a seriedade desta questão não pode ser deixada aos políticos da educação ou aos tecnocratas da inteligência, porque o imobilismo pedagógico que se esconde atrás da exclusão e que apela para uma espécie de fatalismo biológico, confunde diferenças com desigualdades.

Entender o ser humano numa perspectiva múltipla de potencialidade nos obriga a buscar diferentes meios de ensinar nossos alunos. Segundo Gardner (1999, p. 220), “os educadores precisam levar em conta as diferenças entre as mentes de estudantes e, tanto quanto possível, moldar uma educação que possa atingir a infinita variedade de estudantes”. Para o autor, estabelecer as rotas de acesso é abrir os caminhos que podem levar o aluno a desenvolver, ou aprimorar suas capacidades mais esquecidas, ou talvez camufladas pelas dificuldades. “Se eu identifico os diferentes potenciais do meu aluno, consigo imaginar que sempre há um caminho, um meio mais fácil para ele aprender, e é por esse acesso que devo ensinar” (NISTA-PICCOLO, 2005, p. 6).

Gardner (2000), com base em sua perspectiva da multiplicidade da inteligência humana, organiza uma proposta educativa em torno de sete rotas de acesso:

  1. Narrativa: caracteriza-se pela aprendizagem por meio de histórias ensinadas por quaisquer veículos midiáticos.
  2. Quantitativa e numérica: quando as pessoas respondem com maior facilidade aos aspectos de um tema que convidam a uma consideração de ordem numérica.
  3. Lógica: está relacionada diretamente a capacidade de dedução, tradicionalmente por meio de silogismos e interpretações complexas de situações, fatos e conhecimentos.
  4. Existencial: examina as facetas filosóficas e terminológicas de um conceito ou assunto. Este enfoque é apropriado para aquelas pessoas que gostam de fazer perguntas fundamentais sobre o mundo, a vida e a humanidade.
  5. Estética: por meio desta rota as pessoas respondem a qualidades formais e sensoriais como: a cor, a linha, a expressão e a composição de uma pintura ou a métrica de um poema. A ênfase recai sobre os aspectos sensoriais ou superficiais que atraem e favorecem uma postura artística ou contemplação das experiências de vida.
  6. Experiencial: responder com o próprio corpo, numa atividade em que a pessoa possa se envolver completamente, construindo um projeto, manipulando materiais diversos ou em múltiplas vivências de movimento.
  7. Social: mais adequado às pessoas que aprendem melhor em grupo do que sozinhas. As linguagens utilizadas são variadas, exploradas e reconstruídas em equipe.

Estamos tratando de rotas de acesso aos conhecimentos, tanto para que os professores forneçam alternativas de compreensão aos alunos quanto para que estes demonstrem o que aprenderam do conteúdo proposto. Para cada aluno, os caminhos para que isso aconteça podem variar. Quando as rotas de acesso são pouco diversificadas, há uma percepção equivocada por parte do professor e do aluno de que a inteligência de alguns é “impossibilitada” de aprender, mas na verdade, é a proposta pedagógica usada pelo professor que adota uma única rota, ou seja, o aluno tem a falsa liberdade de escolher por caminhos já traçados. As “rotas” convidam os professores e alunos a criarem variações para acessar ou demonstrar o conhecimento. Como enfatiza Esteban (2002, p. 25), “são poucas as crianças que conseguem responder às exigências do modelo utilizado como referência”.

Quando rotas alternativas são adotadas pelo professor ou propostas pelos próprios alunos, os conteúdos podem tornar-se concretos, e serem vivenciados de múltiplas formas, favorecendo a aprendizagem dos alunos, que mobilizam diferentes inteligências.

Ao pensarmos que o movimento humano pode ser um meio, uma rota na formação e no desenvolvimento das crianças e dos jovens, apontamos esta mesma responsabilidade aos professores de Educação Física, os quais também devem disponibilizar diferentes caminhos para ensinar um mesmo conteúdo ou modalidade esportiva. “Uma criança cuja via corporal é mais forte, certamente aprende com mais facilidade as tarefas ensinadas por meio do corpo, pelo movimento, isto é, aprende melhor pelo ‘fazer’ do que pelo ‘ler, ouvir, ver, decifrar’ etc...” (NISTA-PICCOLO, 2005, p. 6).

Urge compreendermos a aprendizagem humana e propor “pedagogias” para aprendizagem do esporte, por inúmeros caminhos. Isso indica que a pedagogia do esporte, não é uma pedagogia apenas para melhorar a inteligência corporal cinestésica.

Nista-Piccolo (2005, p. 6-7) se apóia na orientação de Howard Gardner, para explicar o ato de ensinar um movimento, esclarecendo que:

Ensinar alguém a fazer algo que ele ainda não sabe implica em diversos fatores, como por exemplo: partir do que ele já sabe fazer; descobrir o que ele sabe fazer com mais facilidade; perceber o seu nível de motivação para execução daquela tarefa; estar num ambiente apropriado para estimulá-lo a essa aprendizagem; saber quais são os meios facilitadores para ensinar tal fundamento etc. ... gardner (1999) explica-nos que a teoria das Inteligências Múltiplas gera muitas maneiras de se oferecer uma informação, e que se o fornecimento dessa informação ocorrer por um ponto de entrada eficiente, certamente o aluno irá se lembrar com facilidade e poderá se envolver mais com aquela aprendizagem. Há uma abundância de processos pelos quais posso descrever um determinado tópico e não preciso, necessariamente, descrevê-lo sempre da mesma maneira. Então, quando detecto a via facilitadora do meu aluno, é por meio dela que devo ensinar. Imagine um movimento novo e diferente do elenco que meu aluno possui, como devo explicar? É preciso mostrar o movimento? É melhor separá-lo em partes? Essas dúvidas sempre surgem no pensamento do professor, mas é importante que ele saiba que os alunos não aprendem da mesma forma, enquanto alguns aprendem melhor quando alguém explica, falando sobre o movimento, outros aprendem melhor vendo, assistindo alguém fazendo aquele movimento ao vivo ou por meio de um vídeo. Mas há também aquele aluno que aprende melhor fazendo, experimentando as sensações de partes daquele movimento novo para ele. Portanto, não há regra única a não ser as seguintes recomendações: conheça bem cada aluno e crie maneiras diferentes de ensinar, nunca use o mesmo caminho, mude as rotas para que vários alunos possam ter acesso ao conhecimento, levando-os à compreensão do movimento antes que possam executá-lo por inteiro. O desafio pedagógico com o qual o professor se depara é exatamente descobrir qual o ponto de entrada mais promissor para seus alunos chegarem à determinada compreensão.

O pedagogo do esporte se ocupa com o esporte e o movimento, mas precisa estar atento ao fato de que o esporte institucionalizado favorece a função comparativa do movimento. Além disso, deve saber como estimular a inteligência corporal cinestésica de seus alunos.

Aprisionados à concepção dualista, não nos percebemos como seres corporais. Por isso, talvez, ainda tenhamos tanta dificuldade em elaborar propostas pedagógicas adequadas tanto para àqueles que não apre(e)ndem o esporte apenas pela observação do modelo, pela repetição do gesto técnico como para os outros que aprendem apenas sob a instrução verbal sobre o movimento. Como afirma Gardner (1994, p.162):

Uma descrição do uso do corpo como uma forma de inteligência pode, a princípio, chocar. Houve uma separação radical em nossa tradição cultural recente entre as atividades do raciocínio, por um lado, e as atividades da parte manifestamente física da nossa natureza, conforme epitomizada por nossos corpos, do outro. Este divórcio entre o “mental” e o “físico” não raro esteve aliado à noção de que o que fazemos com nosso corpo é um tanto menos privilegiado, menos especial do que as rotinas de resolução de problemas desempenhadas principalmente através do uso da linguagem, da lógica ou de algum sistema simbólico relativamente abstrato.

Olhar pela corporeidade possibilita-nos perceber a inteligência no corpo dos alunos. Afinal, “o corpo não é um meio intermediário entre o mundo exterior e a consciência, mas possui uma inteligibilidade, uma intenção, um sentido de totalidade que se manifesta no movimento e no entendimento simultaneamente numa palavra, na motricidade” (NÓBREGA, 2005, p. 65).

Assim, o inteligível se entranha no corpo e, ao mesmo tempo, é aquele que nunca vemos. É aquele que tradicionalmente só enxergamos mediados pela fala ou pela escrita. Que outros princípios metodológicos podem inspirar os professores de Educação Física a criarem novas “portas de entrada” para o conhecimento, quando o aluno não demonstra aprender o esporte por um determinado caminho?

Além das dificuldades de aprendizagem

O desafio de repensar o que entendemos como inteligência e aprendizagem é muito amplo e está fortemente enraizado nas questões educativas. O professor deve exercitar continuamente sua capacidade de ampliar sua compreensão sobre a inteligência dos alunos, deve solidificar uma atitude apreciadora e observar a aprendizagem do aluno num olhar investigador. Nesse sentido, Pozo (2002, p. 255) expressa com exatidão: devemos “corrigir o aprendiz, não apenas a tarefa”. Para corrigir o aprendiz, é importante compreendermos a inteligência como um construto complexo e a aprendizagem além da visão das “dificuldades”.

Zylberberg (2007) observa em uma pesquisa que as professoras concordam com a idéia de que as pessoas são diferentes, portanto precisam aprender por estratégias e atividades diferenciadas, ou ainda que uns devem permanecer mais tempo do que os outros alunos numa mesma proposta educativa. Apesar de enxergarem as diferenças, suas atitudes pedagógicas estavam sempre voltadas à semelhança.

De acordo com Macedo (2005), a escola está pautada num modo de pensar calcado nas semelhanças. Para o autor, a “lógica das semelhanças” é a “lógica da classe”, e a “lógica das diferenças” é a “lógica das relações”. Na lógica da classe, explica o mesmo autor, “somos redutíveis ao critério que nos define. Na lógica da relação, somos irredutíveis no sentido de que não somos reduzidos a uma coisa ou outra, porque quem nos define é a relação” (MACEDO, 2005, p. 25).

Se nos guiarmos pela lógica das classes, a dificuldade pode ser um critério para “formar” um grupo de alunos que não aprende e fixá-lo nesta semelhança. Se nos guiarmos pela lógica das diferenças, a relação professor-aluno, ensino-aprendizagem, acerto-erro passa a ser analisada continuamente, sem reduzir o que erramos ao que não sabemos, ou ao que somos. Todos são responsáveis na lógica das relações

Segundo Gardner (2000, p. 115), não somos iguais, nem temos o mesmo tipo de inteligência, por isso a educação se torna mais eficaz se “essas diferenças forem levadas em consideração do que ignoradas ou negadas”.

Mas como os diferentes alunos podem aprender num contexto em que um mesmo professor ensina “do mesmo modo”, em um mesmo espaço e tempo didáticos?

Se queremos que os alunos se ajustem às novas demandas de aprendizagem, devemos começar mudando a forma como lhes ensinamos e definimos suas tarefas de aprendizagem. Devemos modificar de forma progressiva o ambiente, a cultura da aprendizagem em que se movem, não só em longo prazo, mas principalmente nos cenários de aprendizagem que vivem cotidianamente (POZO, 2002, p. 264).

Ranciere (2002, p. 72) provoca-nos, quando alerta que o nosso problema não é provar que todas as inteligências sejam iguais, mas “ver o que se pode fazer a partir dessa suposição”. Defendemos que no processo de ensino-aprendizagem é preciso saber ver o que nos escapa. Aquilo que os nossos alunos emanam, “tudo aquilo que não se estampa no imediato” (PEIXOTO, 1992, p. 305), algo que não se deixa facilmente retratar.

A questão das dificuldades é extremamente complexa e multifacetada. Pozo (2002) nos convida a refletir sobre as dificuldades de aprendizagem que os alunos enfrentam para que possamos buscar meios de ajudá-los a superá-las, ultrapassando o modelo de aprisionamento nas dificuldades para a perspectiva das possibilidades. O autor nos desafia a transferir progressivamente aos alunos o controle de suas aprendizagens e a abandonar a crença de que somos eternamente necessários ou unicamente responsáveis. “O enfoque reside, então, no ato de aprender e não no de ensinar” (BICUDO, 2006, p. 96).

A dificuldade de aprendizagem não é um distúrbio, é um sintoma cuja causa envolve um conjunto de fatores, incluindo a prática pedagógica, o método e as relações professor-aluno, aluno-aluno, e não se localiza apenas fora da escola, mas muitas vezes surge dentro dela. A dificuldade de aprendizagem é um desafio, que propõe ao professor rever suas concepções pedagógicas. Acreditamos que os professores podem ajudar os alunos em suas dificuldades, utilizando outras rotas de acesso, considerando os “sinais” manifestados em comportamentos inteligentes. A perspectiva plural da inteligência pode nos ajudar a repensar a pedagogia do esporte.

Como esclarece Najmanovich (2001, p. 23): “Só podemos conhecer o que somos capazes de perceber e processar com nosso corpo”. O corpo também pode revelar conhecimentos indizíveis. Para aprender, não podemos ignorá-lo. Assim, é importante que os professores percebam seus alunos em sua corporeidade para poderem ver outros sinais que anunciam a multiplicidade da inteligência humana.

Escolhemos a teoria das múltiplas inteligências como um de nossos referenciais, não apenas seguindo ventos reformistas ou pensando em ofertar uma cosmética educativa (NAJMANOVICH, 2001), mas apostando na compreensão pluralista do ser humano e no papel fundamental da escola em seu desenvolvimento pleno.

Precisamos aprender que somos inteligentes. Precisamos aprender a perceber a inteligência e a aprendizagem nas mais diversas formas para que não continuemos “embrutecendo” nossos alunos. O “embrutecimento” dá-se, quando a inteligência do mestre anula a inteligência do aluno

O propósito da educação seria ensinar o que se ignora e, ao mesmo tempo, possibilitar ao outro utilizar a sua própria inteligência para aprender o que todos ignoram. Esta nebulosa fronteira entre nossa inteligência e a do outro precisa ser ultrapassada continuamente.

Como professores não podemos mais embrutecer a inteligência do outro. Por isso, Zylberberg (2007) defende que as relações entre inteligência, corporeidade e aprendizagem exigem, ainda, que esta discussão seja assumida numa dimensão ética, levando em conta a noção de alteridade implicada na relação pedagógica.

Cabe aos professores e alunos, conjuntamente, identificarem as rotas de acesso individuais e proporem diferentes formas de aprender e avaliar. As implicações educacionais do que discutimos até agora são, ao mesmo tempo, grandes e sutis. Existem limites culturais e cientificamente impostos sobre a inteligência do outro e a nossa. Melhorar as propostas pedagógicas para se ensinar o esporte, com base numa perspectiva mais ampla sobre inteligência-aprendizagem, requer que os professores se comprometam com o processo.




POPULAR BODY CULTURE AS PART OF A MULTICULTURAL SYLLABUS IN PHYSICAL EDUCATION

ABSTRACT

Schools have harbored a manifold of cultural identities since education became accessible to all. Historically, however, knowledge from minority groups was never accepted into the school syllabus and dominant culture prevailed, thus calling for urgent studies to be made in order to show ways of transforming the current state of affairs. This action research project aims at developing a multicultural syllabus for physical education that stems from the heritage of popular body culture. Results gathered through critical analysis of experience show that popular culture contents and ethnography-based teaching methodologies can promote the strengthening of a community’s cultural identity.
Keywords: Multiculturalism – popular culture – syllabus.




CULTURA CORPORAL POPULAR COMO CONTENIDO DEL CURRICULO MULTICULTURAL DE EDUCACIÓN FÍSICA

RESUMÉN

Con la democratización del acceso, la escuela recibió múltiples identidades culturales. Históricamente, los conocimientos de los grupos desprovistos de poder fueron negligenciados en el currículo dominante, así despunta como urgente la realización de estudios que indiquen caminos para una transformación de ese cuadro. Esta investigación-acción buscó desarrollar un currículo multicultural para Educación Física a partir del patrimonio de la cultura corporal popular. Los resultados, a través del análisis crítico de la experiencia, indican que los contenidos de la cultura popular y la metodología de enseñanza inspirada en la etnografía proporcionaron el fortalecimiento de la identidad cultural de la comunidad.
Palabras-clave: Multiculturalismo – cultura popular – currículo.




NOTAS

* Doutora em Educação Física pela Unicamp e docente na Metrocamp.
** Doutora em Psicologia Educacional pela Unicamp. Universidade São Judas Tadeu /Metrocamp.

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Recebido: 6 de dezembro de 2007
Aprovado: 16 de dezembro de 2007

Endereço para correspondência:
tatiazylberberg@gmail.com vilma@nista.com.br

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