Educação do Corpo na e pela Linguagem da Lei: potencialidades da legislação como fonte

Andréa Moreno *
Verona Campos Segantini **


Resumo

O estudo investiga a educação do corpo nos espaços de sociabilidade do urbano em Belo Horizonte, de 1897 a 1905. A legislação apresenta-se como fonte importante, pois possibilita a análise de projetos imaginados pelo poder público, estipulando regras para utilização do espaço urbano. Ela traz textos privilegiados, que codificam valores desejáveis e regulamentam comportamentos sociais. Os decretos deixam claras as intenções do Estado, em regular a relação da sociedade com o espaço que vai ocupar, e mostram que a crescente urbanização categoriza espaços, determinando práticas sociais autorizadas ou ocultas, criando uma nova sensibilidade para o corpo.

Palavras-chaves: Educação do corpo – cidade – legislação.


Introdução

Este texto apresenta as reflexões advindas de um projeto de pesquisa intitulado “Aparato legal e educação do corpo: prescrição de comportamentos e circulação de idéias”.1 No desenvolvimento desta pesquisa, na prática dos arquivos, deparou-se com farta documentação de natureza legal/jurídica que, de alguma forma, incidia sobre pretendidos processos educacionais para o corpo desejado aos habitantes da nova capital mineira.

Nessa cidade que se queria moderna, os novos ordenamentos temporais e espaciais deveriam refletir-se nas atitudes, nos gestos e comportamentos, nas maneiras de ser e de pensar, nas subjetividades. A legislação, intensamente produzida no período, configurou-se então como fonte relevante para a apreensão e o estudo dos processos de educação do corpo. Além de sua potencialidade, notou-se que trabalhar com este conjunto documental apresentava-se como original, inaugurando novos olhares, uma vez que poucos estudos, que tinham como objeto a relação cidade-corpo-educação em Belo Horizonte, privilegiavam a legislação, referente à cidade, como fonte.

Assim, tornou-se importante estudá-la, tanto de maneira mais ampla (como fonte para a história da educação), como de maneira mais específica (para a educação do corpo); particularmente, ainda, no interesse deste projeto, foi igualmente necessário discutir a sua materialidade e as formas de sua circulação. O presente estudo tem também o propósito de ser um texto-referência para nosso grupo de pesquisa, na medida em que, no fazer historiográfico e no exercício do arquivo, demanda estas reflexões.

Refletir, então, sobre a utilização da legislação como fonte, fez-nos dialogar com textos e autores que tratam do tema. O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho (1998) – “A legislação escolar como fonte para a História da Educação: uma tentativa de interpretação” – foi tomado como referência central, tanto em termos teóricos como metodológicos, por levantar questões não só pertinentes ao nosso projeto, como também por considerar profícuo o uso dos ordenamentos legais como fonte para a história da educação. Inspiradas em Faria Filho (1998), as temáticas que elegemos para interrogar tais fontes foram: a disponibilidade e a acessibilidade dos documentos (estado de preservação, local de guarda, por exemplo); a fertilidade do uso da legislação como fonte (seus limites e suas possibilidades); o contexto de produção das leis (sujeitos e instituições envolvidos); a legislação como linguagem e prática social; a materialidade e a circulação dos ordenamentos jurídicos produzidos no período.


Aparato legal: fértil conjunto documental para a história da educação do corpo na cidade?

Ao debruçarmo-nos sobre a legislação nos questionamos sobre a pertinência em privilegiar tal conjunto documental, tido muitas vezes como limitado e pouco fértil para os temas da História Cultural. No âmbito da História da Educação, a motivação crescente dos pesquisadores para o estudo das práticas, dos usos e das apropriações de objetos educacionais fez com que se privilegiassem outros tipos de fontes.2 Ainda que alguns estudos façam o cruzamento de fontes diversas com os ordenamentos legais, estes, pelos temas que abordam, acabam por restringir-se ao uso da legislação escolar.3

Nosso interesse no estudo da educação do corpo, nos espaços de sociabilidade do urbano (para além da instituição escolar), permitiu ver que o uso da legislação, como fonte, e mesmo como objeto, é promissor, considerando que, sendo representações, as prescrições nela contidas codificam valores e atributos desejáveis aos (e desejados dos) sujeitos, regulamentando, sancionando e legitimando comportamentos sociáveis para eles.

O foco na legislação possibilitou, então, uma análise de projetos imaginados e implementados pelo poder público, estipulando regras para utilização do espaço urbano. Os decretos e regulamentos analisados evidenciam as intenções do Estado, como produtor do espaço urbano, em regular – impondo, padronizando e homogeneizando – a relação dos sujeitos com a cidade que, pouco a pouco, vão ocupando (e que, por isso mesmo, são, dela também, produtores). Como escrevem Eliane Lopes e Ana Maria Galvão (2001, p. 81), “as pessoas que produzem esses documentos sabem, de uma ou de outra maneira, que serão lidos, quer para serem obedecidos, quer para serem divulgados, discutidos, aprovados ou contestados”. As fontes analisadas dão a ver que a crescente urbanização de Belo Horizonte foi categorizando os espaços públicos, determinando práticas sociais autorizadas e também aquelas que deveriam ser ocultadas – é neste movimento que se cria uma nova sensibilidade para o corpo. A legislação anuncia todos estes aspectos.


Da disponibilidade e acessibilidade das fontes

Sabemos que um dos problemas mais comumente enfrentados pelos pesquisadores diz respeito ao acesso às fontes – seja pelas maneiras de guarda, seja pelo estado de conservação das mesmas.4 Nossa prática de arquivo, em particular com o uso desse tipo de fonte, revela que isto não se configuraria, necessariamente, como um problema. A legislação é um documento que “interessa” ao poder público, cabendo à Administração Pública guardá-la. Ainda que este “interesse”, ou mesmo a lógica de sua guarda, não tenha motivação fundamentalmente histórica, os pesquisadores acabam por usufruir dessa política – afinal, é ela que torna tais documentos disponíveis, tanto nos arquivos históricos, como também nos arquivos da administração pública.

Paralelo aos interesses de guarda, é necessário refletir, ainda, sobre os riscos de descarte que rondam esta documentação. Arquivada sob uma lógica, em razão de interesses burocráticos, ela pode “a qualquer momento” ser considerada desatualizada, sem utilidade para a administração atual, ficando exposta ao descarte.

Por esse aspecto, uma das principais motivações para mantermo-nos interessados na legislação sobre a cidade de Belo Horizonte, como fonte para esta pesquisa, deveu-se à maneira como ela está guardada no Arquivo e na Biblioteca da Assembléia Legislativa de Minas Gerais: em excelente estado de conservação, extremamente organizada em coleções anuais, completas, sem lacunas,5 de fácil identificação e manuseio. 6 Este aparato legal tem, ainda, a peculiaridade de ter sido publicado em pelo menos três formatos/veículos: anuários, cadernos avulsos e no jornal Minas Gerais (órgão oficial do governo do Estado).7


Da fertilidade do uso da legislação como fonte: amplitude e potencialidade

Procuramos olhar para a legislação com “generosidade”, buscando nela sua fertilidade – seja pela amplitude, seja pela sua potencialidade – para narrar uma história. No que se refere à primeira, percebe-se na legislação sobre a capital mineira uma gama enorme de temáticas que aborda. Dos comportamentos,8 e da circulação nas ruas e avenidas,9 às suas dimensões arquitetônicas,10 passando pelos cuidados com a higiene,11 não há dimensão da vida urbana nesta cidade planejada em que a legislação produzida não toque. Assim, viu-se, no aparato legal, uma diversidade de objetos que permite uma rica exploração para os propósitos desta pesquisa.

No que diz respeito à potencialidade do uso da legislação, tentamos fugir de um possível trato mecânico, buscando reconhecê-la como prática social, produzida por sujeitos, que deixam revelar seus interesses e desejos, configurando-se como espaço, objeto e objetivo de lutas políticas. Não a tomando apenas como um ordenamento jurídico (sem, no entanto, negligenciar esta sua condição), ou como rol de parágrafos e artigos a serem prontamente e rigorosamente incorporados pelos sujeitos, e ainda, como expressão e imposição do poder ou das classes dominantes, a legislação apresentou-se como rica possibilidade de pesquisa em história da educação, que no nosso caso, volta-se para a temática da educação do corpo na cidade (FARIA FILHO,1998).

Cientes estamos de que este conjunto documental configura-se como prescrição, limitado, assim, para uma aproximação das práticas dos sujeitos na cidade, ou o seu cotidiano. Como alerta Jacques Revel (1991), este fato pode ser contornado, quando necessário, com o cruzamento de fontes. A legislação prescritiva sobre Belo Horizonte, por exemplo, pode ser cotejada com relatórios, fichas policiais, crônicas e notícias de jornal. Especificamente, os relatórios de médicos da higiene mostraram-se ricos para acompanharmos a dinâmica de implementação de novas leis. É exemplar aqui o relatório apresentado em 1904 pelo médico da higiene, Dr. Cícero Ferreira, ao registrar que, apesar de todo o cuidado das autoridades sanitárias, previstas na lei, impondo práticas para inibir epidemias e doenças, a mortalidade permanecia alta por esses motivos. O médico escreve que em 1903, passados já seis anos da inauguração da capital, uma epidemia de gripe, incontrolável pelas autoridades sanitárias, levou a maior mortalidade entre os adultos naquele ano.12

Assim, podemos considerar que os ordenamentos legais não são deslocados do seu tempo/espaço. Ou seja, dizem de uma época, sugerem e, em um duplo movimento, determinam e são determinados por práticas e demandas de um tempo histórico, indiciam desejos e intenções. Como representações, não são menos “reais” que as práticas. É então que, ao trabalharmos com os decretos e regulamentos, devemos fazê-lo cientes que eles indicam um corpus bastante ambíguo (REVEL, 1991). Por um lado, constituem-se como condutas prescritas, não necessariamente “reais”.13

Por outro, entretanto, sabedores de que as sociedades constroem representações de seu funcionamento, podemos considerar que estas prescrições são textos privilegiados de investigação porque codificam minuciosamente valores desejáveis e regulamentam comportamentos sociáveis aos sujeitos. Ou seja, expõem maneiras consideradas legítimas de se portar nesse espaço inventado.14

Como bem nos lembra Edward Palmer Thompson (1998), também citado no artigo de Faria Filho, a legislação remete a diversos aspectos da vida social, relacionando-se continuamente com os costumes de uma dada sociedade. Assim, uma questão que nos colocamos foi: o que queremos responder ao utilizar a legislação como fonte? O que e de onde se quer falar? Presta-se a legislação à investigação do objeto a ser pesquisado? Ao interrogar como se anunciou, enunciou e insinuou a educação do corpo na legislação sobre Belo Horizonte, pudemos perceber não somente a maneira como esta pedagogia, por meio dos ordenamentos legais, foi sendo afirmada, como também que tais ordenamentos possuíam uma linguagem própria, que identificava determinado espaço e tempo – assumiam, neste caso, o caráter e a força de um dispositivo de conformação de uma urbanidade. Como sintetiza Marlise Giovanaz (2000) essa linguagem é a da racionalidade, e esse desejo é o de ordenamento:

O poder público, ao contrário da experiência dos habitantes comuns da cidade, pauta-se por uma apropriação da cidade como um conjunto e por um olhar eminentemente racional. A observação dos especialistas preocupa-se em planejar a urbe como um problema a ser resolvido, seus instrumentos são os planos, os cálculos, as transformações que podem ser realizadas neste espaço e que produzam um ambiente ordenado, limpo e transitável (GIOVANAZ, 2000, p. 42).


Da legislação como linguagem e prática social

Ao tomarmos como objeto a educação do corpo nos diversos espaços de sociabilidade que constituem uma cidade com as características de Belo Horizonte, percebemos que os processos educativos (incluindo práticas, materiais, métodos, profissionais, instituições, por exemplo) referem-se, sobretudo, à produção e formação de sensibilidades, aos “modos de viver”. Compreendendo a educação do corpo na cidade, como práticas educativas específicas (formais, informais, não-formais), pedagogias presentes na vida “em sociedade”, pudemos ver no aparato legal um dispositivo educativo com o intuito de prescrever novos hábitos e comportamentos, novas atitudes relativas ao corpo, considerados mais adequados, para o bem (con)viver das pessoas, numa cidade que se queria moderna. Tais orientações corroboram a idéia de racionalizar o ambiente urbano, atribuindo-lhe características próprias, e da mesma forma, racionalizar os seus habitantes, ambos inseridos num processo de introjeção de valores. Esquecer o seu passado rural era imperioso para as pretensões daqueles que imaginaram este lugar. Aqui, a legislação concorre com costumes arraigados (THOMPSON, 1998), quer substituí-los, como indicia o exemplo:

Fica prohibido, nas zonas urbanas e suburbanas, o commercio de aves de quaesquer especies, tocadas em bandos pelas ruas e praças, conduzidas suspensas, de pernas ou azas atadas; A Prefeitura estabelecerá um typo de pequenos carros, de molas flexíveis, em formato de gaiolas, que serão puchados a mão ou por meio de animaes. Nesses vehiculos, os commerciantes dessa especialidade ou seus prepostos transportarão o objecto de seu commercio [...] Será observado, nesses veículos o maior asseio possível, e o conductor será obrigado a ter sempre, em logares adequados, agua e alimento proprios.15

Trabalhando com o corpus documental que se refere à cidade de Belo Horizonte outras reflexões ainda foram possíveis. Os decretos e as regulamentações, que constituíram as fontes desta pesquisa, foram publicados pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais16 e recobrem especialmente o período de 189717 a 1905 – deixam ver o desejo e a urgência de regular a vida na recém-inaugurada capital.18

É também, tanto possível quanto preciso, a partir da legislação, pensar nos sujeitos envolvidos na produção/elaboração das leis.19 Quem eram estes sujeitos? Qual a sua formação? Que cargos ocupavam? Por onde circulavam? A que instituições pertenciam? Que orientação política assumiam? Que redes de relações estabeleciam? São perguntas necessárias para acompanhar a dinamicidade das leis, já que pensadas, escritas, elaboradas e produzidas por sujeitos. No caso de Belo Horizonte, por exemplo, tem sido possível encontrar diversos homens – médicos, engenheiros, advogados, professores, matemáticos, entre outros – envolvidos com a produção da legislação, ocupando cargos no poder legislativo. Esses homens produziram as leis a partir de diferentes experiências, saberes e interesses, fato que, de certa forma, dão “alma” à legislação.

Superando a idéia de estaticidade que permeia algumas análises de legislação, e considerando que a legislação é “viva”, encarnada de sujeitos, escrita para ser assimilada, pudemos também refletir sobre ela a partir da noção de linguagem. Como um texto, os decretos, as leis e os regulamentos possuem uma retórica, recheados de interesses e construídos num momento histórico. Mas, além de tudo, precisam ser lidos e apropriados. Por isso, devem convencer, persuadir, educar, inibir... A linguagem imperativa (“o cidadão, o passageiro, o espectador, o morador sempre... devem... fazer algo”) é a preferida. É possível perceber diferentes dispositivos de “convencimento”: quer estimulando determinados comportamentos e atitudes, quer também pela inibição, sobretudo, pela aplicação de multas.20 Como os exemplos a seguir ilustram:

Os colégios, hospitaes e asylos terão, além disso, installações e apparelhos gymnasticos e pateo arborizado ou jardim parauso de seus moradores.21

Todo aquelle que quebrar as lampadas de illuminação publica ou causar qualquer damno nos edificios ou monumentos, jardins e parques públicos e respectivos gradis, bem como nas paredes de muros e gradis particulares, nas casas, postes e fios, nos kiosques, coretos, bancos, mictórios e encanamentos, nos arvoredos das ruas e de terrenos alheios, nos taludes dos rios ou canaes, nas pontes, calçadas e boeiros e em tudo mais que fôr de propriedade estadoal ou da Prefeitura, de uso commum da população, soffrerà a multa de 20$ a 30$000, além de outras penas em que incorrer, na forma da lei ordinária.22

A linguagem dos documentos também é por demais reveladora de intenções: seus artigos são, na ampla maioria das vezes, “prescrições-por-negação”: explicitam o que não se deve fazer, como não se deve agir. Expressões como “não incommodar”, “não é permittido”, “fica prohibida” são recorrentes nos decretos analisados. Ao dizer o que “não pode”, acabam por revelar o que, em hipótese, deveria acontecer, neste caso, em uma cidade como Belo Horizonte, um antigo arraial, ainda impregnado de hábitos rurais, contrastante com a capital moderna que se desejava.

Ao tomarmos a legislação como produto de sujeitos envolvidos em suas circunstâncias é interessante analisar os formatos/fórmulas, estabelecidos pela Constituição,23 de como deveriam ser apresentados ao público. Como exemplo, recorremos às primeiras palavras das leis ou dos decretos. Se sancionadas pelo Presidente do Estado deveriam trazer: “O povo do Estado de Minas Gerais, por seus representantes, decretou e eu em seu nome sancciono a seguinte lei (ou decreto)”. Se promulgadas pelo Presidente do Congresso: “O povo do Estado de Minas Gerais, por seus representantes, decretou e eu promulgo a seguinte lei (ou decreto)”. Tais análises textuais da legislação sinalizam para os sujeitos envolvidos em cada uma dessas determinações, e assim também, a retórica por eles utilizada ao tornar público – e fazendo parecer público – uma proposta defendida por uma pessoa/grupo.

Ao trazer “o povo” (ainda que artificialmente através de seus representantes) como demandante de uma determinada regulamentação, a linguagem da lei passa a idéia de “igualdade”. No dizer de Faria Filho (1998, p. 101):

A lei precisa ser legítima e legitimada, o que, por sua vez, requer não apenas uma retórica de igualdade mas, minimamente, a colocação em funcionamento, no discurso legal de uma lógica de igualdade. Se assim não fosse, a lei não seria legítima e, muito menos, necessária.

Em Belo Horizonte, ainda que essa linguagem prevalecesse e procurasse ser legítima pelo discurso, nem sempre, no cotidiano ela era legitimada pelos cidadãos. Com ironia, a notícia do jornal O Operário, ilustra que a lei impactava, de maneira diversa, diferentes grupos sociais:

De repente aparece um tal Malta, com dois soldados e manda prender os jogadores. Íamos protestar pela violência, mas ficamos calados, porque soubemos de um decreto policial concebido nestes termos. O Dr. Edgardo Carlos da Cunha Pereira por graça de Deus e vontade do Presidente do Estado, rei da polícia mineira, ouvidos os delegados e outras pessoas graúdas, decreta:
Art. 1º O bacarat, a roleta e outros jogos de azar ficam reservados para o honesto recreio dos exmos., senadores e deputados e de quantos gozem de um rendimento ou ordenado avultado.
Art. 2º As loterias, o jogo de bicho, a tômbola, etc., são jogos tolerados para todo mundo, salvo a intermitente intervenção das autoridades policiais.
Art. 3º Todo e qualquer jogo que não seja de azar e que sirva só para divertir o povo miúdo sem enriquecer nenhum empreiteiro do jogo, é absolutamente proibido, e os jogadores serão recolhidos à cadeia para contribuir com o imposto de carceragem ao aumento das rendas do Estado.
Os nossos delegados assim o façam executar.
Hipotecápolis, 14 de agosto 1900.
Eu, Rei da polícia.24


Da circularidade e da materialidade dos impressos legais

Investigar os diferentes espaços e processos de educação do corpo, ligados a diferentes sujeitos e grupos sociais, é também tentar compreender como se dava a circularidade das informações relativas a essas práticas educativas, nesse caso, das prescrições por meio de um aparato legal. Se imprimir a legislação tinha como propósito que ela fosse efetivamente lida e praticada pelos habitantes, como um “impresso pedagógico”, é então importante investigar os mecanismos com os quais procurava-se tornar isso possível (BICCAS, 2006).25 Assim, como espaços educativos, os impressos legais, têm características singulares, que precisam ser pesquisadas.

Em relação à legislação impressa, questões como: Quem as lia? Como as liam? Em que tipo de impresso? Como ganhavam visibilidade?, são fundamentais para tomar esses documentos como fonte e objeto.

Como dissemos anteriormente, acessamos a legislação referente à cidade de Belo Horizonte em três formatos/veículos: anuários, cadernos avulsos e jornal Minas Gerais. No caso do anuário e dos cadernos avulsos, chama atenção a padronização gráfica da impressão e do formato dos mesmos. São de fácil manuseio e são tão bem organizados, de forma que seu caráter gráfico impõe uma leitura de acordo com a intenção pretendida. São claros e objetivos e seguem sempre a mesma regra de apresentação.

Da regulamentação da Imprensa Oficial (onde eram impressos e publicados), sabe-se que era possível aos impressos de caráter oficial serem vendidos. Ainda não há pistas detalhadas que nos permitam dizer onde e como eram comercializados ou divulgados, mas há indícios dessas práticas, sobretudo, quando publicados no Minas Gerais.26 Há também vestígios de que a população conhecia os artigos ou ao menos o que era autorizado ou proibido “em lei”, pois em diversas passagens do jornal prometia-se agir de acordo com “este” ou “aquele” artigo. Percebemos, também, nessas publicações, uma intenção pedagógica/educativa: assim caso as pessoas não conhecessem os artigos, ao menos, deveriam procurar conhecê-los. Parecia comum anunciar no jornal Minas Gerais a atuação de fiscais e diretores, a cobrança de multas, por exemplo, sempre de acordo com algum decreto ou artigo, que não vinha descrito, mas citado com a referência de número, como se estes já tivessem sido apropriados pelos habitantes, e lhes fossem familiares.

Ainda em relação à materialidade/circulação, acreditamos que os impressos avulsos podem indicar um caráter de circulação mais eficaz. Saltam aos olhos o fato de serem localizados, na forma avulsa, apenas os decretos que prescrevem comportamentos e organizam os espaços públicos e privados.27 Todos estes têm forte caráter higiênico e sanitarista, o que exige indagar: seriam esses decretos justamente aqueles que, no contexto daquela cidade, deveriam ser divulgados e acessados? Constitui isso uma maneira deliberada de educação do corpo orquestrada pelo Estado? Poderemos identificar, nas entrelinhas dos textos, seus destinatários?

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Iniciamos o estudo perguntando pela fertilidade do uso da legislação como fonte para o estudo da história da educação do corpo em Belo Horizonte. Nossas reflexões, no desenrolar da pesquisa, na prática do arquivo, no olhar detido sobre as fontes, na superação de possíveis pré-conceitos, indicam que este conjunto documental é, de fato, potente para levantar novas e instigantes questões sobre os processos e dispositivos educacionais no corpo.

Olhando para a legislação como texto, levando em consideração forma e conteúdo, acreditamos que a educação do corpo nos espaços de sociabilidade do urbano realiza-se também, na e pela linguagem da lei. Foi, então, para nós, impossível abandonar a legislação com a qual se pretendeu produzir uma cidade – e produzir nela os seus habitantes.

Assim, interessante registrar, finalmente, que como fonte, e(ou) como objeto a ser investigado, em nosso programa de pesquisa, a legislação estende seu raio de influência para outros projetos de investigação, ainda que com diferentes objetos e com outras categorias de documentos. Mais um indício tanto de sua fertilidade como de sua potencialidade.





Body Education in and through the Language of the Law: Potentialities of Legislation as a Source

Abstract: This research work investigates body education in urban spaces of sociability in the cit of Belo Horizonte, from 1897 to 1905. Legislation appears as an important source, as it allows for the analysis of projects envisaged by the State, establishing rules for the use of the urban space. It presents texts that encode desirable values and regulate social behavior. Legislative acts clarify the intentions of the State in terms of regulating the relationship society should have with the space it occupies, and they show that growing urbanization can categorize spaces and determine social practices which are authorized or hidden, thus creating a new sensitivity to the body.

Keywords: body education – city – legislation.




Educación del Cuerpo en y por el Lenguaje de la Ley: potencialidades de la legislación como fuente

Resumen: El presente estudio investiga la educación del cuerpo en los espacios de sociabilidad del urbano en Belo Horizonte, de 1897 hasta 1905. La legislación se ha presentado como una fuente importante, una vez que da la posibilidad de proyectos imaginados por el poder público, estipulando reglas para utilización del espacio urbano. La misma trae textos privilegiados, que codifican valores deseables y reglamentan comportamientos sociales. Los decretos aclaran las intenciones del Estado en regular la relación de la sociedad con el espacio que va a ocupar y muestran que la creciente urbanización resultará en la categorización de espacios, lo que determinará prácticas sociales autorizadas u ocultadas, creando una nueva sensibilidad para el cuerpo.

Palabras-claves: educación del cuerpo – ciudad – legislación.




NOTAS

* Professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora sobre História da Educação Física.
** Estudante do Curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista de Iniciação Científica.


1 Este projeto é vinculado a um programa de pesquisa, intitulado “Educação do corpo nos espaços de sociabilidade do urbano – investigação sobre os investimentos no corpo em Belo Horizonte (1891-1930)”, realizado no âmbito do Centro de Memória da Educação Física da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Faculdade de Educação, ambos da UFMG. Em síntese, busca-se, com este programa, compreender como, na cidade pensada, nascida e produzida como vitrina da República, pretendeu-se conformar um processo educacional sobre o corpo.
2 Lopes e Galvão (2001) comentam que as pesquisas na História da Educação que enfocavam, principalmente, o estudo das transformações da organização escolar e do pensamento pedagógico recorriam quase, ou exclusivamente, às fontes oficiais – legislação, atas, relatórios, programas de ensino – porém, com o alargamento da idéia de documento, historiadores da educação vislumbraram as possibilidades de “penetrar no cotidiano da escola de outras épocas”. Os historiadores da educação não abandonaram as ditas “fontes tradicionais”, mas procuraram problematizá-las, discutindo “o que presidiu a publicação de um ato oficial ou entender que, ao lado da intenção da lei, existem as práticas que fazem o dia-a-dia da escola” (LOPES; GALVÃO, 2001, p. 81).
3 Ainda que neste texto não tenha sido nosso intuito analisar a legislação escolar, pudemos perceber que, também, ela é fonte potente para o diálogo com a legislação sobre a cidade. É fácil reconhecer que, do que conhecemos sobre a legislação escolar, muitas idéias já estavam “sonhadas” pela legislação que organizava a vida na cidade. Parafraseando W. Benjamin (1993), para quem cada época sonha a seguinte, os inúmeros decretos relativos à vida na cidade já sonhava a legislação escolar.
4 Sobre este aspecto ver relato de Vago (2006) sobre os percalços enfrentados com os arquivos, no percurso de uma pesquisa.
5 Num outro estudo, mapeamos toda a legislação existente relativa aos anos 1897/1905, que, procurando organizar a vida na nova capital, prescreve hábitos, comportamentos, atitudes e práticas que incidem sobre a educação do corpo.
6 Percebe-se, entretanto, freqüentando o lugar, que não é um arquivo explorado pelos pesquisadores. O fato de não haver divulgação do acervo ou catálogo de fontes acessíveis ao público, pode concorrer para tal fato.
7 Este fato incide sobre a questão da materialidade e da circulação, temas que serão abordados mais adiante.
8 “Ninguem, dentro do theatro ou casa de espectaculos, poderá dirigir-se em voz alta a quem quer que seja, excepto aos actores, com palavras de approvação ou reprovação, como: ‘bravo, fora ou outras equivalentes’.” Decreto n. 1.360 (Minas Gerais, 1900), artigo 39 [sic].
9 “É prohibido transitar ou estacionar sobre os passeios das ruas da cidade com animaes, carrinhos ou cargas que embaracem o transito e andar de velocípede pelos passeios ou disparada a cavallo ou de carro pelas ruas da cidade.” Decreto n. 1.211 (Minas Gerais, 1898), parágrafos 1º e 2º do artigo 67 [sic].
10 “As dimensões do edifício serão proporcionais ao numero de espectadores, de modo que cada um destes disponha pelo menos de 50m cubicos de ar renovado por hora.” Decreto n. 1.360 (Minas Gerais, 1900), do artigo 2 [sic].
11 “Todos os theatros serão munidos interiormente de mictorios, latrinas e lavabos para os homens e de toilettes para as senhoras, com os apparelhos hygienicos indispensáveis.” Decreto n. 1.360 (Minas Gerais, 1900), artigo 13 [sic].
12 Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Prefeito pelo Médico de Higiene Dr. Cícero Ferreira, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1904. Localizado no Arquivo Público Mineiro.
13 Convém ressaltar que, no âmbito do programa de pesquisa, outros projetos vêm sendo desenvolvidos, tendo privilegiado fontes de outras naturezas como: os jornais, as revistas, a literatura, processos educacionais, relatórios de processos criminais, entre outros. Juntos, eles contemplam uma visão de Belo Horizonte, ou diferentes perspectivas do objeto no período estudado.
14 Inventado aqui, no sentido dado por Hobsbawn e Ranger (1987). Ao longo da pesquisa estamos considerando a modernidade de Belo Horizonte forjada a partir de interesses e implementada por e em diversos dispositivos e práticas, incorporadas, enfim.
15 Minas Gerais. Decreto n. 1436 (Minas Gerais, 1900), Artigos 1 e 2 [sic].
16 A Imprensa Oficial, criada em novembro de 1891 caracterizando-se “[...] como um órgão de publicidade oficial, destinada à publicação dos atos do governo, debate das duas câmaras do Congresso Mineiro e expediente da administração pública, inclusive opúsculos e livros para escolas públicas do Estado [...]” (Minas Gerais, Caderno Comemorativo da Abertura do Ano do Centenário da Imprensa Oficial. 4 de janeiro de 1991, p. 2).
17 Ano em que Belo Horizonte é inaugurada.
18 A legislação que nos propusemos a trabalhar é derivada da Constituição do Estado de Minas Gerais, promulgada em 1891. Nela, fica definido que o Poder Legislativo, no Estado, estaria delegado a um Congresso, submetido ao Presidente do Estado. Esta organização bicameral seria composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Cada ramo do Congresso teria suas próprias atribuições, sendo permitido, a ambos, elaborar projetos de lei, que por sua vez, deveriam tanto ser aprovados pela outra Câmara, quanto sancionados pelo Presidente. Ver em Constituições do Estado de Minas Gerais de 1891, 1935, 1945, 1947, 1967 e suas alterações (Belo Horizonte, 1988), localizado na biblioteca da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
19 Estamos recorrendo a arquivos pessoais de políticos, guardados no Arquivo Público Mineiro. Por meio da descrição dos fundos, selecionamos aqueles que atuaram no legislativo no período abrangido pela pesquisa. Este estudo está em andamento.
20 Ainda não temos indícios de que as multas eram cobradas/pagas. Estamos consultando os relatórios de finanças da cidade de Belo Horizonte no período estudado, para podermos verificar a “eficácia” da lei. Independente destes dados consideramos que as multas e punições exercem um efeito prospectivo, e condicionam comportamentos, tal qual a relação dor-memória: “não no sentido aparente de apenas não esquecer o passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna como que um programa de atuação [...]” (RIBEIRO, 1994, p. 10).
21 Decreto n. 1.211 (Minas Gerais, 1898), artigo 52.
22 Decreto n. 1.211 (Minas Gerais, 1898), artigo 66.
23 Ver em Constituições do Estado de Minas Gerais de 1891, 1935, 1945, 1947, 1967 e suas alterações (Belo Horizonte, 1988), localizado na biblioteca da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
24 O Operário, 19 de agosto de 1900 (p. 3), citado por Rodrigues (2006, p. 95).
25 Estamos investigando o programa das disciplinas escolares do período, sobretudo da cadeira Civilidade/Hygiene, a fim de verificarmos a consonância entre os ensinamentos escolares e o que prega as leis. Em lei (lei nº 397, de 2/9/1905 – Autoriza o governo a mandar preparar um livro genuinamente mineiro para a educação moral e cívica nas escolas primárias) é possível inferir que existiam estratégias para a divulgação de hábitos e comportamentos, previstos na legislação, nas escolas.
26 Como dissemos, a legislação era publicada também no Minas Gerais (jornal oficial). Este impresso era amplamente divulgado em diversas instituições, inclusive nas escolas. Há também indícios de que este jornal era “assinado” por pessoas que quisessem recebê-lo. No próprio jornal há publicidade a esse respeito, incentivando, através de promoções, a assinatura do jornal (BICCAS, 2006).
27 Foram encontrados no Arquivo Público Mineiro, na forma avulsa, os seguintes decretos: Decreto 1360 (1900 – Estabelece regulamento para construção e policiamento dos teatros); Decreto 1535 (1902 – Regulamenta o serviço de bondes); Decreto 1347 (1900 – Regulamento do Mercado da capital); Instrução (1903 – Instruções para execução dos serviços a cargo da turma de guardas e vigias); Regulamento (1900 – Regulamento de Veículos); Regulamento (1901 – Regulamento sobre aves, cães e cabritos).

REFERÊNCIAS:

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Recebido: 6 de dezembro de 2007
Aprovado: 16 de dezembro de 2007

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