MOVIMENTO: BASE DA EVOLUÇÃO DA MENTE, DO PENSAMENTO E DO COMPORTAMENTO NOS SERES HUMANOS

Clotildes Maria de Jesus Olveira Cazé*

O livro El cérebro y el mito del yo: el papel de las neuronas en el pensamiento y el comportamiento humanos escrito por Rodolfo Llinás, com prólogo de Gabriel Garcia Márquez, publicado em 2002 pela Editorial Norma em Bogotá, com 360 páginas, doze capítulos, título original “I of the vortex”, traduzido para o espanhol por Eugenia Guzmán, sem tradução para o português, traz entendimentos referentes à evolução e à natureza da mente com base em sua origem no processo de desenvolvimento pelo mecanismo biológico de ensaio e erro em organismos com movimento ativo.

Rodolfo Llinás, MD, PhD, é formado em medicina pela Universidade Javeriana em Bogotá, Colômbia. Chefe do Departamento de Fisiologia e Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova Iorque, suas pesquisas tratam da neurociência do nível molecular até o cognitivo.

Questões referentes à importância do movimento intencional1 e suas implicações na evolução do sistema nervoso e no funcionamento cerebral, englobando os PAF2 e os movimentos complexos; a interação entre os aspectos emocionais e a consciência; a interiorização dos universais mediante a interiorização da motricidade; as propriedades intrínsecas das células nervosas; a aprendizagem e memória; a observação das qualias3 do ponto de vista neuronal; o desenvolvimento da linguagem como resultado do pensamento abstrato e idéias referentes à mente coletiva são temas abordados por Llinás.

A idéia discutida por Llinás é a aquisição do movimento ativo e suas implicações no desenvolvimento da mente. Para ele, a aquisição do movimento está ligada à organização e à função dos cérebros e se baseia na integração da motricidade durante a evolução pela ação das propriedades oscilatórias intrínsecas. Esta ação gera a conectividade neuronal que, segundo Llinás, é à base do movimento. O autor explica a condição humana ao afirmar que os seres humanos nascem com um aparato padrão que permite antecipar reações pela formação de imagens sensório-motoras, levando a ações pré-motoras. Llinnás afirma ainda que este aparato foi precableado na espécie pela ação da filogenia4 e da ontogenia5 e que a elaboração da realidade depende do cooperativismo da função cerebral. Ele compara o cérebro a um “maestro” orquestrando uma sinfonia em que cada instrumento tem afinação própria e todos os componentes são necessários. Na função cerebral, assim como na música, o silêncio é tão importante quanto o som. Esse “maestro” não tem a possibilidade de orquestrar permanentemente todas as atividades realizadas pelo corpo em um mundo que cambia a todo instante.

Para Llinás, os seres humanos não têm cérebros, eles são o próprio cérebro. Este pensamento é o ponto chave para o entendimento de função cerebral defendido por Llinás. Desta forma, sua teoria coaduna com o pensamento de Lakoff e Johnson (1999), ao afirmar que todas as informações chegam ao corpo via percepção e são sensório-motoras, ocorre à formação de redes neuronais e um criterioso trabalho de seleção de informação na rede pela capacidade da neuroplasticidade cerebral6.

Llinás é monista7 e afirma que cérebro e mente são eventos inseparáveis, sendo a mente um dos estados funcionais gerados pelo cérebro. O autor percebe a mente como um estado consciente que gera imagens sensório-motoras, resultado da união de toda informação sensorial capaz de produzir um estado que resulte em uma ação. Nesse sentido, ele propõe que o cérebro opera como um sistema autorreferencial, semicerrado, e sugere que o sistema nervoso evoluiu da necessidade dos animais se moverem ativamente.

Llinás corrobora a idéia de consciência e reforça a importância das conexões neuronais no comportamento e no pensamento humano, afirma que seres com movimento ativo utilizam a capacidade antecipatória do cérebro para prever eventos e antecipar respostas motoras para se mover com eficiência no ambiente. Assim, a capacidade de predição é a função primordial do cérebro, sendo o “si mesmo”8 o responsável pelas interações. O autor argumenta que o movimento é resultado das interações preditivas entre cérebro e ambiente e que o cérebro não controla músculos individuais; são as sinergias musculares e os coletivos musculares que “interessam” ao cérebro, se constituindo na base do movimento. São estas interações que possibilitam a reconfiguração dinâmica dos mapas neuronais, incide sobre o sistema motor e permite que a ação dos coletivos musculares se organize de forma transitória e se dissolvam rapidamente segundo as necessidades do momento. Esta ação objetiva poupar esforços e economizar tempo para o “si mesmo”.

A idéia de Llinás se corporifica na propriedade intrínseca da oscilação. Para ele, o conjunto de atividades neuronais que atuam de forma simultânea é a raiz neurobiológica da cognição. Parte do princípio que durante o desenvolvimento cerebral “neurônios que disparam juntos, se conectam juntos” promovem a contemporalidade da ação, sendo a própria consciência. A soma da conjunção espacial e temporal possibilita e potencializa a cognição; conhecer o mapa temporal implica compreender a dinâmica da função cerebral; pela projeção geométrica da realidade do mundo externo no “espaço funcional interno” do cérebro, cria-se uma espécie de realidade virtual.

Llinás defende a idéia dos PAF, ratifica a importância das conexões sinápticas e a formação de mapas neuronais a partir das informações perceptuais que chegam do mundo externo em tempo real, possibilitando uma resposta adequada pela utilização dos PAF em uma ação integrada de estratégia e tática a depender do contexto. Ele afirma que o “si mesmo” não tem tempo de implementar respostas adequadas às necessidades do momento em situações que exijam respostas motoras imediatas.

Além disso, Llinás explica que a capacidade de abstração do sistema nervoso é fundamental para a criação da imagem do “si mesmo” e para cancelar ou modificar um PAF. Para ele, este é um princípio fundamental da função do sistema nervoso. A natureza desses processos está registrado nos padrões filogenéticos adquiridos pelo sistema nervoso ao longo do processo evolutivo; a intencionalidade é o detalhe pré-motor que impulsiona a obtenção de resultados mediante movimentos que expressem estados emocionais e se refere ao ato consciente de escolher o que fazer antes mesmo de fazê-lo.

Desse modo, o ser humano já nasce com os circuitos gerais que possibilitam a sobrevivência. Estes se modificam durante a maturação e se especializam. Llinás explica que não é necessário aprender os circuitos neuronais, pois o tálamo, o córtex e a conectividade entre eles não é algo aprendido e sim herdado. Todavia, os PAF podem ser modificados, aprendidos, recordados e aperfeiçoados ao longo da vida, podendo ocorrer processos de especialização, pois eles estão ligados à memória e à repetição e dependem da experiência das conexões sinápticas. As habilidades para certas ações dependem e estão limitadas por um conglomerado de capacidades presentes no ser humano ao nascer. Com a prática, essas habilidades podem desenvolver-se e serem facilitadas.

Llinás considera as emoções como membros do PAF cuja execução é pré-motora. A tomada de decisão, por exemplo, depende da interação do PAF com o “si mesmo”. Ele entende que se o tônus muscular é a plataforma básica para executar movimentos, as emoções são a plataforma pré-motora que impulsiona ou freia a maioria de nossas ações. Lembra ainda que a geração da criatividade no cérebro é um processo não racional; logo, a criatividade não nasce da razão.

Esta idéia reporta a Damásio (2000) que percebe cognição e emoção como ações de um mesmo corpo com uma única entrada, a percepção sensório-motora. Ele aponta a tomada de decisão como um evento associado a fatos e mecanismos ligados à regulação corporal; que os sentimentos e emoções são percepções diretas dos estados corporais e constituem um elo entre corpo e consciência. Isso reforça a idéia de Llinás que o cérebro parece estar organizado em módulos funcionais, sendo esta uma propriedade intrínseca do aparato cerebral.

Llinás aborda a questão das qualias, a função e necessidade, a ligação com os PAF; questiona se a ciência compreenderá os sentimentos e afirma que as qualias são estruturas funcionais simplificadas pelas propriedades intrínsecas dos circuitos neuronais cerebrais. Em uma perspectiva evolutiva, percebe a importância das qualias no estudo da função cerebral e refuta a idéia que somente as formas superiores de vida são dotadas de qualias. Para ele, a relação entre as qualias e a estrutura evolutiva funcional cerebral é intrínseca; sendo as qualias primordiais para a organização global do sistema nervoso.

Compreender o jogo de interação entre filogenia e ontogenia na construção dos seres que possuem movimento ativo justifica esta leitura por profissionais que atuam em educação, especialmente os que trabalham com o corpo e as múltiplas possibilidades de aprendizagem.

Perceber que estes conhecimentos podem reorganizar conceitos de ensino-aprendizagem, observando os fatores limitantes e a possibilidade de atuação consciente a partir destes entendimentos de corpo é o que faz este livro interessante, mesmo não tendo seu foco voltado para a educação. Todavia, é possível buscar uma pedagogia do movimento, visando ao desenvolvimento das potencialidades humanas, começando pelo entendimento dos fatores potencializadores e limitantes da função cerebral.

Ao término da leitura percebe-se o diferencial da ação conjunta da filogenia e da ontogenia no processo evolutivo da espécie humana e as suas implicações no contexto de desenvolvimento da mente e da aquisição do movimento na construção do conhecimento. A filogenia e a ontogenia atuam conjuntamente na evolução da espécie. A filogenia, em seu trabalho de seleção natural, congrega aos aspectos genéticos tudo aquilo que acontece ao longo do desenvolvimento de uma vida e é importante para a evolução da espécie. A ontogenia é a responsável por estes eventos. É o aprendizado contínuo, diz respeito ao indivíduo e depende das interações entre o corpo e o ambiente.

Diante dos argumentos, entende-se que a mente é interativa, funciona em rede pela conectividade, ampliando as capacidades cerebrais e buscando a unificação perceptual. Em suma, para Llinás, o pensamento é a interiorização evolutiva do movimento e acontece pela capacidade de predição do cérebro, sendo necessário para a permanência da espécie na Terra.

NOTAS

* Mestra em Dança pela Escola de Dança/UFBA, especialista em Ginástica Rítmica pela UNOPAR e em Psicopedagogia pela UFRJ e graduada em Educação Física pela UCSal.

1 Movimento intencional caracteriza-se por ser um movimento antecipatório, inteligente e dirigido para uma meta; é indispensável para que a ação aconteça (LLINÁS, 2002).

2 PAF: Os padrões de ações fixas são reflexos elaborados que agrupam reflexos inferiores em sinergias e quando ativados produzem movimentos bem delimitados e coordenados que permitem ao “si mesmo” economizar tempo pelo uso de estratégias e táticas que possibilitam escolhas adequadas à sobrevivência (LLINÁS, 2002).

3 Qualias se refere à qualidade das entidades, a experiência sensorial. Termo utilizado pelo filósofo Willar Quine para indicar o caráter subjetivo da sensação gerada pelo sistema nervoso (LLINÁS, 2002).

4 Filogenia está relacionada à informação genética; tudo que foi desenvolvido ao longo do processo evolutivo, diz respeito à espécie. A capacidade de conhecimento, a capacidade de aprender.

5 Ontogenia se refere a tudo que acontece no desenvolvimento de uma vida. É o aprendizado contínuo e diz respeito ao indivíduo; depende das interações entre o corpo e o ambiente.

6 Neuroplasticidade cerebral refere-se à capacidade de adaptabilidade a novas situações.

7 Monista: aquele que está ligado ao monismo. A palavra “monismo” é usada para indicar toda doutrina ou sistema de pensamento que afirme certa unidade de explicação (redução a um só princípio, a uma só causa, a uma só tendência ou direção) para um domínio limitado de idéias ou de fatos (JACOB, 1990).

8 “Si mesmo”: o centro da predição que surge a partir das interações no cérebro entre o sistema motor e o emocional.

REFERÊNCIAS

DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

JACOB, A. Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: PUF, 1990.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999.

LLINÁS, R. El cérebro y el mito del yo: el papel de las neuronas en el pensamiento y el comportamiento humanos. Tradução de Eugenia Guzmán. Bogotá: Editorial Norma, 2002. 360 p.

Recebido em: 30/09/2007

Aprovado em: 20/03/2008

Contato: clocaze@yahoo.com.br.

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