ETERNAMENTE JOVEM: CORPO MALHADO, FICÇÃO TELEVISIONAL E IMAGINÁRIO

Pierre Normando Gomes da Silva*

Eunice Simões Lins Gomes**

RESUMO

Este artigo interpreta as imagens televisuais do corpo, numa ficção seriada “Malhação”, com vistas a compreender o imaginário coletivo que circula nas academias de ginástica, ou melhor, objetiva interpretar a estrutura mitológica da cultura do jovem (PERREIRA, 2004; KHEL, 2004). Para isso, utilizamos como metodologia a técnica do Formismo (jogo das aparências) de Maffesoli (1996; 1998) e a técnica de análise das imagens proposta por Aumont (1995). O resultado obtido foi a correlação por semelhança entre: os corpos ensolarados e o mito de Apolo, a civilização dos corpos malhados e o país dos hiperbóreos, a academia de ginástica e o bosque de Epidauro.

PALAVRAS-CHAVE: ginástica - ficção televisual - imaginário

1 CORPO MALHADO, UM SIGNO SOCIAL

Nos últimos 30 anos percebemos que os hábitos corporais dos brasileiros vêm sendo progressivamente alterados. Esse processo de praticar atividade física relacionado-a a saúde ganhou visibilidade com a demarcação dos calçadões nas praias, especificando a metragem para orientar as caminhadas matinais. Essa ação era decorrente da campanha nacional Mexa-se, lançada pela Rede Globo de Televisão, em 1975, em pleno regime militar. Nos parece que essa preocupação crescente com a forma física tem sido provocada não apenas pelas recomendações médicas, mas principalmente pelo padrão de beleza difundido pelos meios de comunicação de massa. Cito apenas para ilustrar a vinheta de abertura da novela Belíssima, exibida recentemente, cujo foco era um corpo feminino, magérrimo, que ao mover-se revelava um tórax esquelético.

Duas pesquisadoras, uma antropóloga (PEREIRA, 2004) e outra psicanalista (KHEL, 2004), a partir de dados diferentes, observações e escuta, chegaram a mesma conclusão: o corpo jovem, malhado nas academias de ginástica, é ícone da sociedade contemporânea. Por ele podemos inferir sobre a vida social e a vida psíquica dos sujeitos. Isto porque entendemos que a marca do comportamento humano é produzir ações significativas e a característica de toda sociedade é criar regras sociais para ordenar o relacionamento homem-mundo. Nesse entendimento, as relações sociais constituem uma linguagem, pois organização é atribuição de sentido e “fundamenta-se num conjunto de normas que estipulam, instituem e convencionam valores e significações que possibilitam a comunicação dos indivíduos e grupos sobre um terreno comum”, explica o antropólogo Rodrigues (1983, p.10).

Estrutura de pensamento não significa intelectualismo, mas produção cultural. Sistema de significação introjetado nos indivíduos pelos processos de socialização. Rodrigues (1983, p.110) define cultura como “um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social”. Um mapa puramente convencional, submetido a uma lógica que permite decifrá-lo. Estrutura de pensamento, portanto, é essa lógica que define o modo de viver das pessoas em sociedade, mesmo que elas nem tenham consciência. Por isso, entendemos que vida coletiva e vida psíquica dos indivíduos se fazem de representações, de figurações mentais, de um conjunto e de relações de imagens, do imaginário, nos termos de Durand (2001).

Então, se a conduta social dos indivíduos está relacionada aos sistemas de pensamento (imaginário), e se a busca social da aparência do corpo malhado, percentual mínimo de gordura e máxima definição dos músculos, é uma conduta atual de significado cultural, desejamos descobrir Qual o imaginário social que produz essa conduta de busca ao corpo malhado? Este é o nosso problema.

2 FICÇÃO E SOCIEDADE, UMA METODOLOGIA PARA CAPTAR A ESTÉTICA DA CULTURA

Abordamos este problema numa perspectiva fenomenológica porque é essa teoria que descreve aquilo que é por ser o que é. (MOREIRA, 2002, p.64). De modo que, como o fenômeno, a aparência do corpo malhado, se mostra a partir de si mesmo à consciência, adotamos como metodologia de interpretação socioantropológica o Formismo (jogo das aparências), proposta pelo sociólogo Maffesoli (1996; 1998).

A abordagem do formismo valoriza o corpo, as imagens, a aparência, pois compreende os pequenos acontecimentos cotidianos como elementos constitutivos concretos de uma cultura. Parte da hipótese que as formas são formantes, nelas as pessoas se reconhecem ou o grupo exprime seu sentimento de pertença. Assim, observando a forma, estamos reconhecendo a pluralidade dos mundos (macro e microcosmo) e mantendo a coesão do contraditório, fazendo sobressair o invisível, o subterrâneo, a lógica da forma. O objetivo é “encontrar o sentido manifesto na superfície das coisas, atentar a forma interior, subsolo da teatralidade”, diria Maffesoli (1998, p.91). Dessa forma, a opção epistemológica é estética, pois, aprecia a forma (aparência) como aquela capaz de tornar visíveis elementos invisíveis (estrutura do imaginário).

O formismo ou a expressão da forma é uma sociologia do cotidiano que tem o fim de compreender as formas sociais, dadas nas diversas modulações da aparência (moda, espetáculo político, teatralidade, publicidade, adereços, rituais, ficções televisuais...). Assim, o trabalho de pesquisa no formismo é fazer com que a coisa mesma diga tudo o que tem a dizer, ou seja, se apreende o aspecto aleatório das formas de socialidade, dadas nas ruas e, concomitantemente, a coerência profunda da existência social. (MAFFESOLI, 1996, p.138).

Como no formismo cada fragmento é em si significante e contém o mundo na sua totalidade, foi que escolhemos um “nada”, a frívola aparência do corpo malhado posta insistentemente num programa televisivo com vistas a compreender o conjunto social brasileiro, em termos de imaginário. Escolhemos Malhação porque é uma ficção televisual que situa o culto do corpo e a celebração da beleza plástica no centro da cena e, além disso, projeta um estilo de comportamento centralizado na fabricação do físico perfeito. O Gairsa denunciava de corpolatria (GAIARSA, 1985). Além do mais é uma ficção que está sendo transmitida pela TV há 12 anos, sem interrupção, sempre no mesmo horário, com audiência significativa do público jovem. Malhação é um sucesso na comunicação de imagem que, por contaminação sucessiva, vem criando grupos que vivem valores idênticos e estilos de vida similares aos dos personagens. Portanto, consideramos Malhação como pertencente às imagens fundadoras da cultura do jovem brasileiro, aquelas que na multiplicidade de outras imagens, em congruência ou em oposição, agrega pessoas formando comunidades.

Dentre outros pesquisadores de teledramaturgia brasileira1, em particular Paiva (1999; 2000; 2006), pressupomos a ficção televisual como um campo de produção de sentido, revelador de aspectos importantes da realidade. Apostamos numa possível leitura do imaginário social brasileiro a partir da ficção, pois a entendemos como produto típico da cultura brasileira, uma obra estética, não porque difunde obras literárias ou dramatúrgicas, mas porque suas imagens tanto expressam a sensibilidade vivida no cotidiano quanto produzem vínculo social. Isso não significa deixar de compreender que a ficção televisual é um simulacro utilizado como entretenimento para as massas e que Malhação é mais um programa comercial da Rede Globo de Televisão, empresa que desde cedo adotou o modelo comercial norte-americano de informação e comunicação. No qual à televisão comercial só interessa o homem como consumidor, daí sua linguagem ser elaborada para manipular paixões e ofertar uma visão de mundo. Sem dúvida, a TV brasileira tem se constituído num instrumento político, sua força de persuasão é avassaladora, ela forja os costumes sociais e inculca valores, crenças e códigos éticos com uma eficácia e rapidez absolutamente novas na história brasileira. Araújo (1991, p.274) ilustra afirmado que até os anos 60 a mentalidade do brasileiro era anticonsumista, hoje a palavra status significa a soma de objetos possuídos passíveis de exibição pública.

Contudo, não é porque temos consciência da ficção seriada Malhação ser um simulacro que a avaliamos negativamente como um arremedo bastardo produzido pela industria cultural, responsável pelo aviltamento da consciência social, tornando homens e mulheres acríticas. Nós não analisamos apenas o modo de produção da mercadoria cultural, mas principalmente o modo de produção da recepção. O receptor como um sujeito ativo, que mesmo assimilando os valores dos personagens em cena, “não o faz de maneira mecânica, neutra ou conformista; pelo contrário, interage ativamente face aos valores da sua comunidade ou aos valores do seu próprio referencial socioeconômico, político e cultural” (PAIVA, 1999, p.1).

Nesse sentido, a ficção deixa de ser entendida apenas como simulacro perverso, imitação falseada do real, para entendê-la como uma apropriação de estilos e linguagens das culturas juvenis absorvidos, transformados e devolvidos às massas, como uma modulação que“pode ao mesmo tempo acariciar e ferir, chocar e fazer sonhar, informar ou roubar a atenção pelo expediente da surpresa”, diz Paiva (2000b, s/p). Entendemos-na como objeto de fruição estética das massas e como instrumento revelador da complexidade social, da estrutura do imaginário, porque cria, em suas cenas e enredos, vínculos sociais mantidos pela ambiência afetiva, simbólica e imaginária produzida.

Na perspectiva de tomar a aparência da aparência, situamos o fenômeno descrevendo roupas, objetos, cores, gestos, privilegiando assim, as formas e as figuras que a ficção televisual apresenta do mundo imaginal da cultura juvenil. É uma ficção dirigida aos jovens, exibida diariamente a partir das 17:30 horas, com duração de trinta minutos. A cada ano, esse seriado é reestruturado, desde a vinheta de abertura até a trilha sonora, passando por novo diretor, outro elenco e enredo diferente. Contudo, podemos dividir essa ficção em dois períodos, no primeiro, referente aos quatro anos inicias, cuja trama desenvolveu-se dentro de uma academia de ginástica, intitulada malhação, e no segundo período, desde outubro de 1999 até o presente momento (outubro de 2007), o enredo se desenvolve num colégio denominado Múltipla Escolha, mas não mais exclusivamente com jovens.

Nossa análise dar conta dos dois períodos, mas dá ênfase ao primeiro, devido nosso objetivo de “acariciar” as imagens do corpo malhado. Dos quatro anos desse período, analisamos especificamente o último ano, versão desenvolvida entre setembro de 1998 a outubro de 1999. Essa versão foi escrita por Yoya Wursch e dirigida por Flávio Colatrello Jr. Dos duzentos e sessenta capítulos dessa versão, numa amostragem intencional, selecionamos para a análise sessenta e nove capítulos, de 17 de julho a 19 de outubro de 1999, final do primeiro período. Esses capítulos foram gravados, catalogados em unidades de sentido (os padrões de imagens que se repetiam) e analisados usando as técnicas de visualização artística, propostas por Aumont (1995): temporalização da imagem (situação, seqüência e montagem) e espacialização da imagem (tamanho/close, moldura/centramento-descentramento, cena/encenação).

Na interpretação dos dados utilizamos as discussões de Khel (2004) e Pereira (2004). De modo, que nossa análise não se deteve no drama novelístico da ficção, até porque percebemos que nos dois períodos (1995-2007) o tema é o mesmo, versa sempre sobre problemas enfrentados pela juventude de classe média, tais como drogas, profissão, gravidez na adolescência, vestibular, problemas familiares, separação dos pais e outros do gênero. Essas temáticas servem apenas de moldura para algumas imagens de corpos malhando que repentinamente, roubavam a cena, saindo fundo da cena e ocupando a figura central. Foram essas imagens que nos interessaram para a análise.

3 RESULTADOS E ANÁLISE

3.1 A TEMPORIZAÇÃO DAS IMAGENS EM MALHAÇÃO E O MITO DA JUVENTUDE

Uma das unidades de sentido que encontramos nos capítulos selecionados se refere a tipologia temporal das imagens. Em Malhação a tipologia é a da imagem temporalizada, quer dizer, “as imagens se modificam ao longo do tempo, sem a intervenção do espectador e apenas pelo efeito do dispositivo que as produz e apresenta” (AUMONT, 1995, p.160). O tempo nessa ficção televisual não corresponde ao tempo objetivo, da duração cronométrica que escoa, mas o tempo da ilusão proporcionada nos acontecimentos experimentados pelos personagens. A dimensão temporal de Malhação é quase absolutamente diurna, percebemos isso pela quantidade de imagens e cenas na luz do dia. O sol está sempre presente em Malhação, inúmeros capítulos começavam com o nascer do sol nas praias cariocas, por trás do Aterro do Flamengo. Repetidamente as imagens mostravam o início do dia na academia Malhação, com seus compartimentos (salas de aeróbica, dança ou musculação) sempre iluminados com a luz do dia.

Também há o recurso da seqüência de vários planos em certas condições de ordem e duração, que define a montagem. Na sequencialização de blocos de tempo, entre os quais nada há mais do que relações temporais implícitas, vemos que em Malhação a passagem da noite para o dia é ligeiríssima. Quase não há encenações no horário noturno, e as poucas que houve foram realizadas sob muita luz. As noites na academia eram lapsos ínfimos de tempo, encenações passageiras para recompor as forças. Na montagem dos quadros na ficção, há uma imagem que revela a imensa ligeireza da passagem da noite para o dia. Há um verdadeiro “salto de imagens”, a noite cede lugar imediato ao poderoso sol.

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Figura 1 - Uma superposição de quadros, em que a noite na academia é imediatamente sucedida pelo nascer do sol

Pela temporalização da imagem, percebemos que as noites, nessa ficção, não são julgadas significantes, ao contrário do dia, que é prolongado indefinidamente. Portanto, há, indiscutivelmente, uma valorização do sol, e do verão que é a estação permanente dessa ficção. Inclusive, não havia inverno, nenhuma chuva aconteceu, dentro de quatro anos de ficção. Na ficção está interditado qualquer coisa que viesse desmanchar aquele ambiente ensolarado e de perpétuo verão. A ficção é um permanente veraneio. Há a valorização do dia em detrimento da noite, do verão em detrimento do inverno, do sol em detrimento da lua, do calor em detrimento do frio, de roupas de malha em detrimento de agasalhos. De modo que é perceptível a ênfase das imagens numa fase temporal, ao que nos parece indicar, simbolicamente, a fase inicial da vida: a juventude. Não é por acaso que na ficção os personagens jovens estão em detrimento dos personagens adultos. Nessa teledramaturgia o seu elenco não envelhece, todos são mancebos, não alcançam a maturidade, pois a cada ano, outra turma mais jovem é introduzida no palco dessa academia ensolarada, ou dessa escola Múltipla Escolha.

O diurno, o verão e a juventude constituem uma composição homogênea de imagens que se justapõem para criar um desenho de realidade: nada de trevas, nada de frio, nada de chuva, nada de velhice. Tudo é jovem, claro, quente e feliz. Nesse sentido, o significado social dessa ficção, a partir de Pereira (2004, p. 80), é corroborar na construção de uma cultura feita para o jovem. Na atual cultura brasileira, a imagem da juventude evoca beleza, sedução, trabalho, saúde e vitalidade, ao contrário da primeira metade do século XX, em que, diz Khel (2004, p.90), a juventude era sinal de despreparo, imaturidade, desarmonia corporal e hábitos anti-sociais. Naqueles anos, diz a psicanalista, “um homem de 25 anos já portava o bigode, a roupa escura e o guarda-chuva, sinais necessários para identificá-lo entre os homens de 50 anos, e não entre os rapazes de 18” (KHEL, 2004, p.90). Pele branca e roupas escuras eram símbolos da seriedade que o jovem assumia.

A temporalização das imagens da ficção diz de uma outra estrutura de pensamento social, que tem regulado o comportamento dos sujeitos nestas últimas décadas. A imagem da idade juvenil permeia o imaginário dos indivíduos, configurando a narrativa mitológica de Apolo. Apolo, deus da luz e da beleza, tinha a tarefa de todas as manhãs transportar o carro do sol para o alto do céu. E a Terra inteira se enchia de luz. Doze horas depois, o carro dourado era puxado pelos seus poderosos cavalos para trás das longínquas montanhas; então, as trevas com seu manto negro envolviam a Terra. Uma vez por ano o sol desaparecia por tristes meses. E a Terra mergulhava nas gélidas sombras do inverno. Isso porque Apolo viajava com o carro dourado para o país dos hiperbóreos, terra de luz e alegria (CIVITA, 1973, p. 210).

Uma vez por ano, Apolo sentava-se mansamente com os hiperbóreos à mesa, comia de suas iguarias e tocava harpa, acompanhando o bailado dos dançarinos. Era um momento de festa que só terminava na hora triste em que Apolo atrelava seu coche resplandecente, e descia com o sol para despertar a Terra, desatando a vida numa explosão estonteante de cores e perfumes primaveris. As coincidências entre essa imaginação grega e nossa ficção televisual não são casuais, mas mitológicas: os habitantes de Malhação são os hiperbóreos que desfrutam da presença do sol e da alegria da juventude. Ser jovem ensolarado faz parte do imaginário, do arquétipo de felicidade que tem o povo brasileiro atualmente. O mito afirma que a felicidade está presente enquanto o coche dourado de Apolo estiver. Durante a estada de Apolo há alegria e vida plena, depois só tristeza. A felicidade dura um certo tempo, não é para sempre. Ela está reservada a um período delimitado: no caso do dia, enquanto for claro; no caso das estações, enquanto for verão; no caso da idade, enquanto for jovem.

Nessa ficção televisual, os corpos são sempre jovens, bonitos, peles bronzeadas de sua própria luminescência, portanto, felizes, incapazes de se sentirem feios, fracos ou doentes. Eles são tão bonitos que não adoecem, não sofrem nenhuma enfermidade e jamais morrem. Em Malhação ninguém tem sequer um resfriado. Seus corpos estão sempre belos e felizes, sempre risonhos, comem iguarias naturais e acompanham o ritmo frenético das “harpas” eletrônicas.

3.2 A ESPACIALIZAÇÃO DAS IMAGENS DE MALHAÇÃO E A FÁBRICA DE CORPOS JOVENS

Uma outra unidade de sentido que destacamos nos capítulos selecionados de Malhação foi referente a superfície da imagem. Quando olhamos para a imagem estabelecemos um contato entre o espaço real, em que estamos, e o espaço da imagem, que é um espaço plástico, desligado de sua referência à realidade. A primeira observação que fizemos nessa segunda catalogação foi identificar que a maioria das imagens selecionadas era composta por relações geométricas mais ou menos regulares entre as diferentes partes do corpo. A gama de valor das imagens era declarada na luminosidade dada em cada região do corpo que fora destacada, em contraste com a imagem do corpo global. Várias vezes, partes do corpo foram apresentadas em close, produzindo um efeito deliberado de aproximação sobre o telespectador, muitas vezes, obrigando o espectador não só a ver a superfície da imagem, mas ser dominado e até esmagado por ela. O close, diz Aumont (1995, p.141), tem o fim de “transformar o sentido da distância levando o espectador a uma proximidade psíquica e uma intimidade extremas”.

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Figura 2 - Closes: Musculatura do braço e musculatura da coxa

Dos freqüentes closes apresentados na ficção, percebemos que o conjunto das imagens não elege o rosto como o mais humano do homem, ele não é mais “o momento privilegiado da carne”, como diria Levinas (1980). O rosto era a marca distintiva na sociedade iluminista, era ele, em nome da inteligência, o distintivo entre os homens e os animais. Se levarmos em conta a afirmação de Pereira (2004, p. 77), que “o rosto é tanto mais valorizado quanto maior for o valor que a sociedade concede ao indivíduo”, então, podemos supor que o rosto em Malhação, por não se inscrever na distinção individual, nem marcar o lugar de expressividade, diz de uma sociedade que não marca a diferença individual. O evidenciado em Malhação é que não são as imagens do rosto os traços distintivos nessa cultura juvenil, mas as musculaturas definidas e formas precisas, principalmente nas pernas e abdomens.

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Figura - 3 Imagem dos componentes privilegiados do corpo: coxa e abdômen

A ficção ratifica uma mudança paradigmática na valorização do homem: o rosto não é mais o lugar social do corpo para marcar a distinção. As feições não precisam estar delineados nas simetrias estéticas impostas, mas o restante do corpo é obrigatório. A fisionomia mais perfeita, num corpo obeso perde todo o valor.  Isto porque a identificação ou o reconhecimento de si está no corpo. Esta constatação confirma-se na pesquisa de Pereira (2004, p. 81), quando pergunta a uma informante o que é perfeição corporal, recebendo como resposta: “perfeição corporal é para mim estar totalmente sem barriga”. Essa ficção, artefato imagético da cultura atual, estabelece que o primeiro vínculo de comunicação entre os homens atualmente não está no rosto, mas na definição dos músculos. A marca de pertença a um grupo social valorizado localiza-se na forma do corpo, manifestando uma sociedade regulada pelo olhar exterior, conferindo os padrões culturalmente impostos. Nas palavras de Le Breton (2003, p.22), “o sujeito só se reconhece no corpo após efetuar um trabalho de sobre-significação que o conduz a reivindicação de si”.

Ainda em termos de espacialidade destacamos a moldura das imagens selecionadas. Pois a imagem não é ilimitada, além de apresentar-se sob os limites da tela da televisão, ela própria apresenta-se sob forma de objetos isoláveis perceptivamente. É a moldura que estabelece o valor da imagem, quanto maior for o enquadramento, que é a atividade da moldura, maior o valor da figura. Segundo Aumont (1995, p.144), a moldura pode ser de dois tipos: limite e objeto. A moldura-limite é o que manifesta o circundamento da imagem, é a borda da imagem, “é o que interrompe a imagem e lhe define o domínio ao separá-la do que não é imagem”. A moldura-objeto é “a primeira borda desse objeto, sua fronteira material, tangível, com freqüência, essa borda é reforçada pela adjunção, ao objeto-imagem, de outro objeto que é o emolduramento”. A partir dessa compreensão, fizemos uma terceira catalogação das imagens, separamos as imagens por seu enquadramento. Primeira característica das imagens é que quase todas as imagens estão enquadradas na moldura-objeto, ou seja, os corpos em Malhação aparecem enquadrados na máquina. A borda do corpo em Malhação é definida pelo aparelho, seja em qualquer posição corporal: sentado, em pé ou deitado.

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Figura 4 - Imagens dos corpos em movimento com enquadramento de moldura-objeto

As imagens dos corpos na moldura das máquinas estão sugerindo que é possível a idade cronológica avançar, mas a máquina tem o poder de moldurar o corpo jovem, independente da idade. Essas imagens produzem uma identificação imaginária com o telespectador ao convocar pessoas de todas as idades e sexo para serem moldurados num corpo-jovem. O corpo moldurado pela máquina ressoa como “uma reparação para conferir ao corpo uma dignidade que não poderia ter caso permanecesse simplesmente orgânico” (LE BRETON, p.19). Isso atualiza no mito de Apolo a natureza da felicidade, pois deixa de ser temporal para ser espacial: basta construir e manter o corpo-jovem (malhado) para ser feliz. Nessa ficção, Apolo, mito da beleza, liberdade e sensualidade, permanecerá entre os de corpo-jovem, por tempo indeterminado.

Para Khel o corpo do jovem/adolescente é signo da cultura juvenil porque se caracteriza pela busca de prazeres e desfrutes de todas as liberdades da vida adulta, mas que é poupado de quase todas as responsabilidades. O corpo-jovem tipifica o ideal de jovem, hedonista, belo, livre e sensual, cuja regra é viver com a disponibilidade, a esperança e os anseios juvenis.

A adolescência na nossa cultura é a idade na qual se representam as formas imaginárias do mais-gozar. Toda publicidade apela para o ‘sem-limites’ da vida adolescente, representado pela velocidade da moto, pela potência do som, pela resistência do carro, pelo barato da cerveja e do cigarro, pelo corpo aeróbico e perfeito, malhado nas academias e transformado em ícone sexual, objeto incontestável do desejo de jovens, velhos e crianças (KHEL, 2004, p.100).

Muitos, nas últimas décadas, tornaram-se “jovens perenes”, conclui a psicanalista (KHEL, 2004, p.94), não apenas em conformar o corpo aos padrões do adolescente, mas viver psiquicamente essa idade. Para a autora, a sociedade que elegeu o adolescente como ideal para todas as idades produz um prejuízo enorme, pois não há quem queira ocupar o lugar do adulto, exercer a função de representante da lei. Assim a sociedade vive um desamparo: os adolescentes entram em pânico, diante do tudo poder, e os adultos se sentem desconfortáveis em desvalorizarem suas experiências e esvaziarem o sentido da vida.

A imagem do corpo jovem está relacionada com a vitalidade, alguém cheio de força, exuberante como o sol; um abençoado por Apolo.  Não é por acaso que muitas vezes há uma superposição de imagens, em que o quadro do Cristo Redentor nas praias cariocas se junta ao da academia de ginástica Malhação.

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Figura 5 - Imagem que mostra a relação estabelecida entre a academia e o Cristo Redentor

Considerações finais

Compreendemos, em termos de imaginário social, que essa ficção televisual não apenas traz de volta o arcaico (mito da juventude de Apolo), mas também o atualiza, na medida em que atrela a felicidade, não mais à idade do jovem, mas ao corpo do jovem. A felicidade deixa de ser temporal para ser corporal. Apolo não atrelará seu coche resplandecente por apenas um tempo, mas por um espaço corporal. Portanto, o que está no fundo da aparência dessa ficção é a possibilidade de Apolo permanecer entre os hiperbóreos, abençoando-os, tal como o Cristo Redentor dentro da academia, basta que os corpos estejam modelados com a aparência da juventude.

Malhação atualiza os hiperbóreos. Os que desfrutam da presença de Apolo não são os hiperbóreos, mas os “hipercorpos” (LEVY, 1996, p.112) cujas cabeças cingidas de louros, ou melhor, abdomens cingidos de músculos, estão livres da velhice. O corpo sempre rígido, armado, pele reluzente como bronze, sem flacidez alguma, é um apelo dirigido a Apolo, “não nos deixe envelhecer”. Nisto a pesquisa de Pereira é ilustrativa, pois das diferentes mulheres entrevistadas, diz a pesquisadora: “pareciam unânimes num ponto: tinham medo do envelhecimento corporal, representado como uma espécie de ‘fantasma’ que vivia assombrando aquelas mulheres e do qual era preciso livrar-se a qualquer preço” (2004, p.74).

Assim, a felicidade é para quem tem hipercorpo: beleza simétrica e proporcional, milimetricamente esculpida pelas máquinas. A fabricação desse hipercorpo funciona para negar o corpo que envelhece, que caminha para a degradação e morte. O mito da felicidade do hipercorpo é exatamente a possibilidade de triunfar sobre o sofrimento da “feiúra”, tipificada pela gordura do sedentário ou pela flacidez da velhice. Tal como os gregos, a sociedade atual se inspira na beleza radiante da aparência do corpo do mancebo. Porém, diferente dos helênicos, Malhação sugere que é possível eternizar essa aparência, não com as benções do deus Apolo, mas com os milagres da deusa Ginástica. Ser feliz, portanto, é uma questão corporal, a idade é acessória, pode ser trapaceada. O corpo pode mentir para os anos, basta desenvolver a arte do corpo nu (ginástica), uma técnica inventada pelos próprios gregos, os pais da mitologia ocidental.

Essa ficção televisual atualiza outra mitologia quando afirma que não é em qualquer lugar que se adquire um corpo jovem, mas num local específico. Malhação insinua que o único local possível para se fabricar “corpos sarados” é na academia de ginástica, junto às máquinas. São elas que garantem transformar os nossos corpos, dotando-lhes da eterna juventude.  Por isso, relacionamos a academia de ginástica ao espaço mítico do Epidauro, bosque tranqüilo onde “todos saravam de seus males pelas mãos exatas de Esculápio” (CIVITA, 1973, p.2002), o filho de Apolo. Dotado nas artes médicas, Esculápio preparava bálsamos capazes de vencer as mais terríveis enfermidades. Assim também as máquinas de ginástica vêm socorrer esse corpo que deve ser reparado, rearranjado, malhado.

Nesse clima pós-moderno de retorno do arcaico e, portanto do mito, possibilitado pelas novas tecnologias, a ficção televisual Malhação, nos aspectos temporais e espaciais das imagens analisadas, nos oferece o mito do corpo-jovem. Homens e mulheres felizes, porque foram capazes de se eternizarem no corpo adolescente pela ginástica ou pelas próteses das tecnociências. Sem dúvida esse mito constitui-se no imaginário social que tem mobilizado toda a sociedade brasileira na busca do corpo malhadoe, conseqüentemente, da felicidade.

NOTAS

*Doutor e Mestre em Educação, graduado em educação física, pedagogia e teologia, professor de Didática e Prática de Ensino em Educação Física.

**Mestra em Ciências da Informação, pedagoga, teóloga, doutoranda em sociologia e professora de Psicologia do UNIPÊ.

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FOREVER YOUNG: WORKED-OUT BODY, TELEVISIONAL FICTION AND IMAGINARY

ABSTRACT

This article interprets television images of the body as it is shown in the TV series Malhação, aiming to understand the collective imaginary that is found in gyms and the mythological structure of youth culture(PERREIRA, 2004; KHEL, 2004). To achieve this, we used two methodologies: Maffesoli’s (1996; 1998) formism (the appearance game) and the image analysis technique proposed by Aumont (1995). Results have shown a resembling correlation between the sunny bodies and Apollo’s myth, the worked-out body civilization and the hyperborean land, the gym and the healing sanctuary at Epidaurus.

KEYWORDS: gymnastic - televisional fiction - imaginary

ETERNAMENTE JOVEN: CUERPO FUERTE, FICCIÓN TELEVISUAL E IMAGINACIÓN

RESUMEN

Este artículo interpreta las imágenes televisivas del cuerpo en la ficción seriada “Malhação” intentando comprender la imaginación colectiva que circula en las academias de gimnasia, es decir, objetiva interpretar la estructura mitológica de la cultura del joven (PERREIRA, 2004, KHEL, 2004). Para eso, utilizamos como metodología la técnica del “formismo” (juego de las apariencias), de Maffesoli (1996, 1998) y la técnica de análisis de imágenes propuesta por Aumont (1995). El resultado obtenido fue la correlación por semejanzas entre: los cuerpos soleados y el mito de Apolo, la civilización de los cuerpos esculturales y el país de los hiperbóreos, la academia de gimnasia y el bosque Epidauro.

PALABRAS-CLAVES: gimnasia, ficción televisual, imaginación.

REFERÊNCIAS

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 2.ed.SP: Martins Fontes, 2001.

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Recebido em: 19/09/2007

Aprovado em: 14/01/2008

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