RESENHA

RODRIGUES, Anegleyce Teodoro. Gênese e sentidos dos parâmetros curriculares nacionais e seus desdobramentos para a Educação Física escolar brasileira. 2001. 156 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2001.

LUÍS CÉSAR DE SOUZA *

2006. No ano em que completam oito anos da apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs –, considero pertinente manter a discussão acerca do contexto que foi palco da elaboração e apresentação daquele documento, assim como o que ele significou para a educação e particularmente para a educação física brasileira. Para isso, a dissertação defendida em 2001 pela profª. Anegleyce Teodoro Rodrigues discute a “Gênese e sentidos dos Parâmetros Curriculares Nacionais e seus desdobramentos para a Educação Física escolar brasileira” e apresenta consideráveis elementos para compreensão e reflexão daquele documento com o contexto atual.

Em dezembro de 1996 foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira (LDB, 9.394/96) depois de quase uma década de grandes embates teórico-metodológicos e político-ideológicos no país. Naquele ano, o Brasil era presidido pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso e seu governo ficou conhecido pela consolidação do neoliberalismo iniciado por Collor de Melo no início dos anos 90. Aprovada a LDB, o Ministério da Educação se encarregou da elaboração dos programas e diretrizes que pudessem subsidiar a nova etapa da educação no país. Os PCNs constituem-se no programa curricular oficial e foram apresentados para subsidiar as ações pedagógicas das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, das Escolas e dos professores na seleção e sistematização de conteúdos, assim como orientação da prática pedagógica.

Para discutir os PCNs, a autora relaciona elementos macro-sociais, como a globalização, com elementos pontuais como a política educacional brasileira na década de 1990, derivada do neoliberalismo e cujo principal eixo é a livre concorrência no mercado, no qual o Estado aparece como regulador. De acordo com os princípios neoliberais, o Estado deve se livrar de responsabilidades sociais e isto implica a redução de gastos na área educacional.

Acordos e documentos de organismos e encontros internacionais também subsidiaram a elaboração dos PCNs. Entre eles estão a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, Declaração de Nova Delhi, Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, a Constituição de 1988, além do Plano Decenal de Educação para Todos (RODRIGUES, 2001, p. 88). 1 Nestes documentos, o princípio “aprender a aprender” se constitui num dos pilares da educação. Apreender as competências necessárias para se adaptar à versatilidade do mercado e respeitar as diferenças e desigualdades como se estas estivessem dadas naturalmente.

Aprender a aprender, isto é, desenvolver competências, se constitui num dos princípios centrais nos PCNs. De acordo com a autora, nos PCNs, “as relações sociais são reduzidas à competição entre indivíduos, sendo a competência considerada o passaporte para o sucesso. A desigualdade é considerada natural, assim como a existência de ganhadores e perdedores, integrados e excluídos” (p. 23). Na medida em que os conflitos sociais são negligenciados, conceitos como cidadania, democracia, justiça social, são ressignificados, assim como a responsabilidade pela desigualdade, pela exclusão e por todas mazelas sociais continuam sendo dos indivíduos, ou seja, cada sujeito é responsável por se integrar na vida social ou não.

As políticas públicas nos países de capitalismo periférico têm se constituído no sentido de fortalecer a economia de mercado, estando dependentemente atrelado a ele. Uma vez que a elaboração de políticas para integração desses países na economia mundial está influenciada por organismos internacionais, a autora identifica a relação entre as políticas educacionais brasileiras e o Banco Mundial, ou ainda a própria Unesco, pois, é notória a influência do relatório da Unesco para o século XXI 2 nos PCNs, principalmente no que diz respeito a aprender a viver juntos.

A autora chama a atenção para o “discurso de integração” nos PCNs, pois, a ênfase na função social da escola e da educação física na formação do homem integral para uma sociedade integrada via discurso da inclusão, da inserção e do convívio social, aparece como um dos eixos que articulam a proposta (p. 40). Por isso, os PCNs apresentam discurso superador e progressista, pois, conforme a autora, este discurso é, na essência, conservador e foi denunciado por Marilena Chauí nos anos 60, quando do acordo MEC-USAID, reaparecendo agora travestido de progressista e, para um leitor aligeirado, pode passar despercebido.

A essência conservadora dos documentos se destaca ainda por estar influenciada por organismos internacionais que historicamente desconsideram a educação voltada para a transformação social. Pelo contrário, difundem o consenso e a camuflagem dos conflitos sociais. Esta é uma questão grave, pois, ocultar a participação dos organismos internacionais na definição dos PCNs negligencia as concepções que fundamentam o documento, e isso contribui para que não haja questionamento por parte dos educadores. Este ocultamento é intencional uma vez que os pareceristas o identificaram e ainda assim o MEC optou por mantê-lo.

No processo de elaboração, a autora relata que os PCNs contaram com a participação de educadores brasileiros em duas etapas: na versão preliminar, na qual se analisou e debateu o documento, e na última versão, em que foram consideradas as críticas e sugestões dos pareceristas. No entanto, este se constituiu em mais um discurso sem fundamento na medida em que não houve debate público para discutir os PCNs, mas sim a solicitação de pareceres isolados encaminhados para a comissão de especialistas, mas que na versão final do documento não foram considerados na sua integralidade crítica. A participação da sociedade civil na elaboração do projeto escolar também não foi considerada. Nesse sentido, o discurso da autonomia fica submetido a uma forma de controle sobre o que, como e a propósito de que deve servir a educação, e ao mesmo tempo em que defende um cidadão crítico e autônomo, os caminhos percorridos na elaboração dos PCNs representam o contrário.

Apesar de os PCNs terem sido elaborados como orientações sugeridas, “o MEC os colocam em cena como modelo ou paradigma curricular para a reforma dos currículos escolares de estados e municípios, previsto nas diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental através da resolução CEB nº 2/98” (p. 54). Assim apresentados não há dúvida de que a maioria das escolas públicas brasileiras, dado o sucateamento em que foram sujeitadas historicamente, aceitaria os PCNs como avanço para a educação. No entanto, nos adverte a autora, se considerarmos os problemas históricos da Educação Física, que não se limitam à questão da transmissão de conhecimentos sistematizados, é possível afirmar, primeiro, que essa política não é capaz de dar origem a transformações dentro da escola, como afirmou o MEC, por não favorecer condições concretas para se trabalhar o saber elaborado, necessário ao exercício da cidadania, tais como: sólida qualificação científica, cultural e política para os professores, desenvolvimento de projetos que estimulem a organização coletiva do trabalho pedagógico e a participação dos professores nos processos decisórios e na elaboração das políticas públicas (p. 60).

No campo específico da Educação Física Escolar, a autora promove uma contextualização histórica e destaca a relação que manteve, a partir do final do século XIX, com interesses da classe dominante. Neste “jogo” tem ocorrido uma sintonia entre as políticas educacionais e a construção de uma sociedade pautada pelos princípios do modelo capitalista. Nesse período, a Educação Física esteve influenciada por médicos, militares, escolas de ginásticas européias, que se apresentaram de maneiras e momentos diferentes como método desportivo generalizado, tecnicismo, paradigma da aptidão física, entre outros. Em comum, estas abordagens apresentam a despreocupação com a formação humano-genérico, 3 objetivando a formação consensual, integrada, de adaptação e, portanto, que não fomente a crítica da estrutura social.

Foi realizado ainda o levantamento de pesquisas recentes sobre a prática pedagógica da Educação Física e analisadas as principais conclusões. O espontaneísmo, a falta de planejamento para as aulas, avaliação centrada na saúde corporal, aulas preparatórias para competições esportivas, aulas que ainda mantêm a discriminação de gênero, mas também exemplos de aulas que procuram reconhecer sua contribuição para a formação/reflexão pedagógica do aluno. 4

Os PCNs (con)fundem as abordagens teóricas da área. Desse modo, o documento promove o confronto entre as abordagens psicomotora, construtivista, desenvolvimentista e crítica com as vertentes tecnicista, esportivista e biologicista, de maneira superficial e aligeirada sem destacar os autores responsáveis pelas obras. Além do que, a tentativa de absorver o que de melhor cada uma das abordagens oferece, não resultou noutra coisa que não o ecletismo e, de acordo com a autora, esse ecletismo busca o consenso pedagógico.

Os PCNs tentam assimilar o que há de melhor em diversas teorias, dissolvendo oposições e engendrando uma prática que, no limite, gera um tipo de pragmatismo que busca evitar dissensos e dissolvê-los, ao invés de enfrentá-los e resolvê-los (p. 42). Isso dificulta a luta por uma organização social alternativa ao modelo capitalista, pois o discurso da integração exclui o conceito de conflito social e, assim, vale tudo para a educação melhorar, mas sem alterar a estrutura.

A dissertação conclui que a gênese constitutiva dos PCNs é identificada com o processo de implementação de políticas educacionais que têm como pressuposto o atendimento das exigências do processo de globalização e de desenvolvimento do projeto neoliberal, ligado ao cumprimento da agenda e das cartilhas dos organismos internacionais como Unesco, FMI e Banco Mundial (p. 135). Embora não esteja explícito o grau de determinação destes organismos nos PCNs, não há dúvida de que suas interferências são mediatizadas pelo ecletismo e pela metamorfose conceitual que aponta a categoria da integração como sinônimo de inclusão ou adaptação social (p.137).

Por meio de discurso crítico e democrático, os PCNs se apresentam como fiel cumpridor da função do Estado capitalista, qual seja: a ação coercitiva que busca justificar e manter sua hegemonia através do consentimento. Exemplo disto é o conceito de cidadania, pois, esta passaria pela construção de um sujeito autônomo, responsável, participativo e racional, discurso que na aparência surge com ares emancipatórios, mas na verdade se insere na lógica da competição e do mérito individual, considerando que essas são habilidades indispensáveis à conformação da força de trabalho às novas demandas do mercado (p. 142).

A autora reconhece que no jogo da sociedade globalizada, em que os interesses de países de capitalismo central e de países de capitalismo periféricos são divergentes, quando não opostos, infelizmente tem prevalecido os interesses do capital internacional e esses interesses têm se concretizado na medida em que os países da periferia, como o Brasil, cumprem suas agendas e se submetem às cartilhas dos organismos internacionais que estrategicamente pretendem dissolver oposições e conflitos em consenso entre os povos (p. 144.)

Identificada a fragilidade do documento, o estudo aponta como alternativa o diálogo crítico com os PCNs, utilizando-os como ponto de partida para reflexão sobre os compromissos que a prática pedagógica da Educação Física deve privilegiar, no sentido em que Paulo Freire acredita: “os elementos de superação do opressor podem ser encontrados nele próprio, no desnudar de suas contradições” (p. 149). De minha parte, entendo que após oito anos de aprovação dos PCNs, as contradições que os cercam continuam presentes e férteis para manter o diálogo crítico com as orientações oficiais, para avaliarmos seu impacto no sistema educacional e sua relação com as questões educacionais da atualidade, seja num contexto abrangente ou na especificidade da Educação Física. Desafio posto a nós educadores.

NOTAS

* Mestrando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e professor das redes municipal e estadual de Educação.

1 A partir de agora citarei apenas as páginas da dissertação.

2 Em 2001 o relatório que teve a coordenação de Jaques Delors, foi editado na sua 6ª edição pela Cortez, com título Educação: um tesouro a descobrir – relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI.

3 Conceito que a autora toma emprestado de Agnes Heller e que “significa a formação do sujeito coletivo, a emancipação do ‘nós’, a articulação com a produção do saber científico e com a reflexão filosófica” (RODRIGUES, 2001, p. 148).

4 Esta afirmação deve-se às informações apresentadas na unidade II, principalmente nos subitens 2.2, 2.3 e 2.4, da dissertação analisada.

Recebido: 29 de março de 2006
Aprovado: 10 de maio de 2006

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