“ALINHAMENTO ASTRAL”: O ESTÁGIO DOCENTE NA FORMAÇÃO DO LICENCIADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESEF/UFRGS

RUTE VIÉGAS NUNES *
ALEX BRANCO FRAGA **

RESUMO

O estudo analisa o estágio docência no processo de formação do licenciado em Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apoiados na pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso, buscamos compreender de que modo os estagiários articulavam a “teoria” aprendida nas disciplinas pedagógicas com a “prática” docente na escola. A metáfora do “alinhamento astral”, empregada pelo nosso colaborador para se referir à organização curricular do curso, nos permitiu perceber que a crítica do grupo recaía sobre o predomínio de uma didática centrada na “educação dos corpos sentados” em detrimento de uma, voltada aos “corpos em movimento”.

PALAVRAS-CHAVE: formação profissional – estágio docência – prática de ensino

INTRODUÇÃO

Neste estudo, tratamos de analisar o estágio docência no processo de formação do licenciado em Educação Física da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF/UFRGS). Através de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso, a idéia principal era compreender de que modo os estagiários articulavam, em suas intervenções pedagógicas durante a prática de ensino, os conhecimentos teóricos apreendidos ao longo do curso.

As dificuldades encontradas no estágio docência são de várias ordens, mas a que nos chamou mais a atenção, neste estudo, diz respeito à metodologia de ensino efetivamente utilizada e àquela aprendida nas disciplinas específicas. Pelo que se pôde depreender das observações e entrevistas, mais pesquisas sobre o percurso dos estudantes ao longo do curso de licenciatura são necessárias, especialmente no transcorrer do estágio docência, para que se possa construir um currículo mais afeito à formação de professores em nossa área.

Estudar a formação profissional a partir do estágio docência é importante justamente porque cada vez mais precisamos provocar, como diz Ventorim (2001, p. 104), “a reflexão e o debate acerca da problemática da relação ensino-pesquisa na formação do professor, [...] considerando o papel das disciplinas de Prática e Estágio Supervisionado nos cursos de formação de professores”. Apesar da importância deste tema no contexto pedagógico, só detectamos sua centralidade no transcorrer desta pesquisa.

EMERGÊNCIA DO OBJETO DE ESTUDO

Este estudo começou a ser escrito no início de 2005, durante as observações das aulas de Prática de Ensino, turma A, na ESEF/UFRGS. Inicialmente a pergunta que nos movia era: O que nos prepara efetivamente para a função de professor? O primeiro esboço de resposta que os estagiários procuraram desenhar durante a prática de ensino baseava-se na idéia de que as experiências acadêmicas obtidas no transcorrer do curso não lhes pareciam ajustadas às suas expectativas, especialmente depois de seus primeiros contatos com a realidade escolar.

Numa das reuniões coletivas da disciplina na escola, um dos estagiários procurou resumir este sentimento de desarticulação entre teoria e prática logo nas primeiras aulas: “O problema é que não estamos conseguindo fazer o ‘alinhamento astral’”. Depois de uma risada geral do grupo, ele explicou que o conhecimento apreendido no decorrer da formação era como o alinhamento astral: todos nós sabemos da existência dos astros, conhecemos alguns deles, sabemos que há algum motivo para que estejam ali, e dispostos da forma como estão, mas não sabemos o porquê, nem o que os interliga.

O estagiário fez correlação entre os conteúdos desenvolvidos pelas disciplinas no decorrer de nosso curso com a disposição dos “astros”. Ele disse que sabemos da existência de inúmeros conteúdos, dominamos alguns, sabemos que há uma justificativa para a existência de cada um deles, mas não sabemos por que fazem parte do nosso currículo. Para ele, não havia uma referência que justificasse por que estão dispostos desta ou daquela forma, muito menos tinha noção de como articulá-los em seus discursos e na prática de ensino: o alinhamento astral, nas palavras do nosso colaborador, refere-se a “uma situação onde tu tens várias idéias, tem vários conceitos e tá tudo solto na cabeça e tu vê, de uma hora pra outra, existe uma possibilidade de relacionar eles e de fazer uma certa seqüência e de traçar um certo plano, uma estratégia para intervir” (Colaborador, maio 2005).

Este conjunto de falas acabou repercutindo não só no grupo, mas também neste estudo. Vimos ali uma metáfora muito interessante sobre o processo de formação docente dentro do estágio e, conseqüentemente, um mote para aprofundarmos a investigação neste estudo.

Na medida em que a metáfora alinhamento astral ganhou força no trabalho, passamos a centrar nossa atenção no processo vivido por este acadêmico durante o estágio docência, tornando-se nosso colaborador neste estudo. Em função desta decisão, o estudo de caso passou a ser nossa ferramenta metodológica principal, já que se trata de uma “microetnografia”, ou seja, uma microinvestigação na qual podemos focalizar “aspectos muito específicos dentro de uma realidade maior” (MOLINA, 2004, p. 95). É também um instrumento que permite estudar de maneira bem localizada algo que pode vir a ter um valor mais generalizado, “onde o objeto estudado é tratado como único, uma representação singular da realidade que é multidimensional e historicamente situada” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 17).

De acordo com os autores, por meio do estudo de caso se pode buscar uma interpretação mais profunda de determinado contexto, usando uma variedade de fontes de informação, revelando “generalizações naturalísticas” e “experiências vicárias” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 17). Assim, é possível representar os diferentes, e por vezes conflitantes, pontos de vista presentes numa única situação social, utilizando uma linguagem mais direta e uma abordagem mais minuciosa do que outros procedimentos de pesquisa nos permitem fazer.

O trabalho de campo constituiu-se de três observações de aulas ministradas pelo nosso colaborador no primeiro semestre de 2005, durante estágio docência na Escola Estadual de Ensino Fundamental Paraíba, em Porto Alegre: alguns contatos informais com ele, em que conversamos sobre questões referentes à metodologia de ensino aprendida durante a graduação na ESEF/UFRGS; sobre o currículo do curso de Educação Física e, mais ao final, aplicação de entrevista semi-estruturada.

As duas primeiras observações foram realizadas no início do semestre, quando nosso colaborador iniciava sua atividade docente junto a uma turma de alunos(as) da 4ª série do ensino fundamental. Já a última observação aconteceu no final de seu estágio, na 25ª aula, de um total de 27 previstas para cada estagiário que atuava naquela escola.

A entrevista semi-estruturada tentava entender um pouco mais, a partir da metáfora do alinhamento astral, o significado do estágio docência para nosso colaborador. Ela foi realizada na sala dos professores da referida escola e registrada num gravador de voz. Depois de transcrita, ela foi apresentada ao nosso colaborador para conferência dos registros e autorização de uso através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

FORMAÇÃO DOCENTE EM EDUCAÇÃO FÍSICA

A Educação Física é um campo que abrange diferentes áreas de conhecimento. De modo geral, pedagogia, fisiologia, sociologia, biomecânica, história, cinesiologia são algumas das disciplinas que há bastante tempo compõem seu corpo teórico. O campo de atuação também é vasto: educação física escolar, educação física especial, academias de ginástica e de dança, recreação e lazer, treinamento esportivo, administração esportiva e outros.

Afirmamos, com base nos textos de Soares (1998, 2001), que ela ganha um caráter mais sistematizado em meados do século XIX, quando surgem, mais notadamente na Europa, os métodos ginásticos alimentados pelo emergente processo de higienização e mecanização dos corpos. Por meio destes métodos, buscava-se uma educação dos corpos baseada em pressupostos sanitaristas como forma de combate não só das moléstias que afetavam à população, mas também como meio mais eficaz de modificação de crenças e costumes populares em contraposição aos emergentes conhecimentos científicos (SOARES, 1998, 2001). A educação do físico passava, então, a ser o instrumento mais adequado de imposição de condutas da população para que pudessem refletir uma nova ordem físico-sanitária (FRAGA, 2005).

Desde seu fortalecimento até os dias de hoje percebemos que a disputa pela identidade da área gira em torno, basicamente, da grande área saúde, geralmente vista numa perspectiva mais biomédica, e da grande área educação, vista numa perspectiva mais sócio-cultural. De um lado estão aqueles que buscam agregar os conhecimentos produzidos pela educação física à medicina, na busca de maior legitimidade científica, muitas vezes tentando retirar o caráter educativo da área. De outro, estão aqueles que entendem que não existe Educação Física sem um fundamento pedagógico. Para estes últimos, a formação docente é um dos elementos mais marcantes da identidade profissional da área.

Os trabalhos de caráter científico nessa temática são muitos, mas optamos por apresentar alguns que estão mais diretamente ligados a este estudo. Conforme Molina e Molina Neto (2002, p. 57), os termos genéricos – formação, currículo, esporte –

dificultam tanto a comunicação entre os segmentos profissionais que disputam questões de validez e verdade sobre o que é educação física, o que é esporte e como deve ser a formação de professores, quanto inviabilizam acordos mínimos sobre essa temática. [E ainda afirmam que] é possível considerar [...] que grande parte das dificuldades para encontrar saídas consistentes no âmbito da formação em educação física deve-se à impossibilidade de haver concordância entre os diferentes segmentos envolvidos na questão: professores, administradores e alunos.

Em outro texto, Molina e Molina Neto (2003) apontam para a discussão dos primeiros efeitos da implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, do Projeto de Regulamentação do Profissional de Educação Física e das normativas que tramitam no Conselho Nacional de Educação, que ora tratam este profissional como da área de ensino, ora como da área da saúde, têm aumentado o número de trabalhos investigativos sobre a formação do profissional de Educação Física em nosso país.

Trabalho por nós considerado importante é o de Figueiredo (2001), que escreve sobre o currículo e educação, no âmbito da formação profissional docente em Educação Física, mais especificamente o conhecimento considerado fundamental para o licenciado exercer sua função docente. Intitulado “Formação, currículo e saber”, o artigo foi publicado no livro Educação Física Escolar – política, investigação e intervenção.

Já no texto “Formação profissional em Educação Física brasileira: uma súmula da discussão dos anos 2001 a 2004”, escrito por Andrade Filho e Figueiredo (2004), publicado no segundo volume da coleção Educação Física Escolar – política, investigação e intervenção, encontramos análises do processo de discussão das diretrizes curriculares específicas aprovadas para os cursos de licenciaturas em Educação Física no Brasil e as modificações decorridas destas entre os anos 2001 e 2004.

O texto de Molina Neto e Giles (2003), denominado “Formação profissional em Educação Física”, que compõe o livro A Educação Física no Brasil e na Argentina, traz uma questão intimamente ligada ao objeto deste estudo: o entendimento de que “a formação profissional não pode descuidar das relações entre a teoria que procede das investigações e a prática teórica cotidiana da Educação Física nos diferentes ambientes onde ela se desenvolve” (MOLINA NETO; GILES, 2003, p. 253).

O professor Marcelo Gustavo Giles, formado em Educação Física pela Universidade de La Plata, na Argentina, publica, nesse mesmo livro, texto intitulado “A formação profissional em Educação Física”, onde trata questões referentes à formação na Argentina, que se repetem também em nosso país: a falta de uma identidade da área e sua interferência na formação docente.

No mesmo livro em que Figueiredo (2001) escreve “Formação, currículo e saber”, encontramos outro texto que discute a formação docente e suas implicações, intitulado “A formação do professor e a relação ensino e pesquisa no estágio supervisionado em Educação Física”, de Ventorim (2001), no qual está baseada a maior parte de nossas reflexões, justamente por se tratar de texto que focaliza a importância do estágio docência na formação acadêmica do professor de Educação Física. Segundo Ventorim (2001, p. 93), “os cursos de formação de professores devem se integrar na perspectiva de profissionalização do magistério com vistas à formação teórica e prática dos professores para o enfrentamento dos desafios do trabalho pedagógico no interior das escolas”.

Baseados na argumentação destes autores, justificamos a importância de se analisar o estágio docência dentro do processo de formação do licenciado em Educação Física. E para dar conta da tarefa, colocamos em pauta os aspectos teóricos desta formação aliados à prática de ensino efetivamente realizada na ESEF/UFRGS.

FORMAÇÃO DOCENTE NA ESEF/UFRGS

Após aprovação pela Comissão de Graduação, a formação profissional em Educação Física da ESEF/UFRGS, desde o dia 15 de julho de 2004, dividiu-se em dois cursos: Bacharelado e Licenciatura, conforme a Resolução n. 7, de 31 de março de 2004, publicado pelo Conselho Nacional de Educação (COMGRAD, 2004).

Na “nova licenciatura”, assim chamada informalmente para se diferenciar do currículo em extinção, uma das principais modificações é a carga horária destinada ao estágio docência: 400 horas distribuídas em educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Distribuição já aplicada em alguns cursos do país, com carga horária muito reduzida, conforme assegura Ventorim (2001, p. 107): “a desproporcionalidade de sua carga horária em relação à abrangência de atuação solicitada, já que prevê a realização do estágio nos níveis de educação infantil, fundamental e médio, na mesma disciplina e no mesmo semestre”, mas que na ESEF/UFRGS, como mencionamos anteriormente, concentrou-se na disciplina EDU 02232 – Prática de Ensino em Educação Física, sem a exigência de distribuição proporcional entre os três níveis de ensino, com 150 horas de carga horária semestral.

Apesar de esta modificação ter ocorrido dentro do período que iniciamos este estudo, optamos em centrar análises no currículo do curso Licenciatura Plena 045-00, criado pela Resolução n. 02/98, que traz como principal modificação à substituição das seis áreas de conhecimento anteriores por três áreas: formação básica, formação geral e formação especializada. A escolha deste currículo se justifica por ter sido o que o nosso colaborador efetivamente cursou.

No currículo, constam 20 disciplinas obrigatórias, totalizando 92 créditos, e disciplinas de caráter eletivo, que devem totalizar 100 créditos para haver a colação de grau. No transcorrer deste estudo, especialmente depois da entrevista concedida por nosso colaborador, fizemos um pequeno levantamento das disciplinas obrigatórias que compõem o currículo do curso e que desenvolvem conteúdos de instrumentalização pedagógica e metodologias de ensino. Dentre elas, “Psicologia da Educação A”, “Psicologia da Educação B”, “Didática Geral A”, “Organização da Educação Brasileira” e “Metodologia de Ensino em Educação Física” e “Educação Física Infantil e Fundamental”. Desta listagem, apenas as duas últimas tratam de conteúdos especificamente voltados à atuação docente em Educação Física, e também as únicas ministradas por professores com formação na área. As demais são oferecidas pela Faculdade de Educação (FACED/UFRGS), com turmas formadas por alunos/as dos mais diferentes cursos de licenciaturas da Universidade.

Mas é justamente quando os acadêmicos ingressam na disciplina Prática de Ensino em Educação Física é que se tornam mais evidentes as dificuldades de articulação entre os diferentes conhecimentos teóricos tratados ao longo da graduação e as necessidades concretas surgidas no âmbito da prática docente. Por exemplo, organizar planos de aulas de acordo com os objetivos determinados, conduzir uma turma de alunos em direção ao objetivo proposto no plano de trabalho, motivar os mais diferentes alunos nas mais diversas práticas corporais, entre outras.

A partir de então, começamos a perceber a necessidade de análise mais sistematizada da relação entre os conteúdos efetivamente assimilados pelos alunos durante a formação acadêmica e as demandas que surgem em cada período de aula ministrada na escola.

ESTÁGIO DOCÊNCIA

O estágio docência é fase importante para o desenvolvimento de um professor. E é requisito obrigatório na formação de um licenciado em Educação Física. Sem ele não há oportunidade de vivenciar a prática docente e seus desafios antes de os acadêmicos serem “arremessados” ao mercado de trabalho.

O estágio docência observado tinha carga horária de 10 horas semanais, totalizando 150 horas no semestre. Para que o aluno estivesse apto a cursá-lo era preciso haver cumprido um total de 144 créditos, sendo 74 obrigatórios e 70 créditos eletivos. No semestre em que fizemos este estudo, eram oferecidas quatro opções de escolas onde os alunos poderiam desenvolver o estágio docência: Escola Estadual Paraíba (turma “A”), Escola Estadual Paulo da Gama (turma “B”), Escola Estadual Souza Lobo (turma “C”) e Escola Estadual Rio Branco (turma “D”).

A turma “A”, da qual fazia parte nosso colaborador, era composta por 10 acadêmicos, sendo seis homens e quatro mulheres, que assumiram três turmas de 1ª série do ensino fundamental, três de 2ª, duas de 3ª e duas de 4ª. O horário do estágio era das 7h30min às 11h30min nas segundas e quartas-feiras, e as atividades estavam distribuídas em prática docente efetiva, elaboração dos planos de trabalho, organização dos planos de aula, relatórios de observação das aulas de um colega e um relatório final da prática como um todo. Além destas tarefas, havia reuniões coletivas nas quais se discutia o andamento das aulas, intervenções pedagógicas realizadas ou que deixaram de ser feitas e assuntos pertinentes à docência em Educação Física de um modo geral; ora trazidos pelo orientador, ora por demanda oriunda da prática na escola.

No que se refere à literatura sobre este campo de estudos, encontramos poucos trabalhos que tratam diretamente do estágio docên-cia enquanto parte integrante do processo de formação profissional em Educação Física. Mas, para Ventorim (2001, p. 102), “a práxis pedagógica [...] é um contínuo processo de construção, criação e recriação coletiva [...] no interior do curso de formação [...] no contexto de atuação profissional em que a própria prática de ensino do professor em formação [...] acontece”. É neste contexto que o profissional em formação tem a oportunidade de experienciar sua prática futura, ainda com o apoio de um professor que irá orientar suas intervenções, sempre que necessário.

Segundo Piconez, citada por Ventorim (2001, p. 103), o estágio docência é “um componente teórico-prático, isto é, possui uma dimen-são ideal, teórica, subjetiva, articulada com diferentes posturas educacionais, e uma dimensão real, material, social e prática, própria do contexto da escola brasileira”.

Com base nos autores estudados e na prática observada na escola, afirmamos ser no estágio que o acadêmico começa a se sentir diretamente responsável por seus alunos e conhece a realidade da escola pela ótica docente. Mas, ao mesmo tempo, ainda se percebe, enquanto acadêmico em formação, que precisa contar com o amparo de seu orientador. Ventorim (2001, p. 101-102) diz que se deve utilizar o período do estágio como um momento de reflexão “sobre o próprio processo de aprender e sobre a atuação pedagógica, na busca de um aperfeiçoamento contínuo”. Para a autora, o estágio realizado durante a formação profissional docente deve se constituir em tempos e espaços onde o enfrentamento das questões concretas da realidade escolar constitua um meio de construção e apropriação de propostas de ensino, onde se possa pesquisar a realidade, questioná-la e posteriormente intervir nela (VENTORIM, 2001).

Este tempo/espaço deve ser utilizado também para que façamos uma reflexão a respeito da efetiva preparação acadêmica para a prática docente. Propor questões tais como: Que conhecimentos desenvolvidos ao longo do curso de licenciatura em Educação Física os alunos acionam quando começam a dar aulas durante seu estágio docência?

“ALINHAMENTOS” FINAIS

Com o depoimento dado pelo nosso colaborador, e os demais dados levantados neste estudo, foi possível perceber a relevância das disciplinas cujo mote central são as discussões de cunho didático-metodológico, pois como disse nosso colaborador “a função do professor é muito difícil, justamente por não existir uma fórmula certa” (Colaborador, maio 2005), exigindo deste “razão e sensibilidade” para intervir com eficácia nos mais diferentes conflitos e contextos. Para ele, um dos problemas da compreensão dos acadêmicos nesta fase da formação profissional são as disciplinas cursadas na FACED, que “têm de contemplar um público muito grande, e muito diversificado, com demandas diferentes, e a Educação Física, por ser uma disciplina do movimento e não necessariamente da sala de aula ainda têm mais diferenças, e demandas mais diferentes ainda” (Colaborador, maio 2005).

Ainda segundo o colaborador, estas disciplinas procuram atender, na medida do possível, a todos esses diferentes interesses, mas nem sempre obtêm sucesso. Na sua visão, se as disciplinas fossem ministradas por professores de Educação Física haveria maior “legitimidade”, ou pelo menos mais proximidade com nossa realidade, pois cursaríamos tais disciplinas a partir da ótica de um profissional “semelhante ao teu meio” (Colaborador, maio 2005).

No nosso entender, este é um modo um tanto simplista de tratar o processo de formação de professores, pois se por um lado um professor da área ministrando disciplina de cunho pedagógico poderia trazer maior aproximação com o universo didático da Educação Física, por outro também há o risco de se trabalhar numa perspectiva reducionista de educação dos corpos, exatamente por um perfil mais mecanicista que muitas vezes toma conta de nossa área.

Sem dúvida, estas são questões que merecem uma investigação que ultrapasse o exercício de análise aqui proposto. Talvez pudéssemos começar a pensar, a partir do que disse nosso colaborador, que as disciplinas que lidam com as práticas pedagógicas, especialmente aquelas oferecidas pela FACED/UFRGS, tratam de uma metodologia mais voltada à “educação de corpos sentados” (SILVA; ALMEIDA, 1994, p. 95) e menos à educação dos corpos em movimento. Compreendendo como “educação de corpos sentados” as práticas que ocorrem naquelas disciplinas dentro da sala de aula, que privilegiam um modo de ensinar e aprender mais centrado na contenção física do que no movimento corporal de caráter reflexivo.

Contudo, os dilemas encontrados pelos acadêmicos de Educação Física no estágio docência não se resumem apenas à falta de uma metodologia mais adequada aos corpos em movimento ao longo do curso. Pois quando se está com os alunos nos pátios ou nas quadras escolares, mesmo sem as cadeiras e classes a lhes tolher os gestos, também acionamos um conjunto de regras, normatizações e instrumentos que produzem cerceamentos de outras ordens à movimentação corporal discente. E muitas são as “normas que compõem aquilo que é tido como a melhor forma de disposição dos corpos, tendo em vista os princípios de eficiência na aprendizagem, bem como as rotinas que formam a dinâmica escolar” (OLIVEIRA, 2002, p. 4).

Para finalizar, torna-se importante retomar a metáfora do alinhamento astral, criada pelo nosso colaborador e que acabou se transformando no título deste estudo. Para um grupo que recém iniciava seu estágio docência, imersos numa série de incertezas sobre o que haviam aprendido ao longo do curso, confrontados diante de uma realidade escolar bem diferente daquela que imaginavam nas disciplinas de caráter teórico-pedagógico, a expressão alinhamento astral resumia bem o sentimento geral de insegurança que assustava o grupo nas primeiras aulas.

A busca pelo “alinhamento”, não só dos conhecimentos, mas também dos alunos àquilo que se propunha em aula, era visto como algo positivo e desejado por todos. Não se tratava, é importante salientar, de “alinhar” no sentido de pôr os alunos em ordem, endireitar, disciplinar, o que talvez pudesse remeter a um processo de mera disciplinarização dos corpos, mas sim no sentido de organização das “idéias” acerca do exercício docente. Um processo que ocorre lentamente, a partir de experiências e reflexões, onde é necessário, como diz nosso colaborador, “ter uma sensibilidade para saber filtrar os conhecimentos” (Colaborador, maio 2005).

Após este estudo ficou mais evidente a necessidade de se discutir com mais profundidade os conhecimentos teóricos que sustentam a prática docente e, principalmente, pensar a conexão entre teoria e prática desde o primeiro semestre do curso de licenciatura. A desarticulação entre os conteúdos curriculares é uma das principais falhas na formação docente em Educação Física. Nas palavras de Giles (2003, p. 298),

seria desejável que nos ocupássemos de revisar as razões políticas e científicas pelas quais não se estabelecem, na formação, disciplinas que abordem os debates filosóficos e epistemológicos que permitam conhecer as concepções tradicionais da ciência, as críticas que estas tradições recebem, as dificuldades que estas omissões acarretam para as práticas e a formação para essas práticas.

Na verdade, pensamos que é impossível realizar uma boa prática no final do curso sem refletirmos sobre o que ela representa dentro da formação profissional docente desde o início da graduação, sem levar em conta que, como diz Tomaz Tadeu da Silva (1999, p. 30), “o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz”.

É fundamental discutirmos todos os aspectos que caracterizem o estágio docência como um dos componentes fundamentais da formação profissional do licenciado, mesmo que só venhamos a compreendê-los depois de formados (ou nem mesmo aí). Mesmo com todas as limitações que a situação de estar “ainda dentro-quase fora” do curso de licenciatura plena em Educação Física na ESEF/UFRGS nos impõe, um dia estaremos “prontos” e “acabados” para a tarefa de ensinar, pois para desempenhar bem a função docente é preciso estar permanentemente, e de diferentes maneiras, aprendendo a ser professor.

 

“Astral Alignment”: the lecturing stage in the teaching education of licentiates in Physical Education at ESEF/UFRGS

ABSTRACT

This study analyses the lecturing stage in the teaching education process of licentiates in Physical Education at Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Based on qualitative research of the case study type, this work aimed at understanding the way through which trainees articulated the “theory” learned in the pedagogic subjects with their teaching “practice” at school. The metaphor of “Astral Alignment”, used by our collaborator to refer to the syllabus organization of the course, allowed us to perceive that the criticism of the group fell on the predominance of a didactic practice which was centered in the “education of seated bodies” as opposed to a didactic practice centered in the “bodies in movement”.

KEYWORDS: professional education – lecturing stage – teaching practice

 

“Alineamiento astral”: la práctica docencia em la formación del licenciado en educación física en ESEF/UFRGS

RESUMEN

Este estudio analiza la práctica docencia en el proceso de formación del licenciado en Educación Física de la Universidad Federal de Rio Grande del Sur. Apoyados en la investigación cualitativa del tipo de estudio de caso, buscamos comprender de que modo los practicantes articulaban la “teoría” aprendida en las disciplinas pedagógicas con la “práctica” docente en la escuela. La metáfora del “alinamiento astral”, utilizada por nuestro colaborador para referirse a la organización curricular del curso, nos permitió percibir que la critica del grupo recaía sobre el predominio de una didáctica centrada en la “educación de los cuerpos sentados” en pierda de una, volcada a los “cuerpos en movimiento”.

PALABRAS-CLAVE: formación profesional – práctica docencia – práctica de enseñanza

NOTAS

* Professora integrante da REDE/CEDES/ESEF/UFRGS.
** Professor Esef/UFRGS e coordenador da REDE/CEDES/ESEF/UFRGS.

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Recebido: 31 de março de 2006
Aprovado: 20 de maio de 2006

Endereço para correspondência:
Rua Felizardo, 750, Jardim Botânico
Porto Alegre – Rio Grande do Sul
CEP 90690-200

E-mails: Rute Viégas Nunes – rutebit@yahoo.com.br
Alex Branco Fraga – alexbf@cpovo.net

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