PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA DE UMA ESCOLA PROFISSIONALIZANTE E A SUA CULTURA DOCENTE: AS INTERCONEXÕES ENTRE OS SABERES DA BASE PROFISSIONAL E O CAMPO DISCIPLINAR

JOSÉ ÂNGELO GARIGLIO *

RESUMO

Este trabalho inscreve-se no âmbito dos estudos que se interessam pelo processo de constituição dos saberes docentes. O estudo relata de forma sintética uma pesquisa sobre os saberes da base profissional de três professores de Educação Física. Para tanto, procura analisar qual a relação existente entre processo de construção dos saberes profissionais necessários ao ensino e componente curricular ensinado. Desse modo, o estudo revela que os saberes docentes expressam a peculiaridade de missões educativas e contextos de trabalho e aponta para a existência de culturas docentes particulares, estruturadas num espaço de atuação profissional rico em diversidade (de conteúdos). Como conclusão, mostra que conteúdo e pedagogia são partes de um corpo indistinto de compreensão.

PALAVRAS-CHAVE: saberes docentes – socialização profissional – educação física

DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA

O tema referente aos processos de constituição dos saberes da base profissional dos professores é alvo crescente de estudos no âmbito das ciências da educação. Esses estudos objetivam investigar a complexidade das práticas de ensino dos docentes em seus diferentes e singulares locais de trabalho e nelas buscam identificar conhecimentos e habilidades profissionais que demarcariam a especificidade do ofício docente.

Estas pesquisas, em linhas gerais, nutrem-se de questões como: o que sabem os professores? Quais os saberes que estão na base da profissão docente? Quais os saberes necessários para ensinar? O que esses saberes têm de original? Há diferença entre eles e os conhecimentos provenientes da formação inicial, das ciências da educação, dos conhecimentos curriculares? Caso haja, em que ponto eles são diferentes? Como esses saberes são construídos? Qual a relação entre a edificação desses saberes com a experiência profissional? Trata-se de habitus, rotinas, posturas, intuição, dom, bom-senso e/ou de conhecimentos de tipo sui generis e competências? Qual a relação entre os saberes profissionais e os saberes acadêmicos e disciplinares?

Essas questões orientaram nossa investigação e constituem o pano de fundo no qual tem origem o nosso objeto de estudo. 1 Ele se situa, portanto, no universo das pesquisas contemporâneas sobre o ensino, mais particularmente dos estudos que se interessam pelos saberes, pela formação e pelo trabalho docente.

Especialmente, a nossa pesquisa busca investigar os processos de construção dos saberes da base profissional de professores de Educação Física (EF) mediante ações pedagógicas laboradas por esses docentes em meio a práticas de ensino demarcadas por um determinado componente disciplinar: a Educação Física. Interessa-nos investigar em que medida a prática de ensino desse e nesse campo disciplinar tem relação com o processo de edificação dos saberes pedagógicos dos professores de EF.

Mesmo compartilhando com a idéia de que os saberes profissionais dos professores de EF não estão resumidos ao domínio dos conteúdos de ensino, ou seja, que a esses professores não basta dominar nem conhecer profundamente os saberes de referência de sua disciplina curricular para dar conta das múltiplas e contraditórias contingências do ambiente de ensino na escola, e que os conhecimentos disciplinares, proposicionais, constituem falsa representação dos saberes docentes e a respeito de sua prática, porque não dão conta das sincresias que envolvem a forma como conhecem, pensam e agem os professores em situações de ensino, entendemos que seria significativo 2 investigar de que forma os professores de EF desenvolvem sua cultura docente ante os processos de socialização profissional demarcados pelo ensino desse componente disciplinar.

Entendemos com isso que os saberes docentes são laborados dentro de um contexto situado de trabalho, ou seja, construídos em função de situações particulares e singulares. Nessa relação específica com os conhecimentos disciplinares, os saberes da base da ação profissional ganhariam sentido e validade e seriam, portanto, saberes intimamente relacionados à situação de trabalho à qual devem atender.

Nessa linha, duas questões se apresentaram como fundamentais na organização da nossa reflexão: a primeira, é que cada disciplina escolar ostenta o seu princípio de inteligibilidade, seu paradigma – sua matriz disciplinar que organiza a totalidade dos conteúdos num conjunto coerente. O paradigma disciplinar é fundamental porque determina as tarefas que serão desenvolvidas com os alunos, os conhecimentos declarativos a ensinar e os conhecimentos procedimentais correspondentes (DEVALY, 1995; SHULMAN, 1986, 1987).

O segundo, é que as disciplinas escolares são entidades culturais dotadas de características sui generis que, longe de ser mero reflexo de disciplinas científicas e acadêmicas, constituem-se campos de ação fortemente marcados pelas contingências de tempo e espaço escolar, pelas cláusulas explícitas dos contratos pedagógicos e didáticos, pelas estratégias de ensino voltadas aos alunos, pelas exigências dos colegas, pelas necessidades imediatas da vida institucional, e pelos sistemas de avaliação e seleção. Nesse sentido, uma disciplina escolar se apresenta como conjunto de saberes, de competências, de posturas físicas e/ou intelectuais, de atitudes, de valores, de códigos e de práticas que trazem as marcas da forma escolar (PERRENOUD, 2000; CHERVEL, 1990; HASNI, 2000).

Nessa linha reflexiva, algumas questões emergiram como centrais para a condução do nosso percurso investigativo, a ver: as disciplinas escolares haveriam de se constituir em potente elemento informador e organizador do processo de construção dos saberes profissionais dos professores? Se elas se definem como entidade cultural destinada não somente à instrução, mas também à socialização dos alunos, elas não o seriam também para os professores? De que forma elas contribuem para calçar o processo de constituição dos saberes da prática profissional desses docentes? Ensinar EF e, por exemplo, Matemática, seria fazer a mesma coisa? Seria objeto de igual consideração? Os professores de EF, em função da especificidade dos conteúdos que ensinam, desenvolveriam saberes próprios de uma atividade docente marcadamente situada? Quais seriam, segundo os próprios professores, suas principais habilidades? Por que umas são mais importantes do que outras? De que forma essas competências se relacionam com as interações com os alunos, com os outros atores escolares e com as funções estabelecidas pelo todo social da escola? Que tipos de habilidade pedagógica eles entendem que demarcam a sua própria capacidade de ensinar?

Nessa direção, pareceu-nos significativo produzir uma investigação que se debruçasse mais detidamente sobre as complexas relações entre a especificidade da matriz disciplinar da EF, a forma particular como essa disciplina escolar se reconstrói e ressignifica no interior da trama escolar e o processo de edificação dos saberes da base profissional de professores de EF.

Enfim, situamos nosso objeto de pesquisa ao redor de uma pesquisa que visa compreender os modelos ou tipos de ação desenvolvidos pelos professores de EF em função de uma inserção profissional na escola detentora de um conjunto de particularidades. Estamos entendendo aqui como modelos de ação as representações elaboradas e veiculadas pelos professores de EF a respeito da natureza de sua prática, representações essas que servem para defini-la, estruturá-la e orientá-la em situações de ação. Essas representações são incorporadas à prática e conferem certa inteligibilidade e sentido à atividade educativa, oferecendo aos educadores significações, instrumentos cognitivos de apreensão da realidade, de orientação de condutas, pontos de referência relativos à estruturação do seu comportamento no ambiente do ensino (TARDIF, 2002; TARDIF; LESSARD, 1999).

DA SINGULARIDADE DO OBJETO DE ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Desde meados da década de 1980, muito se tem discutido no Brasil sobre a especificidade do objeto de ensino da Educação Física. Calorosos debates são operados em diversos fóruns, congressos, publicações, instituições acadêmicas, universidades, escolas, dentre outros espaços coletivos pertencentes a esse campo disciplinar.

No interior desse embate acadêmico, o alvo principal das reflexões era a crítica aos princípios que orientaram a prática da Educação Física na escola e de sua crise de identidade, 3 causada principalmente pela falta de clareza e definição sobre qual o seu saber e de uma definição clara de sua especificidade (singularidade). A Educação Física, como área do conhecimento, buscou responder ao seguinte questionamento: qual o objeto da EF, ou melhor dizendo, qual o saber específico de que trata essa disciplina curricular? Ou seja, quando se pensa no objeto da EF, pensa-se num saber específico, numa tarefa pedagógica própria, cuja transmissão/tematização e/ou realização seria atribuição desse espaço pedagógico a que chamamos EF (COLETIVO, 1992, p. 119; BRACHT, 1992).

Tomando-se por base a discussão inicial sobre as características do saber disciplinar, buscou-se definir e identificar qual seria o conteúdo de ensino da Educação Física, cuja tematização e transmissão poderia ser atribuição desse espaço pedagógico na escola. Quando analisamos a produção teórica referente à especificidade pedagógica da EF na escola, encontramos um ponto de convergência para designar o saber específico dessa disciplina, isto é, seu conteúdo de ensino; assim, deveríamos recorrer ao conceito de cultura corporal de movimento. A Educação Física é definida como prática pedagógica que, no âmbito escolar, seleciona e tematiza determinados elementos da produção sociocultural de nossa sociedade, ou seja, seus conteúdos de ensino são as atividades expressivas corporais, como os jogos, os esportes, as danças, as ginásticas, as lutas, formas estas que configuram o que podemos chamar de cultura corporal de movimento (BRACHT, 1997).

Ainda no sentido de definir melhor a singularidade do objeto de ensino, a fim de melhor identificar as diferenciações entre a Educação Física e as demais disciplinas, Bracht (1997) vai argumentar que os saberes transmitidos pela escola provêm, na sua maioria, de disciplinas científicas ou, então, de forma mais geral, de saberes de caráter teórico-conceitual. O autor entende que, diferentemente do saber conceitual, o saber de que trata a EF (e a educação artística) encerra uma ambigüidade ou duplo caráter: a) ser um saber que se traduz num saber-fazer, num realizar “corporal” pedagógico; b) ser um saber sobre esse realizar corporal. Assim, como a Pedagogia, a EF caracterizar-se-ia pela sua dimensão da ação, ou melhor, ela seria uma ciência da ação e para a ação (LOVISOLO, 1995). Betti (1995) participa desse debate concordando com a caracterização proclamada por Bracht e vai ratificá-la, apontando que a ação pedagógica a que se propõe a EF estará sempre impregnada da corporeidade do sentir e do relacionar-se.

Nessa mesma linha, Young (1982), ao discorrer sobre as características de um currículo organizado segundo princípios acadêmicos e não-acadêmicos, traz outros elementos reflexivos para dentro desse debate, contribuindo para melhor compreender qual seria a especificidade pedagógica da Educação Física. Segundo ele, existem basicamente duas formas de organização do saber escolar: a primeira diz respeito aos saberes tidos por superiores. Eles seriam dotados de aptidão literária, ou seja, da ênfase dada à apresentação escrita em detrimento da oral; do individualismo (evitando-se os trabalhos em grupo ou o espírito de cooperação), que se preocupa principalmente como o trabalho acadêmico é avaliado, do caráter abstrato do conhecimento e da sua estruturação e compartimentação e organizado de forma a se posicionar de costas voltadas para a experiência da vida cotidiana. Para o autor, se o estatuto do saber for definido nesses termos, os programas acadêmicos deverão ser organizados de acordo com eles; em outras palavras, eles tenderão a ser abstratos, livrescos, individualistas e não relacionados com o conhecimento estranho à escola. Paralelamente, o autor aponta que existe outro grupo de disciplinas que organiza seu programa segundo critérios não-acadêmicos. Esses programas ou saberes (não-acadêmicos) se organizam invariavelmente na forma de apresentação oral, de trabalho em grupo, do caráter concreto do saber e de seu relacionamento com o conhecimento estranho à escola.

A Educação Física estaria, assim, situada aqui entre as disciplinas escolares dotadas de características próximas do que seria um programa ou um saber não-acadêmico, ou seja, seus saberes ou programas não se enquadram dentro do perfil dos saberes tidos como superiores, ou ainda, estão longe de ser abstratos, livrescos, individualistas e não relacionados com a vida prática ou com o mundo cotidiano. 4

Com base no entendimento de que os saberes da EF detêm características sui generis, identificadas aqui como uma disciplina que se organiza na escola, de forma a enfatizar o trabalho em grupo; dotada de um conhecimento que estabelece relação mais direta e visceral com a vida, a cultura e o cotidiano; impregnada do sentir e do relacionar-se e que se traduz num saber-fazer, cabe perguntar: em função dessas singularidades, os saberes da prática profissional de professores de Educação Física seriam dotados de características particulares? Em função dos saberes que ensinam, saberes esses impregnados do sentir e do relacionar-se, esses docentes seriam reconhecidos e se auto-reconhecem competentes em que perspectiva? O reconhecimento da potência pedagógica dos professores de EF na escola haveria de se dar por qual tipo de capacidade pedagógica? Seriam esses professores mais habilidosos no desenvolvimento de atividades coletivas? Seriam docentes mais atentos à educação estética ou à sensibilidade? Quais são, segundo os próprios professores, suas principais habilidades? Por que umas são mais importantes do que outras? De que forma essas competências se relacionam com as interações com os alunos, com os outros atores escolares e com as funções estabelecidas pelo todo social da escola?

Portanto, a hipótese do nosso estudo parte do princípio de que as interações estabelecidas pelos professores da educação básica com a disciplina escolar que ensinam constituiriam espaço particular de interações sociais, de organização de representações sociais sobre a profissão docente e de produção da identidade profissional que seria capaz de influenciar a edificação de rotinas de trabalho, habitus, de habilidades, de um saber-ser e de um saber-fazer pedagógico que seria específico a cada componente disciplinar.

DA ORGANIZAÇÃO DOS EIXOS DE ANÁLISE

Para a organização de nossas análises, tomamos como referência dois dos principais modelos teóricos que orientam hoje boa parte das pesquisas sobre os saberes docentes que servem de base para o ensino (Knowloge Base). Aquele desenvolvido por Tardif e Lessard (1999), Raymond (1993) e Nóvoa (1992) que defendem que o processo de edificação dos saberes docentes deve ser analisado numa perspectiva mais ampla, ou seja, que esses saberes provêm de fontes diversas (formação inicial e contínua dos professores, do currículo e da socialização escolar, da formação pré-profissional, da experiência profissional, da relação com os pares, etc.) e aquele, num sentido mais restrito, que designa os saberes mobilizados pelos “professores eficientes” na sua ação pedagógica em sala de aula (na gestão da matéria e na gestão de classe), linha essa representada por autores como Gauthier et al (1998), Shulman (1986, 1987) e Durand (1996).

Com esse instrumental teórico, buscamos estruturar nossa investigação ao redor de quatro eixos de análise que se entrecruzam.

A primeira ordem diz respeito ao fato de que boa parte da aprendizagem sobre o métier profissional e, especificamente, sobre o papel a ser cumprido pela EF e os seus professores na escola é apreendida durante a socialização pré-profissional. E aí surgem as questões: pela experiência como estudante da educação básica, como os professores iniciam sua relação com o seu componente disciplinar? Como essa experiência os ajuda a enfrentar os problemas e os desafios colocados pela prática docente? Quais são as representações construídas ao redor do ensino da EF mediante o longo contato desses professores com o ensino dessa disciplina na educação básica, antes mesmo de iniciarem a sua formação profissional? A experiência precoce com o mundo esportivo contribui para a edificação de suas crenças acerca do ensino em EF?

A segunda ordem concerne ao papel da formação inicial. De que maneira a formação universitária contribui para a formação profissional dos professores? Como essa formação participa do processo de construção das certezas particulares que os nossos professores de EF constroem acerca de seus saberes docentes e da sua própria capacidade de ensinar? Como eles julgam a formação inicial diante do que eles entendem ser os saberes necessários em face dos desafios colocados pelo ambiente de trabalho?

Já a terceira ordem relaciona-se com o exercício profissional vivido na organização escolar como um todo. Aqui indagamos: a escola como totalidade contribui para forjar um conjunto de certezas e dúvidas particulares dos professores de EF quanto a sua própria capacidade de ensinar? Até que ponto essas certezas ajudam os professores de EF a enfrentar os desafios colocados pela prática? Valendo-se da relação estabelecida com a escola, como eles definem a disciplina ensinada bem como suas finalidades?

O quarto eixo situa-se ainda na relação com o trabalho na escola. Ao tomarmos como condição que a ação profissional dos professores de EF é situada, buscamos verificar de que forma esses docentes operam suas práticas de ensino, seja na gestão do conteúdo de ensino, seja na gestão da sala de aula, a fim de identificar nessas práticas quais os saberes profissionais por eles mobilizados.

DO PERCURSO METODOLÓGICO

Com essas e outras questões, lançamo-nos ao campo de pesquisa, com o intuito de investigar a prática profissional de três professores de EF, dois homens e uma mulher, pertencentes ao quadro de docentes de uma escola profissionalizante da rede federal de ensino. 5

Os três docentes investigados não foram escolhidos de maneira aleatória. A escolha foi submetida aos seguintes critérios: ter formação superior, ter mais de dez anos de experiência profissional na área da EF, ter mais de cinco anos de experiência profissional na escola pesquisada, estar submetido ao regime contratual de dedicação exclusiva e pertencer ao quadro efetivo da escola, ou seja, deter estabilidade no emprego.

Consideramos aqui a classificação desenvolvida por Huberman (1992) sobre o ciclo de vida profissional de professores. Como nosso objeto de estudo centra seu foco de análise nos saberes que são construídos pelos professores em função dos desafios colocados pela sua prática profissional, entendemos que deveríamos trabalhar com professores experientes. Nessa direção, os professores pesquisados estão enquadrados dentro da fase do ciclo profissional que Huberman denomina de diversificação. Nessa fase, os professores se lançariam a uma série de experiências profissionais, diversificando o material didático, o modo de avaliação, a forma de agrupar os alunos e as seqüências do programa.

Ao iniciarmos a investigação, tínhamos como pressuposto que os saberes docentes são eminentemente interativos, construídos na relação com os demais atores da escola e mediados pelo conjunto de regras e normas da vida institucional. Com isso, fez-se necessária a utilização de várias fontes de informação, observação e análise da realidade. Associadas às técnicas de observação direta, foram utilizadas, ainda, a entrevista e a análise documental. Com tais estratégias, buscamos comparar relatos distintos, confrontar posições de diferentes sujeitos sobre o mesmo tema e verificar contradições entre práticas e discursos.

Além da observação das aulas de EF, foram descritos e analisados acontecimentos e eventos que permeavam a sala de aula e que, de alguma forma, influenciavam o trabalho dos nossos sujeitos de pesquisa. Além dessas observações, foram feitas entrevistas com alunos, diretores e especialistas (pedagogas, psicóloga, assistente social, médico) e análise de documentos produzidos pelos professores de EF e pela instituição, a fim de identificarmos o conjunto das representações construídas ao redor da EF e de seus professores, ou melhor, o conjunto de discursos, símbolos, sentimentos e comportamentos, normas, prescrições que contribuiriam para a confirmação dos próprios docentes de sua própria capacidade de ensinar.

DAS CONCLUSÕES CENTRAIS DA TESE

Entre as conclusões propiciadas pela interpretação dos dados coletados na trajetória de pesquisa, gostaríamos de destacar as que, a nosso ver, surgem como contribuições aos estudos dos saberes profissionais dos professores da educação básica e, mais especificamente, dos saberes docentes de professores de EF.

A primeira diz respeito ao fato de que os professores pesquisados, mesmo reconhecendo a importância de se compreender e dominar os conteúdos disciplinares, consideram que só esse conhecimento não é suficiente para dar conta da difícil tarefa de ensinar. No esforço de tornar os conhecimentos disciplinares não somente acessíveis aos seus alunos, mas de forma a incorporar a centralidade dos componentes formativos e estéticos que seriam “inerentes” ao ensino da EF, nossos docentes acabam incorporando outros saberes e conhecimentos às suas práticas.

As ricas e originais sincresias que amalgamavam os conteúdos de ensino e a pedagogia, organizados e atualizados de forma a atender aos diversos interesses e necessidades dos aprendizes, da instituição e dos próprios docentes, não podem ser descoladas do objeto de ensino da EF (a cultura corporal de movimento). Ficou evidenciado nas práticas dos professores que é quase impossível separar o conteúdo da pedagogia empregada ou o que é sabido de como ensiná-lo. Conteúdo e pedagogia revelaram ser partes de um corpo indistinto de compreensão (SHULMAN, 1986).

Além disso, ficou evidenciado, de forma simultânea, que o processo de constituição da cultura do docente em relação aos professores de EF tinha íntima relação com a forma de acomodação concreta que essa disciplina escolar ocupa no interior do currículo. As funções e atribuições pedagógicas institucionais destinadas a essa disciplina e aos seus professores mostraram-se muito específicas. Os contratos pedagógicos e didáticos, as exigências dos colegas, as necessidades imediatas da vida institucional mostram-se fundamentais para definição por parte do professor sobre a sua própria capacidade de ensinar.

Entre os saberes pedagógicos tornados como centrais ao desempenho pedagógico dos professores pesquisados, alguns mostraram-se relevantes, quais sejam: a sensibilidade para saber-ver, saber-observar e saber-ouvir; as técnicas de supervisão ativa; as tecnologias de comunicação e interação humana; a habilidade para usar espaços e objetos didáticos; a capacidade de pensar e agir ao nível do estabelecimento de ensino; as estratégias de sedução; o saber-ensinar levando-se em conta os saberes sociais de referência; as rotinas de trabalho.

Esses saberes profissionais mostraram-se colados e amalgamados a um contexto de ensino no qual as modalidades de ordem e disciplina se mostraram diferenciados em relação à maioria das demais disciplinas escolares; as condições ambientais da sala de aula eram singulares (seja por ser ao ar livre, seja pelos seus limites físicos amplificados, seja pela inexistência do mobiliário escolar tradicional); as interações entre os alunos e entre alunos e professores se mostraram afetivamente intensas; o trabalho em grupo se mostrou fortemente recorrente; a segurança e o cuidado com a integridade física dos alunos surgem como organizadoras das atividades pedagógicas; há carência de livros didáticos orientadores da ação pedagógica; os objetos didáticos se mostraram peculiares (bolas, corda, colchões); a avaliação não ocorre mediante a aplicação de provas; o ensino é visto, pela escola, como tempo/espaço mais propício ao desenvolvimento da formação humana dos alunos e no qual a EF é tomada como ponto de apoio às atividades “sérias” desenvolvidas nas outras disciplinas.

Essas nossas conclusões apontam para a necessidade de avançarmos ainda mais na produção de pesquisas sobre as fontes e a natureza dos saberes da base profissional dos professores da educação básica em todos os seus níveis e modalidades. No transcorrer da nossa pesquisa, deparamo-nos com uma literatura marcada, por vezes, por leituras por demais generalistas acerca do perfil dos saberes profissionais dos professores, como da natureza dos seus saberes docentes. Não obstante reconhecermos a existência de saberes comuns, já que todos pertencemos ao campo da educação e lidamos com a prática do ensino, existe nesse complexo universo profissional uma gama de profissionais que não permite mais à pesquisa educacional tratá-los como se todos fossem do sexo feminino, do ensino fundamental, militantes de uma escola de ensino regular, que lecionam disciplinas escolares advindas de conhecimentos acadêmicos/científicos e que ensinam em condições ambientais semelhantes, ou seja, numa sala de aula organizada e padronizada de forma secular.

Balizados nas conclusões da nossa pesquisa, podemos dizer que ensinar Educação Física e Matemática, por exemplo, não é fazer a mesma coisa. Não é objeto de igual consideração. As pesquisas sobre os saberes da base profissional dos professores precisam desfazer certa noção de eqüidade existente no campo da profissionalidade docente. Tal profissionalidade comporta dimensão social fundamental e se insere em relações sociais marcadas pela negociação com um tipo de trabalho específico, com seus conteúdos, com suas exigências próprias, com suas finalidades situadas e com suas estratégias de controle e autonomia. Todos somos professores, pertencemos ao professorado, mas há hierarquias, há níveis e graus e imagens bastante diferenciadas, diversidade de salário, de carreira, de titulação e prestígio. Eles são vistos com traços diferenciados e vêem o magistério com características bem distintas (ARROYO, 2000).

Não há, portanto, uma cultura docente comum ao conjunto dos professores, mas, sim, culturas profissionais produzidas pelos professores no processo de interação cotidiana, processo esse estruturado por diversas condições e contratos sistemáticos – ordens escolares, setores de ensino, campos de ensino, estabelecimentos de ensino e ambientes socioeconômicos da região, nos quais os docentes exercem sua profissão. Portanto, há que fazer revelar as culturas docentes dos profissionais dos diversos campos disciplinares, dos professores que militam com disciplinas profissionalizantes, dos professores que trabalham com os portadores de necessidades especiais, dos professores universitários, dos educadores de jovens e adultos, da educação infantil, entre outros profissionais que compõem o vasto espectro da educação escolar.

No que tange ao campo específico da Educação Física, esta tese buscou contribuir para a melhor compreensão do trabalho e dos saberes profissionais dos professores, assim como da especificidade pedagógica da Educação Física escolar. Busca essa compreensão com base nas razões práticas encontradas pelos próprios professores para justificar e significar as suas práticas docentes.

Nesse sentido, esta pesquisa tem a intenção de explicitar o caráter sui generis dos saberes e das práticas profissionais de professores de EF, que não obstante reconheceram a importância dos saberes codificados apreendidos no ambiente acadêmico, nas publicações da sua área de conhecimento ou da própria educação, e demonstraram estabelecer com esses conhecimentos uma relação de crítica e distanciamento. Suas estratégias de ensino e os saberes profissionais utilizados trazem consigo elementos reflexivos originais sobre uma prática profissional que demonstra ser repleta de questões e posturas reflexivas também originais perante, por exemplo, os conhecimentos apreendidos na formação inicial.

Os saberes profissionais construídos pelos nossos depoentes advêm, portanto, de sujeitos concretos que assumem sua prática, baseando-se em seus próprios significados. Ou seja, profissionais que possuem conhecimentos e um saber-fazer proveniente de uma ação docente particular, com base na qual ele a estrutura e a orienta. Logo, esses professores de EF podem ser vistos como sujeitos do conhecimento. Isso porque possuem saberes específicos a um ofício que não é simples nem previsível, mas, ao contrário, complexo e enormemente influenciado pelas decisões e ações desses atores em um contexto situado.

Quando se apregoa que os professores são sujeitos do conhecimento, e que os saberes por eles transmitidos deveriam transitar pelo meio acadêmico com a importância que eles merecem, está se tentando dizer que a produção dos saberes sobre o ensino não pode ser mais privilégio exclusivo dos pesquisadores, os quais devem reconhecer que os professores também possuem saberes, saberes esses que são diferentes dos conhecimentos universitários, e que obedecem a outros condicionantes práticos e a outras lógicas de ação (TARDIF, 2002).

Concluímos afirmando a necessidade de avançarmos ainda mais em pesquisas que visem dar visibilidade à pluralidade dos conhecimentos profissionais próprios da diversidade de culturas profissionais que coexistem no sistema educativo. Os professores de Educação Física pesquisados demonstraram possuir saberes docentes que trazem as marcas do seu trabalho. Em seu “quintal”, buscam dar sentido ao seu agir profissional, valendo-se de um lugar muito bem situado dentro da escola. Cabe à universidade, à escola e aos professores de EF agir para partilhar seus saberes profissionais, tirando-os do seu anonimato e dando aos mesmos significado social, cultural e político.

 

Physical Education Teachers at a Vocational School and their Teaching Culture: the interconnections between knowledge and skills of the professional basis and the academic field

ABSTRACT

This work belongs to the scope of studies that focus on the process of building a teacher education syllabus . This study relates, in a synthetic form, a research work on teacher’s professional knowledge and skills which was undertaken with three Physical Education teachers. As such, it tries to analyze which is the existing relation between the process of construction of the professional knowledge and skills which are necessary to teaching and the syllabus component that was actually taught. In this way, the study reveals that teachers knowledge and skills express the peculiarities of the educational mission statements and work environments and it points to the existence of unique teaching cultures which are structured in a professional field which is rich in its diversity of contents. As a conclusion, it shows that content and pedagogy are parts of an indistinct body of knowledge.

KEYWORDS: teacher knowledge and skills – professional socialization – physical education

 

Profesores de educación física de una escuela profesionalizante y su cultura docente: las interconexiones entre los saberes de la base profesional y el campo disciplinar

RESUMEN

Este trabajo se inscribe en el ámbito de los estudios que se interesan por el proceso de la constitución de los saberes docentes. El estudio relata de forma sintética una investigación sobre los saberes de la base profesional de tres profesores de Educación Fisica. Para ello, busca analizar la relación existente entre el proceso de construcción de los saberes profesionales necesarios a la enseñanza y al componente curricular enseñado. De este modo, el estudio revela que los saberes docentes expresan la particularidad de misiones educativas y contextos de trabajo y señala la existencia de culturas docentes particulares, estructuradas en un espacio de actuación profesional rico en diversidad (de contenidos). Como conclusión, demuestra que el contenido y la pedagogía son partes de un cuerpo indistinto de entender.

PALABRAS-CLAVE: saberes docentes – socialización profisional – educación física

NOTAS

* Doutor em Educação Brasileira pela PUC-RJ e professor de Educação Física do CEFET-MG. Agência financiadora da pesquisa: CAPES.

1 Este texto constitui síntese de tese de doutorado, concluída no segundo semestre de 2004.

2 No processo de construção dos argumentos que justificariam o ineditismo e a relevância do nosso objeto de estudo, balizamo-nos em estudos recentes sobre o estado da arte das pesquisas sobre a formação de professores no Brasil na última década. Entre esses estudos, elencamos os trabalhos de André (2000); André et al (1999); Brzezinski et al (1999) e Ramalho et al (2002). Em todos eles, manifestou-se uma carência de pesquisas que tratassem da relação entre as diferentes disciplinas escolares, seus conteúdos disciplinares e os saberes docentes (com exceção das Ciências Naturais e da Matemática). As pesquisas citadas revelam, mais particularmente, que os saberes e as práticas docentes de professores de EF ainda não foram objeto de estudos mais aprofundados e diversificados. No que tange, portanto, aos estudos que versam sobre os saberes docentes de professores de Educação Física, encontramos um território ainda praticamente inexplorado.

3 Esse debate busca demonstrar que a Educação Física ostenta no Brasil importante déficit de legitimidade e autonomia pedagógica, diante da sua subordinação aos códigos/sentidos da instituição militar, desportiva e médica. Melhor dizendo, essa disciplina até então não havia produzido um corpo de conhecimentos que a diferenciasse de maneira clara dos princípios da instrução militar, dos parâmetros intrínsecos ao rendimento atlético-esportivo e de orientações de caráter biomédico. A principal crítica a esse conjunto de orientações é que elas encerram limitações e reducionismos pedagógicos, já que acabam por enquadrar o objeto da Educação Física aos limites dos ordenamentos biológicos.

4 Soma-se à reflexão de Young aquela desenvolvida por Martinand citado por Forquin (1996). Para o autor, existe uma multiplicidade de práticas sociais que podem servir de referência aos saberes e às aprendizagens escolares: práticas técnico-científicas, práticas políticas ou cívicas, práticas profissionais, práticas de comunicação e de sociabilidade. Essa noção de práticas sociais de referência procura dar conta não somente de saberes em jogo, mas também dos objetos, dos instrumentos, dos problemas e tarefas, dos contextos e dos papéis sociais, ou seja, daquilo que pode haver por demasiado intelectualista na problematização da transposição didática. Nesse sentido, autores como Perrenoud (2000) e Terrisé (2001) mostram que a noção de práticas sociais de referências veio atender à especificidade, aos problemas e à forma de organização curricular de campos disciplinares muito particulares, como a Educação Física, a Educação Artística, a Geografia, a História, as línguas, que elaboram os seus processos de transposição didática, baseados em dimensões da vida cultural que não ficam restritas ao universo erudito ou intelectual.

5 A pesquisa foi realizada durante todo o ano letivo de 2002.

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Recebido: 15 de fevereiro de 2006
Aprovado: 8 de maio de 2006

Endereço para correspondência:
Rua Conselheiro Arantes, 122/302, Calafate
Belo Horizonte – Minas Gerais
CEP 30410-250
E-mail: angelogariglio@hotmail.com

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