A EDUCAÇÃO FÍSICA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS *
DULCE MARIA FILGUEIRA DE ALMEIDA SUASSUNA **
FÁBIO DE ASSIS GASPAR ***
JUAREZ OLIVEIRA SAMPAIO ****
RESUMO
Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa iniciada em 2004, na Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, tendo como um dos objetivos identificar os paradigmas norteadores do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília e suas respectivas influências na formação do corpo docente. O referencial teórico transita pela teoria do conhecimento e a pesquisa segue abordagem qualitativa. Conclui-se que o curso de Licenciatura em Educação Física apresenta disputa de campos entre as áreas da Atividade Física e Desempenho Humano e Educação Física, Esporte e Sociedade. A disputa entre estas áreas se constitui em um jogo de linguagens e pode contribuir para legitimar a área de Educação Física, Esporte e Sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: educação física – Licenciatura – epistemologia – formação de professores
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa iniciada em 2004, na Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília. Um dos objetivos é identificar os paradigmas norteadores do Curso de Licenciatura em Educação Física dessa instituição e suas respectivas influências na formação do corpo docente. O sentido de formação de professores adotado para este trabalho relaciona-se a um processo continuado, que se inicia na graduação e segue até a pós-graduação (em nível de doutoramento). Nesse percurso, prioriza-se a construção de uma ação dialética com desenvolvimento de pesquisas e cenários de intervenção (extensão), no qual atuam os professores. Portanto, considera-se que a dimensão da formação dos professores no contexto de uma universidade dinâmica e que compreende a perspectiva de “refundação” da universidade deve envolver o ensino, a pesquisa e a extensão, aspectos estes que podem ser apreciados como espécie de modelo tridimensional da universidade brasileira (BUARQUE, 2003). 1
O Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília, 2 fundado em 1974, foi idealizado por professores de Educação Física funcionários da Divisão de Recreação e Esportes da Universidade. Esses professores desenvolviam atividades de treinamento de equipes desportivas e eram encarregados da oferta da disciplina prática desportiva para os estudantes da instituição (cf. Entrevista). 3 Analisando a condição que lhes era dada na Universidade, surgiu a idéia de criação do curso em 1973, sendo autorizado posteriormente por meio do Ato da Reitoria nº 831 (UnB, 1974a) e pela Reunião do Conselho Diretor nº 25/74 (UnB, 1974b). Como departamento da Faculdade de Ciências da Saúde, o curso de Licenciatura em Educação Física se situava em um contexto composto por outros departamentos, como Medicina Complementar, Medicina Especializada e Medicina Geral e Comunitária.
Com fundamento na origem do Curso de Licenciatura em Educação Física, pressupõe-se haver intrínseca relação entre o perfil assumido pelo corpo docente do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília e a área de saúde, que se volta para uma abordagem positivista, em termos de produção do conhecimento. Contudo, questiona-se como um curso de Licenciatura, cujo objetivo principal é a formação de professores, pode seguir a orientação do modelo empírico-analítico ou positivista no cenário de sua intervenção e pesquisa. Desta forma, apresenta-se como problemática de investigação o seguinte conjunto de questões: Quais são as bases epistemológicas (áreas de conhecimento) que norteiam o curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília? Tratando-se de um curso de Licenciatura, que relações são construídas entre as bases epistemológicas (áreas de conhecimento) e a formação do seu corpo docente?
A relevância do estudo se deve à necessidade do resgate histórico para a construção da memória do curso de Educação Física da Universidade de Brasília; inexistência de registros documentais sobre o tema tratado; necessidade de problematização sobre a área de intervenção e pesquisa dos professores da FEF/UnB, haja vista se tratar de curso destinado à formação de licenciados e, por fim, à tentativa de contribuir para a discussão curricular proposta no âmbito da FEF/UnB.
A pesquisa, realizada com abordagem qualitativa, teve como deli-neamentos estudo de caso e pesquisa documental. O recorte temporal adotado compreende o período de 1974 a 2004, portanto, os dados apresentados se reportam até 2004. Utilizou-se como procedimentos de coleta de dados: (1) entrevista e (2) questionário. A entrevista 4 foi realizada com professores-fundadores, participantes da primeira formação do corpo docente do Curso de Educação Física da Universidade de Brasília. Foram entrevistados três professores-fundadores, dos quais dois ainda desempenham atividades profissionais na instituição. A entrevista seguiu um roteiro básico, privilegiando a liberdade na oralidade (QUEIROZ, 1991). Ressalta-se que, atualmente, a Faculdade de Educação Física possui 28 professores, 5 incluindo-se neste universo dois professores entrevistados, que são professores-fundadores e integram o atual corpo docente da Faculdade. Para os professores constituintes do corpo docente da FEF/UnB, foram aplicados questionários com questões abertas.
O referencial teórico adotado na construção do texto se constrói por meio da teoria social, relacionando-se com algumas importantes contribuições de autores da Educação Física brasileira. A relação entre autores da Sociologia e da Educação Física permite a adoção de perspectiva interdisciplinar, aliada ao tipo de abordagem da pesquisa, método e técnicas. Propõe-se como estratégia discursiva a comparação entre o surgimento da Sociologia e seus nortes paradigmáticos e a forma como ocorre a produção do conhecimento no campo da Educação Física. Contudo, longe de se buscar justificar a adoção de um modelo paradigmático para a Educação Física, pretende-se aqui lançar mão de alguns elementos questionadores da realidade em estudo, no caso, o curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília e a formação continuada do seu corpo docente.
A epistemologia e a produção do conhecimento: comparação entre as origens da Sociologia e da Educação Física
Historicamente, pode-se dizer que o legado das pesquisas voltadas para o aspecto biológico foi importante para a consolidação do processo do conhecimento advindo do racionalismo. As pesquisas no âmbito das Ciências Naturais colaboraram na construção daquilo que chamamos ciência moderna. A esse momento do processo do conhecimento denominou-se positivismo em razão de sua abordagem pragmática em relação aos métodos e técnicas a serem utilizados na pesquisa. A área de influência do paradigma empírico-analítico, também chamado de positivismo, foi abrangente, penetrando, inclusive, no campo das Ciências Sociais. Isso demonstra a importância desse paradigma para situar os diferentes campos científicos na teoria do conhecimento (SUASSUNA, 1999).
Ao situar-se a construção do conhecimento com base no desenvolvimento da ciência moderna, percebe-se que a trajetória da Educação Física, em particular a brasileira, não se diferencia do movimento de constituição das demais ciências, inclusive, do das Ciências Sociais. Assim, o início do processo para a legitimação da Educação Física como campo de conhecimento ocorre por meio do paradigma empírico-analítico. Deste modo, deve-se lembrar que diante da teoria do conhecimento, as crises de um campo científico acabam refletidas em outros campos, gerando uma crise no processo do conhecimento, constituindo-se outros paradigmas e legitimando-se outras áreas de investigação (SUASSUNA, 1999).
Neste contexto, pode-se dizer que o processo dialógico do conhecimento foi redimensionado à medida que o paradigma crítico-dialético questiona as bases metodológicas para a pesquisa no campo das Ciências Sociais. A primeira contribuição ocorreu por meio do questionamento acerca da existência de uma ciência social neutra, isto é, livre de pré-noções, cujo objeto de estudo deveria ser tratado como “coisa” e os procedimentos metodológicos se baseavam na observação, experimentação e comprovação dos fatos. Tais idéias, remanescentes do pensamento de Augusto Comte e de Durkheim, fundadores da Sociologia, pautavam-se na necessidade de se definir o campo de atuação do sociólogo em um período em que o status científico era assegurado apenas para as ciências naturais (SUASSUNA, 1999).
A resposta do paradigma crítico-dialético ocorreu por meio da ruptura com a posição do cientista e com a orientação metodológica. Adotou-se, por oportuno, a idéia de que o cientista deveria se aproximar do objeto de estudo (sociedade) com o intuito de transformar a realidade social e, com isso, os procedimentos metodológicos sofrem modificações. Desta forma, pode-se considerar que a Sociologia deixou de ter a base de suas pesquisas na neutralidade e passou a preconizar a necessidade do envolvimento do cientista social com o fenômeno a ser estudado. As pesquisas nesse âmbito assumem uma abordagem qualitativa e são, geralmente, caracterizadas como ação ou participante.
Trazendo a Educação Física para a trajetória de construção do processo do conhecimento, pode-se sugerir que enquanto campo de investigação disciplinar, a Educação Física recebe influencia de diferentes áreas de conhecimento, tais como, Pedagogia, Sociologia, Psicologia e, principalmente, Ciências da Saúde. Conquanto, a predominância do paradigma da saúde no âmbito do curso de Licenciatura em Educação Física aparece como algo efêmero, haja vista se tratar de um curso de licenciatura e, portanto, destinado à formação de professores. Presume-se que tal predominância decorra de uma ligação intrínseca da Educação Física com as Ciências da Saúde em razão do desenvolvimento do campo científico das Ciências Naturais.
Embora ocorra a predominância da área de saúde, no caso do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília, outros nortes de pesquisa também podem ser encontrados, permitindo o curso assumir um caráter multidisciplinar, e apresentar em sua estrutura curricular, disciplinas dos estudos biomédicos aos socioantropológicos e/ou pedagógico-sociais. Assim, pode-se afirmar que a Educação Física apresenta dentro de seu campo disciplinar uma luta entre diferentes campos (BOURDIEU, 1990).
Esta luta significa a forma encontrada para mostrar ser possível pesquisar na área de Educação Física, assumindo-se outros enfoques. Como exemplo, tem-se o caso dos estudos de Sociologia do Esporte e do Lazer organizados em eventos científicos importantes como o Grupo de Trabalho sobre o tema da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).
Essa disputa de campos científicos ganha fôlego à medida que visa à legitimação do conhecimento produzido na área e recebe o reconhecimento, vindo por meio de financiamento das pesquisas de cunho socioantropológico e pedagógico-social sobre o tema. A esse respeito, contribui Bourdieu (1990, p. 165), ao afirmar que “na luta pela produção e imposição da visão legítima do mundo social, os detentores de uma autoridade burocrática nunca obtêm um monopólio absoluto, mesmo quando se aliam à autoridade da ciência”.
Os diferentes campos de conhecimento que se fazem presentes no curso de Licenciatura em Educação Física colaboram para a construção de um sistema de classificação, cuja tendência é encontrar modelos dualistas e opostos. Assim, o paradigma da saúde e os paradigmas das Ciências Sociais, incluindo-se nesse contexto o crítico-dialético, estão presentes no curso de Licenciatura em Educação Física da UnB e correspondem, respectivamente, à oposição entre distintas abordagens em termos de formação dos professores e interagem de forma dialética com as pesquisas desenvolvidas e com os cenários de intervenção.
Relação entre as bases epistemológicas do curso de Educação Física da Universidade de Brasília e a formação do seu corpo docente
Com a intenção de facilitar a compreensão dos sujeitos investigados da pesquisa foram construídas categorias para o corpo docente da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília. Os sujeitos que fizeram parte do universo da pesquisa se constituem por 28 professores. As categorias sugeridas foram as seguintes: (a) professores-fundadores; (b) professores ex-estudantes; (c) professores “de fora”, com números indicados conforme a tabela a seguir:
Grupo |
Descrição |
Quantidade |
Percentuais % |
(a) |
Professores-fundadores |
4 |
14,28 |
(b) |
Professores ex-estudantes |
12 |
42,85 |
(c) |
Professores “de fora” |
12 |
42,85 |
Fonte: Os autores. Dados obtidos por meio de pesquisa documental e relativos até 2004.
Por meio dos dados apresentados na Tabela 1, percebe-se que o curso de Licenciatura em Educação Física da UnB possui característica endógena, visto que 42,85% dos professores se formaram na instituição. Em relação à categoria de professores denominada como “de fora”, que também correspondem ao percentual de 42,85% do total de professores, pretende-se considerar como outsiders. Pode-se definir a categoria outsider como sujeitos recém-chegados a uma comunidade ou grupo social e que se diferenciam dos demais sujeitos pertencentes ao grupo por terem pensamentos, valores e, por vezes, estilos de vida diferenciados (ELIAS, 2000).
Tratando-se do cenário da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, os outsiders podem apresentar pensamentos convergentes com o grupo endógeno, que pode ser caracterizado como os estabelecidos. A convergência ou divergência de pontos de vista no âmbito da FEF/UnB está relacionada à defesa de interesses, muitas vezes, individuais e ao posicionamento diante da visão de Universidade. Além disto, pode-se dizer que estes posicionamentos estão mais relacionados com a formação continuada do que propriamente com o fato de o indivíduo ter sido graduado ou não pelo curso de Educação Física da Universidade de Brasília. Com efeito, a caracterização construída entre estabelecidos e outsiders serviu metodologicamente para mostrar a existência de dois grupos de professores. Conquanto, ao contrário de existir uma tensão, os grupos se interpenetram, havendo a demarcação de diferenças com fundamento na definição da pesquisa e dos cenários de intervenção.
Diante da reflexão sobre a importância da constituição de uma disputa entre áreas no campo da Educação Física pode-se considerar que os estabelecidos (professores ex-estudantes) e os outsiders (professores “de fora”) se interpenetram nas diferentes áreas do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília. Deste modo, não se pode afirmar que a distinção entre os estabelecidos e os outsiders seja categórica, isto é, que os estabelecidos se encontram na área da saúde e os outsiders trabalham com a perspectiva social (pedagógico-social).
Assim, a interpenetração entre estabelecidos e outsiders tem relação com as diferentes “formações” do corpo docente do Departamento/Faculdade e com as áreas de intervenção e pesquisa do curso. Além disso, esta interpenetração pode revelar a representação simbólica do curso de Licenciatura em Educação Física, 6 com dois grupos de pesquisa que tratam de aspectos sociais e pedagógicos. Diante dessa perspectiva, deve-se atentar para a formação do corpo docente em relação ao doutoramento.
Deve-se refletir sobre o significado do doutoramento para professores universitários, não só em relação à área de realização de seus doutorados, mas também em relação à necessidade de atualização do conhecimento no sentido da adoção de uma formação continuada. A esse respeito, observa-se o que dispõe o autor.
Todos os diplomas devem ser atualizados, e não apenas os de graduação. O que acontece hoje é que os alunos de doutoramento concluem suas teses e carregam pelo resto da vida um título que demonstra apenas que um trabalho de mérito foi realizado no passado. Possuir um doutorado é como ostentar uma medalha por feitos heróicos numa guerra, pouco servindo como prova de conhecimento em áreas que mudam a cada instante (BUARQUE, 2003, p. 37).
Enfatiza-se, neste sentido, que os professores universitários devem adotar como sistemática a perspectiva de formação continuada, o que se ancora numa concepção de universidade dinâmica, na qual se entende que os doutores devem ser continuamente atualizados. Na Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, o quadro apresentado é o que segue, conforme a Tabela 2.
Tabela 2 – Distribuição do Corpo Docente da FEF/UnB por áreas de doutoramento
Número de Professores |
Área Saúde |
Área Social |
Área Exatas |
12 |
8 |
3 |
1 |
Fonte: Os autores. Dados obtidos por meio de pesquisa documental e se reportam até 2004. 7
Com base nos dados apresentados pela Tabela 2, percebe-se que a área da saúde apresenta maior concentração de professores doutores, em detrimento das áreas social (pedagógico-social) e de exatas. É importante mencionar que dos 28 professores da FEF/UnB apenas três têm doutorado na área social (pedagógico-social) e um na área de exatas, ao passo que os demais possuem doutoramento na área de saúde. A este propósito, pode-se afirmar que a formação do corpo docente da FEF/UnB tem como área preponderante as Ciências da Saúde.
Isto quer dizer que, por um lado, as pesquisas e os cenários de intervenção dos professores não se remetem diretamente à escola, embora se trate de um curso de licenciatura. Por outro lado, pode-se afirmar que a concentração da formação em nível de doutoramento na área de Ciências da Saúde tem objetivo difuso, contudo, parece significativo que professores da FEF/UnB procurem suas formações em outras áreas de conhecimento, embora exista um sistema de capacitação direcionado para as Ciências da Saúde.
Este quadro contribui para mostrar a intrínseca relação estabelecida entre Educação Física e área da saúde, que se constitui umas das áreas do paradigma empírico-analítico. Conforme Faria Jr. (1992), este paradigma pode ser entendido como predominante nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Educação Física, em razão da preponderância da área da saúde. Esta área realiza pesquisas voltadas para padrões biomédicos, com enfoque quantitativo, utilizando-se da concepção do homem voltada para o aspecto biológico, e tem como estratégias as pesquisas pseudo-experimentais, quase-experimentais, experimentais, surveys, meta-análises correlacionais e estudos de casos.
Embora se perceba a ênfase atribuída à saúde como eixo de pesquisas desenvolvidas pelo curso de Licenciatura em Educação Física, deve-se considerar como relevante o espaço conquistado pela área Educação Física, Esporte e Sociedade. Neste sentido, o curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília tende, não só, a acompanhar o cenário construído pela Educação Física brasileira de um modo geral, como também se estruturar no seu currículo por meio de um sistema de classificação que, conforme Faria Jr. (1992), desafia as classificações tradicionais no âmbito da pesquisa em Educação Física. Essas “outras” classificações podem ser definidas como empírico-analítica, crítica e dialética, fenomenológica e hermenêutica.
No caso da Educação Física brasileira, a contribuição do paradigma crítico-dialético pode ser identificada nos trabalhos desenvolvidos por Soares, Taffarel e Ortega (1993). A visão acadêmica das autoras, pautada na tendência crítico-dialética, parte do pressuposto de que o ato pedagógico de educar deve estar baseado em um projeto político, percebendo-se que se faz presente nesta visão a necessidade de intervenção na realidade com o fim de transformá-la. Diante da realidade escolar, a Educação Física deve se preocupar com três questões, segundo as autoras:
1ª - identificar qual conhecimento que a Educação Física deve tratar dentro da escola; 2ª - decidir com clareza por que esse conhecimento se apresenta como base fundamental para o aluno refletir a realidade social, apreendê-la e explicá-la; 3ª - explicitar por que o conhecimento da Educação Física deve estar presente como elemento de impulsão para o salto qualitativo cultural de nossa população (SOARES; TAFFAREL; ORTEGA, 1993, p. 213).
Os aspectos enunciados pelas autoras contribuem para mostrar que, diante de outra visão da Educação Física, que se fundamenta em matriz paradigmática – diversa do modelo empírico-analítico – e que se tomando como fundamento a noção de que os professores oriundos de cursos de Licenciatura têm como cenário de intervenção prioritário a escola, deve-se ter em mente a forma (prática) como a visão sobre o corpo será transmitida, mas, principalmente, as implicações no processo de ensino-aprendizagem e como a construção do processo pode contribuir para mudar as realidades dos estudantes. Com efeito, o conteúdo, o método e a avaliação são aspectos importantes do processo de ensino-aprendizagem e devem relacionar-se com questões biológicas, mas também, com questões culturais, em especial em cursos de Licenciatura.
Com isso, tem-se a constituição de um cenário em que a produção do conhecimento no campo da Educação Física se representa por meio de um padrão heterogêneo (saúde, social e exatas) e, as pesquisas desenvolvidas pela Educação Física atendem a um apelo simbólico correspondente a uma disputa entre campos (BOURDIEU, 1990). Na mesma direção, Troger (2002), em artigo publicado sobre a trajetória intelectual de Pierre Bourdieu, afirma que essa disputa entre campos perpassa não só o cenário das pesquisas, mas se reflete nas universidades e, por conseguinte, nas escolas. A relação indireta com a escola se processa pelo fato de a escola ser o espaço prioritário de intervenção do licenciado e, desta forma, se o modelo de Licenciatura propagado pelas universidades se remete ao modelo empírico-analítico ou ao positivismo, há uma tendência para que esse modelo influencie a realidade escolar.
Tratando-se, portanto, da disputa entre campos, sugere-se que as relações estabelecidas entre as áreas de saúde, social (pedagógico-social) e exatas, reagrupadas em Atividade Física e Desempenho Humano (saúde e exatas) e Educação Física, Esporte e Sociedade (pedagógico-social), se constituam expressões de um jogo que tem relação direta com a forma como são construídos os objetos de estudo (ou sujeitos de investigação), os vieses das pesquisas, os cenários de intervenção e as concepções valorativas acerca do que se entende por homem e sociedade.
Isto se relaciona com uma questão que parece fundamental, qual seja, a idéia de que a disputa entre os campos ou áreas do conhecimento pode ser entendida como parte de uma cultura e, deste modo, trata-se de um conjunto de relações de poder (ENGUITA, 2004).
Percebe-se, portanto, haver o estabelecimento de uma disputa que se processa como simbólica e que começa a se traduzir com ação comunicativa, haja vista a formação continuada pretendida em um curso cujo substrato é formar licenciados. Aqui se pode reportar ao que afirma Ingran:
A pragmática universal de Habermas procura executar um programa semelhante com respeito à competência comunicativa, tornada necessária pelo fato de que as condições para produzir frases significativas não podem ser reduzidas à capacidade inata que têm pessoas isoladas de formar frases gramaticais, mas implicam igualmente o domínio das regras executivas de interação social e as qualificações recíprocas dos papéis de quem fala e de quem ouve, que constituem uma das suas partes (INGRAN,1994, p. 62).
Desta maneira, deve-se considerar que a existência do diálogo entre as diferentes áreas que constituem o curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília é importante e acaba por contribuir para legitimar a área de Educação Física, Esporte e Sociedade. Assim, pressupõe-se com Habermas (1995) que a necessidade do diálogo passa a se consubstanciar no sentido das ações praticadas pelos sujeitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reconstrução do desenho que se constitui no cenário do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília reforça que a identidade do curso se pauta no paradigma empírico-analítico, não só em relação à formação em nível de graduação, mas também na formação em nível de doutoramento, e, isto se reflete nas perspectivas de intervenção (cenários de intervenção) e nas pesquisas realizadas pelo corpo docente. As conseqüências desse processo podem ser compreendidas como disputa entre campos (BOURDIEU, 1990) ou áreas, no caso da Educação Física, e esta disputa está relacionada aos paradigmas norteadores da Educação Física brasileira (FARIA JR., 1992), devendo-se registrar que ela se reflete em relações de poder (ENGUITA, 2004).
Contudo, parece haver necessidade de redefinição do cenário, inclusive, em razão dos objetivos a que se propõe um curso de Licenciatura. Esta redefinição deve ser vista como um dos indicadores para a mudança na estrutura curricular do curso, pondo em discussão os verdadeiros objetivos a que se propõe um curso para a formação de licenciados (SOARES; TAFFAREL; ORTEGA, 1993).
A propósito da necessidade de modificação no cenário, deve-se observar que ela implica o estabelecimento de uma ação dialógica entre diferentes nortes paradigmáticos, mas que deve contemplar objetivos previamente estabelecidos e que se fundamentam na defesa de interesses públicos (BUARQUE, 2003). Neste âmbito, são aspectos a serem considerados: (a) a necessidade de abertura de vagas para professores com perfil para a pesquisa e intervenção na área da Educação Física, Esporte e Sociedade e (b) o comprometimento do corpo docente com a área social (pedagógico-social), particularmente, centrado na escola. Deve-se, conquanto, questionar: Como as pesquisas desenvolvidas na área de Atividade Física e Desempenho Humano podem contribuir para a compreensão da escola, enquanto lócus de investigação? E, também, como os professores da área social (pedagógico-social) podem contribuir para a solidificação das suas pesquisas? Considera-se, oportuno, que estes questionamentos se direcionam não só aos interesses individuais dos professores, mas devem fazer parte de uma política institucional, que contemple em seu escopo uma concepção de homem e sociedade condizente com a formação de licenciados em um contexto de Universidade Pública.
Por fim, deve-se observar que aqui são apresentadas apenas algumas idéias, haja vista a pesquisa se encontrar em andamento. Contudo, apesar de parciais, os resultados indicados se remetem à construção de uma reflexão que pode ser aprofundada e continuada. Nesse ínterim, deve-se refletir sobre a importância da formação continuada do corpo docente em cursos de Licenciatura e, considerando, o caso em tela, em cursos de Licenciatura em Educação Física. Longe de se ter conclusões, acredita-se que a maior contribuição que se pode apresentar neste momento é propor questões.
Physical Education and Teacher Education at the University of Brasilia: epistemological aspects
This work presents partial results of a research work started in 2004 at the Physical Education College (FEF) of the University of Brasilia (UnB), having as one of its goals the identification of the guiding paradigms of the Physical Education BA course at the University of Brasilia and its respective influences in the professional education of FEF/UnB’s faculty. Theoretical references were based on knowledge theories and research was conducted according to the qualitative approach. The conclusion reached is that the Physical Education BA course program presents a battle of ideas between the areas of Physical Activity and Human Performance and Physical Education, Sport and Society. The battle between these areas constitutes a language debate which may contribute to legitimize the field of Physical Education, Sport and Society.
KEYWORDS: physical education – BA programs – epistemology – teacher education
A educación física de la Universidade de Brasília y la formación de profesores: aspectos epistemológicos
Este trabajo presenta resultados parciales de una investigación iniciada en 2004 en la Facultad de Educación Física (FEF) de la Universidad de Brasilia (UnB), teniendo como uno de los objetivos identificar los paradigmas norteadores del Curso de Licenciatura en Educación Física de la Universidad de Brasilia y sus respectivas influencias en la formación del cuerpo docente. El referencial teórico transita por la teoría del conocimiento y la investigación sigue abordaje cualitativo. Se concluye que el curso de Licenciatura en Educación Física presenta una disputa de campos entre las áreas de la Actividad Física y Rendimiento Humano y Educación Física, Deporte y Sociedad. La disputa entre estas áreas se contituye en un juego de lenguajes, y puede contribuir para legitimar el área de Educación Física, Deporte y Sociedad.
PALABRAS-CLAVE: educación física – licenciatura – epistemología – formación de profesores
NOTAS
* Este tema é parte de projeto de pesquisa iniciado em 2004 e vinculado ao PIBIC/UnB-CNPq.
** Doutora em Sociologia pela UnB, professora da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, coordenadora do Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação Física Escolar.
*** Estudante da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília, orientando do PIBIC/UnB-CNPQ e pesquisador do Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza.
**** Especialista em Pedagogia do Movimento Humano, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília e pesquisador do Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza.
1 Concorda-se com a proposição de que a universidade brasileira ainda não se constitui como sistema, embora o sistema universitário brasileiro tenha sido criado em 1968 e reafirmado em 1985. Para a criação de um sistema são necessárias normas que o regulamentem (BUARQUE, 2003).
2 A Universidade de Brasília foi criada em 15 de janeiro de 1962 (MORHY, 2004, p. 29).
3 As entrevistas foram realizadas exclusivamente com professores-fundadores do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade de Brasília.
4 Para melhor compreensão dos dados ao longo do texto, as entrevistas com os professores foram numeradas, assim como os questionários.
5 O quadro efetivo de professores da FEF/UnB é constituído por 21 professores, mais seis professores colaboradores, por meio de convênio firmado entre a Universidade de Brasília e a Secretaria de Estado da Educação, e uma professora cedida de outra instituição de ensino superior. A pesquisa considerou 28, o número total de professores, sem fazer distinção entre professores do quadro efetivo e professores colaboradores, em razão de que cinco dos seis colaboradores estão na instituição há mais de sete anos. Ainda deve-se registrar que 12 dos 28 professores foram ex-estudantes da instituição.
6 Atualmente, o corpo docente da FEF/UnB possui um total de 16 doutores.
7 Registra-se que a concentração de doutores na área de saúde se deve ao estabelecimento de uma espécie de convênio da FEF/UnB com o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, cujo objetivo era realizar um processo de capacitação dos professores da FEF/UnB, ainda em andamento.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BUARQUE, C. A universidade numa encruzilhada. Brasília: Unesco/Ministério da Educação, 2003.
ELIAS, N. et al. Os estabelecidos e os outsiders. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
ENGUITA, M. Educar em tempos incertos. Tradução de Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2004.
FARIA JR., A. G. et al. Pesquisa e produção do conhecimento em Educação Física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1992.
HABERMAS, J. The philosophical discourse of modernity. Cambridge: Polity Press, 1995.
INGRAN, D. Habermas e a dialética da razão. Tradução de Sérgio Bath. 2. ed. Brasília: UnB, 1994.
MORHY, L. Brasil – Universidade e Educação Superior. In: MORHY, L. (Org.). Universidade no Mundo. Brasília: Laboratório de Estudos do Futuro/UnB, 2004.
QUEIROZ, I. M. P. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991.
SOARES, C.; TAFFAREL, C.; ORTEGA, M. A Educação Física Escolar na perspectiva do século XXI. In: MOREIRA, W. W. (Org). Educação Física & Esporte: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1993.
SUASSUNA, D. Do objetivismo à intersubjetividade: o lugar da razão na modernidade. Revista Pós. Brasília: ICS, ano 3, n. 1, 1999.
TROGER, V. Bourdieu et l’école: la democratization désenchantée. Sciences humaines, Paris, numéro special, p. 16-23, numéro spécial, 2002.
UnB. Ato da Reitoria nº 831/74. Brasília: Universidade de Brasília, 1974a.
____. Ata da Reunião do Conselho Diretor n. 25/74. Brasília: Universidade de Brasília, 1974b.
Recebido: 31 de março de 2006
Aprovado: 17 de maio de 2006
Endereço para correspondência:
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba B, FEF Brasília/DF
CEP 70910-910
A/C Dulce Maria Filgueira de Almeida Suassuna
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