EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DE UMA PROPOSTA TEÓRICOMETODOLÓGICA PARA O ENSINO DO JUDÔ ESCOLAR*
OROZIMBO CORDEIRO JÚNIOR **
RESUMO
Este texto relata a experiência adquirida com o desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado “Metodologia no ensino da Educação Física: o judô como elemento da cultura corporal”. O referido projeto teve como objetivo a construção de uma metodologia de ensino do judô adequado à realidade e às exigências do contexto escolar. O desenvolvimento deste projeto foi possível devido à parceria entre o Colégio Estadual Waldemar Mundim, a Faculdade de Educação Física e a Universidade Federal de Goiás. Na conclusão deste trabalho, foi possível apresentar uma proposta teórico-metodológica de ensino do judô a partir dos princípios da pedagogia crítico-superadora.
PALAVRAS-CHAVE: Metodologia de ensino do judô, judô escolar.
INTRODUÇÃO
Este trabalho possui na sua gênese a perspectiva de construção de uma proposta teórico-metodológica de ensino do judô na escola, tendo como teoria orientadora a pedagogia crítico-superadora (C-S). No sentido de compreender o judô como um elemento da cultura corporal, necessitávamos de uma experimentação de atuação prática junto a uma escola pública para, assim, constatar a viabilidade deste conteúdo. Neste sentido desenvolvemos o projeto de pesquisa intitulado “Metodologia no Ensino da Educação Física: o judô como elemento da cultura corporal”.1
As justificativas iniciais para a realização desse projeto estavam apoiadas em duas proposições: a) reforçar e justificar a nossa opção pelo referencial já citado e a necessidade de um aprofundamento teóricometodológico acerca deste assunto; b) organizar e sistematizar os elementos constitutivos do judô para que se orientassem para uma prática educacional.
Em relação à primeira proposição, cabe-nos justificar que nossa opção em reforçar esta proposta é por existir uma matriz teórica2 que orienta essa prática pedagógica. Consideramos que esta proposta discute com muita seriedade e competência posições filosóficas, sociais, políticas e educacionais devidamente organizadas e sistematizadas para instrumentalizar os professores para a intervenção na área de educação física (EF). Este referencial analisa os problemas relativos à escola e a sua inserção na realidade social brasileira, buscando sempre a perspectiva de que a escola é mais um elemento de contribuição para a superação das atuais relações sociais capitalistas.
[...] numa sociedade de consumo tal qual a que vivemos, fortemente condicionada por interesses de lucro, fica evidente que os educadores, os verdadeiros educadores, não podem deixar de atentar para os desvios a que estamos sujeitos em termos de busca dos nossos valores de vida mais expressivos. Não se pode esquecer que estamos todos envolvidos pela mentalidade do ter mais, mesmo que isto implique em ser menos. Perguntar para que? por que? para quem se dirige a Educação? se impõe como tarefa fundamental. As respostas devem ser refletidas e as conclusões incorporadas e utilizadas no nosso agir diário. (Medina, 1989, p. 32).
A nosso ver existem vários equívocos em relação à interpretação deste referencial, assim como em relação à viabilidade do desenvolvimento dos conteúdos propostos por essa teoria. Esse equívoco acontece até mesmo no próprio livro (p. 76) que afirma que “o judô foi, entre nós, totalmente despojados dos seus significados culturais, recebendo um tratamento exclusivamente técnico”. Tal afirmação provoca, assim, dificuldades de entendimento acerca dos limites e possibilidades que o judô assume como um elemento da cultura corporal.
Em relação ao segundo ponto, consideramos ser de fundamental importância a organização e sistematização dos elementos constitutivos do judô, para que estes estejam orientados para uma prática educacional. No intuito de cumprir esta tarefa é fundamental estar ciente do atual processo de desenvolvimento em que se encontra o judô, para que esse conhecimento objetivo se tranforme em conhecimento escolar.
O PROJETO EM SUA FASE DE ORGANIZAÇÃO.
Para o desenvolvimento deste projeto foi necessário o apoio institucional da FEF/UFG, através da liberação do ginásio de lutas para as atividades, assim como dependências (banheiros, piscinas e etc) e materiais (bolas, cordas e etc).
Na organização do projeto político-pedagógico do Colégio Waldemar Mundim, o papel cumprido pela educação física não possuía bases teóricas sistematizadas na realização de suas aulas. Os próprios professores admitiam a necessidade de um suporte teórico mais consistente, apontavam para a falta de cursos de atualização, para a impossibilidade de estarem presentes em congressos científicos, para os baixos salários etc.
A educação física, nesta escola, sofria algumas limitações estruturais, como falta de espaço interno na escola para a realização das aulas, de materiais e de professores. Assim, as aulas de EF eram ministradas em uma quadra esportiva de um clube próximo e em outra quadra de um centro comunitário do bairro. O processo de avaliação para a educação física era feito através da freqüência do aluno ou de declaração de que realizava alguma prática desportiva em algum clube ou de que participava de programas de iniciação esportiva.
Para a realização de nossa experiência, organizamos os alunos do colégio em uma turma do ensino fundamental (turma A – 5a a 8a série) e em outra do ensino médio (turma B – 1o a 3o ano), com 25 vagas em cada uma. Distribuiu-se, então, uma circular com todas as informações possíveis dirigida aos alunos que desejassem participassem deste projeto. Esta circular deveria ser assinada pelos pais ou responsáveis. No intuito de atender as necessidades da pesquisa foi necessário que estabelecêssemos aulas três vezes na semana (segundas, quartas e sextas-feiras), no horário de 13:30h às 15:00h (turma A) e de 15:30 às 17:00h (turma B).
OS PRIMEIROS CONTATOS COM OS ALUNOS DO PROJETO
Inicialmente os alunos, ao freqüentarem um espaço como o do ginásio de lutas de FEF/UFG, ficaram ansiosos com tantas novidades, faziam muitas perguntas, falavam muito alto. Pudemos constatar que muitos deles executavam com destreza movimentos inerentes à capoeira (ginga, saltos, golpes).
Uma das dificuldades enfrentadas por nós esteve relacionada com a disciplina dos alunos. Na primeira semana de aula no projeto, fizemos a experiência de não utilizarmos o judogui, que é a roupagem característica do praticante do judô, e tentamos cumprir o papel de professor da mesma forma. Constatamos que os alunos não prestavam atenção àquilo que procurávamos ensinar, brigavam muito entre si. Em suma, ignoravam a presença do professor. No sentido de reverter esta situação, realizamos algumas leituras em relação à própria história do judô e passamos a considerar a realidade social dos alunos. Tomamos conhecimento de que o conceito em relação ao professor de luta se baseava em filmes, desenhos, histórias contada por amigos, nas quais o professor é uma pessoa autoritária e disciplinadora. Adotamos a medida de utilizar o judogui, mas mantivemos a nossa mesma postura como educadores e estabelecemos algumas regras de convívio a serem cumpridas pelo grupo.
Na semana seguinte, utilizando o judogui devidamente amarrado com a faixa, aguardamos os alunos dentro do dojo, numa posição ajoelhada, em silêncio e de cabeça baixa. Notamos que os alunos, principal-mente os da turma A, apesar de terem chegado eufóricos, entraram calados no dojo. Pareciam haver visto uma figura religiosa. Conseguimos ouvir algumas frases que sussurravam: “vai, faz bagunça agora, pro professor quebrar sua cara”, “eu acho que o professor tá um pouco grilado”, “eu acho que ele hoje vai dar aula”. A partir deste momento compreendi o quanto era necessário se envolver em um tipo de projeto como aquele e dominar ainda melhor aquele referencial.
Na descrição acima, ficou registrada apenas uma das dificuldades por nós enfrentada no desenvolvimento do projeto. Algumas outras surgiram, como o relacionamento afetivo professor-aluno, algumas desistências de alunos do projeto e outras tantas, que, pela limitação do trabalho, não serão enumeradas.
RELATO DE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
Ao tratar o judô numa perspectiva histórica apontávamos para que este conteúdo tivesse uma lógica diferente dos atuais métodos de ensino que se caracterizam por um excesso de movimentos mecânicos sem uma reflexão mais aprofundada de seus significados culturais. Neste sentido vinculamos a prática do judô à prática social dos alunos, discorrendo sobre temas atuais, tais como: isolamento geográfico do Japão, latifúndio, o jiu-jitsu, a urbanização do Japão, Jigoro Kano, princípios e fundamentos do judô (quedas, rolamentos, equilíbrio, desequilíbrio, projeções e imobilizações), o judô como esporte-espetáculo, o judô e suas múltiplas relações em nossa sociedade.
No tópico “isolamento geográfico”, oferecíamos subsídios aos alunos para que eles pudessem compreender a importância de elementos como os aspectos físicos do Japão no período feudal e suas influências na formação das famílias no Japão (clãs). Utilizamos materiais (bolas, cordas, colchões), jogos, encenações e movimentos de adaptação no dojo. Nossa intenção era fazer com que os alunos compreendessem que o Japão possui pouca terra, pouco espaço para plantação. Queríamos que os alunos questionassem o porquê do uso da força para tomada de terra, da utilização de guerreiros para a proteção das terras dos senhores de terra (Daymos). Percebemos que muitos deles se envolveram muito nessas discussões; perguntavam muito sobre fatos históricos ocorridos e começavam a entender que a sistematização da luta, principalmente no Japão, se deu por interesses econômicos e proteção de bens privados.
Dessa forma os alunos começavam a identificar os primeiros dados da realidade que deram gênese às práticas corporais de luta no Japão.
Para a prática dos fundamentos do judô, como rolamentos, quedas e exercícios de adaptação ao dojo, utilizamos colchões no sentido de que estes fossem mediadores do processo de aprendizagem, sem que isto significasse o rompimento com a riqueza de movimentos que aqueles alunos traziam de sua realidade. Neste processo trabalhamos várias formas de impacto e quedas, no sentido de esclarer que essas práticas faziam parte também de outras lutas como o Jiu-Jitsu.
Em linhas gerais, podemos dizer que o judô é uma manifestação cultural nipônica e que, portanto, sua origem está indissociavelmente ligada à história deste povo, às transformações sociais ocorridas no Japão no século passado, à sistematização e acúmulo de conhecimentos gerados a partir de sua prática, aos seus elementos técnicos e táticos. Deve-se reconhecer também seu processo de ocidentalização, suas tendências de transformação e suas interferências na cultura brasileira.
No processo avaliativo do nosso trabalho, realizamos uma prova escrita para as turmas A e B. A realização desta prova serviu ao propósito de analisar com uma maior profundidade o trabalho, buscando traçar a historicidade dessa luta, e estabelecendo os elementos constitutivos dessa luta.
Elaboramos a prova escrita para as duas turmas (A e B), em que foram formuladas as seguintes perguntas.
Para a turma A:
O judô é uma luta com “armas” ou luta corporal? Justifique.
Quais as partes do corpo utilizadas na prática do judô?
O que diferencia o judô de outras lutas? O judô é uma luta violenta? Justifique.
Como podemos cair no “chão” sem machucar? Quais são as formas de amortecimento?
Como está sendo sua participação no projeto? Qual sua opinião sobre as aulas com o professor de judô?
Na sua opinião, o que pode ser melhorado nas aulas de judô?
Para turma B:
1. Que importância teve o isolamento geográfico do Japão para o seu desenvolvimento?
Por que o latifúndio influenciou no surgimento de lutas corporais no Japão? Como ocorriam as lutas corporais?
Como as diferentes classes sociais lutavam no Japão? O que diferencia o judô de outras lutas?
Como podemos amortecer as “quedas” sem machucar? Quais são as formas?
Como está sendo sua participação no projeto? Qual sua opinião sobre as aulas com o professor de judô?
Na sua opinião, o que pode ser melhorado nas aulas de judô?
Após a realização desta prova, as turmas mostravam-se mais solidárias, mais compreensivas e alegres. Já havíamos nos aproximado muito de nossos objetivos, porque conseguíamos desenvolver um trabalho mais coeso, com uma definição mais clara do caminho a ser seguido. Queremos dizer que essa tarefa assumida nunca nos pareceu fácil e que, algumas vezes, percebemos que não dispúnhamos de total domínio dos referenciais teóricos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos observar que alguns alunos mostravam claramente um salto qualitativo, sobretudo os do segundo ciclo, o da iniciação à sistematização do conhecimento. Os alunos demonstravam consciência de suas atividades, de suas possibilidades de abstração, confrontando dados da realidade com suas próprias representações. Estabeleceram nexos, dependências e relações complexas, as quais estavam representadas em conceitos do judô elaborados por eles mesmos.
Além disso, considerávamos inicialmente a referência dos alunos em relação as lutas, suas dúvidas, questionamentos e em suas ansiedades pessoais em aprender o judô. Consideramos que nosso trabalho teve limitações; não conseguimos, por exemplo, realizar aulas de judô com um praticante do esporte. A direção da escola lamentou a ausência de espaço na escola que pudesse ser utilizado, mas reconheceu a importância desse projeto na escola e o quanto ele pode contribuir.
Não queremos dizer que chegamos a uma fórmula pronta e acabada, mas podemos afirmar que existe uma experiência obtida através da prática3 junto a alunos reais de uma escola pública. Queremos dizer ainda que há uma proposta de continuidade deste trabalho, com a realização de um curso de atualização sobre o judô para professores das redes públicas municipal e estadual de ensino.
ABSTRACT
This paper focuses on the experience acquired with the development of the research project entitled “Methodology in the teaching of the physical education: the judo as an element of corporal culture”. This project since its genesis aimed at the construction of a methodology of teaching judo adapted to the reality and to the demands of the school context. The development of this project was possible due to partnership among Escola Estadual Waldemar Mundim, School of Physical Education and Federal University of Goiás. In the conclusion of this research, it was possible to present a theoretical-methodological proposal of teaching of judo starting from the critical-sourmounter pedagogy.
KEY WORDS: Methodology of teaching judo, school judo.
NOTAS
* Para a construção desta proposta teórico-metodológica de ensino para o judô, recebemos significativas contribuições dos professores Anegleyce Teodoro Rodrigues e Marcelo Guina Ferreira da FEF/UFG.
** Acadêmico do curso de Educação Física da FEF/UFG e bolsista do Programa Bolsa de Licenciatura no ano de 1998/99, pela Pró-Reitoria de Graduação da UFG.
1. Este projeto de pesquisa teve como orientador o Prof. MS. Marcelo Guina Ferreira, recebendo apoio da FEF/UFG, do Colégio Waldemar Mundim, e financiamento através do Programa Bolsa de Licenciatura no ano de 1998, desenvolvido pela Pró-Reitoria de Graduação da UFG.
2. Cf. o livro Metodologia no Ensino da Educação Física op. cit.
3. Este texto está materializado na forma de um trabalho monográfico intitulado “Proposta teórico-metodológica do ensino do judô escolar a partir dos princípios da pedagogia crítico-superadora: uma construção possível”, que conta nas suas 156 páginas todas as informações e dados referentes a esta pesquisa.
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