A EDUCAÇÃO FÍSICA FACE AO PROJETO DE MODERNIZAÇÃO DO BRASIL (1900-1930): AS HISTÓRIAS QUE SE CONTAM

LUCIANA MARCASSA*

RESUMO:

Ao realizar uma breve discussão sobre a historiografia da Educação Física, pretendo apresentar os referenciais que lhe deram suporte, bem como os avanços, limites e contradições inerentes aos estudos. Dessa maneira, desejo apreender os sentidos e significados da produção de conhecimento em História da Educação Física e estimular outras pesquisas para que se empenhem no trabalho de reescrever continuamente a história.

PALAVRAS-CHAVE: História e historiografia da Educação Física.

Educação Física no Brasil não pode ser entendida senão por meio de sua história, através dos incessantes movimentos de transformação no contexto social, político, econômico e cultural em que se desenvolve a própria sociedade brasileira. É através da história que o ser humano constrói cultura e torna significativa sua existência coletiva material e subjetiva. E como a história se faz pela constante ação dos homens, ela estabelece conexões entre o passado e o presente. Assim, ainda que o presente não seja um reflexo mecânico dos acontecimentos passados, o estudo da história permite apreendê-lo melhor no sentido de construir um futuro diferenciado. Nessa perspectiva, a História1 se configura não só como disciplina que propicia a reflexão e compreensão do próprio passado, mas também a intervenção na realidade atual.

Buscar a verdade histórica e objetiva é como tentar montar um quebra-cabeça sem nunca poder completá-lo. Porém, quanto mais peças, ainda que sejam totalmente diferentes umas das outras, mais elementos teremos para interpretar o passado e intervir no presente. E por isso mesmo, longe de compactuar com a idéia de uma verdade absoluta, pronta e acabada, acredito que devemos revisitar insistentemente a história, fazendo emergir uma segunda versão dos fatos. Mas também precisamos buscar cada vez mais o desconhecido, dar sentido ao que não foi visto, ao que passou desapercebido, porque o passado é sempre uma obra inacabada.

Muitas têm sido as histórias que nos contam, cada uma delas a partir de uma chave interpretativa do passado, de um ponto de partida específico. Certa de que tais análises não falam de fatos e verdades absolutos e cristalizados, vejo que acabam por deixar certa conexão viva com o presente, ou mesmo sugestiva, remanescente, capaz de provocar novas inquietações para um novo retorno ao passado. E como o conhecimento histórico é um processo infinito que depende, em grande parte, do papel ativo do sujeito que conhece, o trabalho do historiador deve ser continuamente recomeçado.

Portanto, a discussão que pretendo com este texto, longe de ser uma exposição mais detalhada acerca da historiografia da Educação Física, busca mais estimular outros estudos que se empenhem na construção de outras versões históricas, neste caso, a respeito da Educação Física e do conjunto das práticas sociais que a ela se articulam. Mas, especialmente, desejo estimular um olhar e um diálogo diferenciado com o tempo/espaço que ocuparam as práticas corporais no projeto de modernização do Brasil no início do século XX, a partir dos impasses históricos da cultura e tendo como referência novas fontes e elementos de apoio para a interpretação dessa história.

A EDUCAÇÃO FÍSICA NO INÍCIO DO SÉC. XX

Segundo as histórias que se contam, o início de século XX no Brasil, sobretudo as três primeiras décadas, aparece como um período de profundas transformações sociais, em que os interesses da industrialização se chocam com as reivindicações do operariado crescente, criando um cenário em que se articulam contraditoriamente modernidade e degradação.

A existência, ainda marcante, dos grandes latifúndios de cunho comercial exportador2 gerava conflitos com o mercado interno, preocupado em absorver a enorme massa imigrante, trabalhadora e consumidora que se afirmava no país. Por outro lado, enquanto a concentração de riquezas impulsionava o desenvolvimento urbano, este não era acompanhado dos serviços mais elementares das cidades, como a limpeza das ruas e os serviços sanitários. Tratava-se, então, de modernizar, moralizar e higienizar a nação brasileira. Diante dessa demanda, prometendo solucionar os problemas reincidentes, a escola surge como um espaço de desenvolvimento moral e higiênico da população urbana.3

Revisitando a história da Educação, podemos perceber que a prática pedagógica neste período constitui-se como o mais decisivo instrumento de aceleração do projeto de modernização do Brasil. A partir do inusitado entusiasmo pela escolarização e do marcante otimismo pedagógico, encontrava-se a resposta mais elaborada com que se procurava responder aos desafios postos pelas transformações sociais.

Segundo Jorge Nagle (1974), no discurso do entusiasmo pela escolarização existia a crença de que, pela multiplicação das instituições escolares e pela disseminação da educação primária, seria possível incorporar grandes camadas da população na senda do progresso nacional, colocando o Brasil no caminho das grandes nações do mundo. A partir dessa concepção, diversos itens sobre escolarização foram incorporados aos programas das organizações partidárias, dentre as quais se destacava a Liga Nacionalista de São Paulo, que buscava associar as propostas educacionais às exigências políticas.

Já no debate do otimismo pedagógico existia a crença de que determinadas alterações no interior da escola, somadas às formulações doutrinárias sobre escolarização, indicassem a verdadeira formação do novo homem brasileiro. Como representante dessa corrente destaca-se o movimento pela Escola Nova, que buscava realçar a importância da valorização do homem pela Educação e, com esse propósito, difundir a instrução primária visando a atender às questões da Educação no país.

Nesse quadro, enquanto o discurso em defesa da escola orienta o conjunto das Reformas Constitucionais, através da influência de pedagogos e estadistas como Rui Barbosa,4 a escola assume a função de regular, vigiar, instruir, higienizar e formar o novo homem brasileiro, com o objetivo de “em nome da saúde, manter a ordem, ampliando para o conjunto da população a determinação de normas para conseguir uma vida saudável, e o pleno funcionamento da sociedade” (Soares, 1994, p.17).

Colada aos ideais higiênicos e eugênicos típicos da Europa do século XVIII, trazida para o Brasil a partir da segunda metade do século passado e constituída por métodos ginásticos, configura-se a Educação Física, disciplina do corpo, da saúde, dos bons costumes. Porém, é na esteira do processo de modernização, entre as primeiras décadas do século XX, que a discussão em torno da escolarização da Educação Física soma esforços ao debate envolvendo a questão da popularização da escola.

Os estudos de Inezil Penna Marinho5 sustentam que a necessidade de nacionalizar nossa educação, de diminuir a espantosa quantidade de analfabetos e de melhorar as condições culturais do povo vinha ao encontro da criação de uma nova imagem brasileira, capaz de expressar o desenvolvimento da sociedade uma vez descolada dos laços que a prendiam à antiga organização provincial. Logo, a incorporação dos métodos ginásticos pela escola tornou-se justificativa e interesse de muitos pedagogos que passam, deste momento em diante, a defender e estimular a prática da ginástica como forma de “educar o corpo”.

Como não poderia deixar de ser, o debate sobre a escolarização da Educação Física adere às políticas estatais, emergindo como poderoso instrumento de progresso. Como colaboradora e disciplinadora da vontade, da moral, da saúde e da higiene, a Educação Física se justificaria no interior da escola ao mesmo tempo que assumia com a Educação o estatuto de solução para os problemas nacionais.

Uma vez introduzida pela educação nos hábitos do país, a prática desta cultura física, sustentada durante uma larga série de gerações, depuraria a nossa gente de diáteses mórbidas, fortificando-a e enriquecendo-a progressivamente pela criação incessante de indivíduos robustos. As gerações de amanhã apuradas, por sistema, pela educação física – afirmadora da raça e colaboradora do progresso – imprimiriam assim nas que lhe sucedessem, e submetidos ao mesmo tratamento, o cunho de seu caráter, para que pudessem dentro dos limites do patrimônio biológico hereditário, aperfeiçoar ainda mais a natureza humana. [...] O país que não tem educação física (tomada esta expressão no sentido mais amplo), não poderá jamais erguer seu povo à altura da missão que lhe cabe, na construção de uma sociedade nova. O que a tem de má, irregular, empírica, rotineira, contínuo plagiato de processos arcaicos ou de rebotalhos senis, não terá senão de arrastar-se, para a derrota do áspero caminho em que se chocam as competições da era industrial, que é de energia e tenacidade, rigor e precisão. (Azevedo, 1960, p. 216)

Na historiografia da Educação Física também não faltam estudos sobre a prática da Educação Física como educação do físico, como condição para desfrutar uma vida saudável, e de quanto o novo homem brasileiro precisava abandonar aquele corpo frágil, doentio, susceptível às epidemias e à ociosidade, para transformá-lo em um corpo símbolo da saúde e da vida moderna. Carmem Lúcia Soares (1994, p.10) chega a afirmar que a Educação Física no início do séc. XX

encarna e expressa os gestos automatizados, disciplinados e se faz protagonista de um corpo saudável; torna-se receita e remédio ditada para curar os homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade, e, desse modo, passa a integrar o discurso médico, pedagógico e familiar.

Também não faltam estudos dedicados à comprovação da estreita ligação entre a Educação e a Educação Física na construção de um novo homem, de um novo corpo e de uma nova sociedade. Lino Castellani Filho (1988) bem nos alerta sobre os papéis ideológicos representados pela Educação Física no palco educacional brasileiro. A partir das leis e reformas educacionais, o autor a encontra como colaboradora do progresso e como método de aperfeiçoamento da raça brasileira.6

Porém, ao falar da Educação Física como atividade corporal consagrada, em que a ginástica aparece como prática hegemônica, a historiografia da Educação Física busca fundamentar e comprovar suas hipóteses a partir do discurso oficial, das leis e propostas educacionais, bem como dos compêndios e teses sobre Medicina e Educação Física – fontes que, por vezes, não caracterizam as contradições da cultura brasileira. Parece que, de uma certa forma, olhavam para a realidade brasileira como reflexo da realidade européia, generalizando a prática da Educação Física no Brasil e deixando para as gerações futuras algumas dúvidas e indagações.

Até que ponto essas propostas saíram do papel e penetraram a prática cotidiana de seus sujeitos históricos? Em que medida essa concepção de corpo influenciou a vida e os hábitos culturais da população brasileira? Ou ainda, o quanto é significativo para a História da Educação Física conhecer apenas os conteúdos das leis, propostas educacionais e teses sobre higiene e saúde? O que parece evidente é que, se fôssemos responder a essas perguntas, teríamos que construir uma outra história. E é justamente esse nosso interesse.

PENSANDO AS CONTRADIÇÕES

Antes mesmo de falar sobre as contradições das histórias que nos contam, devemos estar atentos para a influência do narrador sobre a historiografia, isto é, de onde partem as análises sobre a história da Educação Física. Nessa perspectiva, articulada às suas propostas, avanços e limites, vamos classificar a História da Educação Física7 em três grandes correntes, tendências ou visões. Uma primeira, que prevaleceu de 1930 a 1980, chamada História Episódica, e duas outras que vêm convivendo, não pacificamente, desde a década de 80, a concepção marxista de História e a Nova História.

A História Episódica aparece no Brasil principalmente através de Inezil Penna Marinho (1943), autor que traz importantes contribuições para a história documental e factual, e de Fernando de Azevedo (1960), que se dedica à narrativa dos acontecimentos históricos no sentido de justificar e legitimar o presente. Uma vez que os acontecimentos históricos aparecem recortados a partir de nomes expoentes e grandes períodos, deduz-se que os autores dessa tendência voltaram suas preocupações aos aspectos históricos da ginástica, em especial à introdução dos métodos ginásticos no Brasil, dando ênfase a uma lógica de caráter mundial. Fazendo uma periodização externa ao objeto e se restringindo ao uso de fontes oficiais como leis, datas e fatos, acabam marcando o que se chama de visão linear e progressiva da história. Tendo como referência a concepção positivista de ciência, os autores dessa tendência pronunciarão seu conceito de história como sendo aquele conhecimento do passado que tem por objeto o “fato histórico”, captado numa relação de causa e efeito. Na produção do conhecimento, separam o sujeito do objeto e entendem este primeiro como passivo, reflexo do objeto contemplado.

O trabalho de Lino Castellani Filho (1988) inaugura na Educação Física a concepção marxista de História e se destaca pela visão panorâmica dos papéis sociais representados pela Educação Física no cenário políticoeducacional brasileiro. Na medida em que se propõe a romper com a forma linear e exclusiva da produção do conhecimento histórico na Educação Física, revelando aspectos políticos e ideológicos importantes, Castellani Filho se expressa como um autor marcante, uma vez que proporciona, na década de 80, fundamental redimensionamento e mudança de enfoque no que se refere aos estudos históricos da Educação Física, acabando por muito influenciar as pesquisas posteriores. E, justamente pela opção por uma análise mais panorâmica, deixa lacunas e estimula os demais pesquisadores a fazer, na história, outros mergulhos mais verticais.

Além deste, outros trabalhos como os de Carmem Lucia Soares (1994) e Silvana Goellner (1992) também se somaram ao esforço da concepção marxista de história, caracterizada pelo enfoque totalizador do objeto, compreendido em sua realidade objetiva e na unidade teoriaprática, cujas idéias são consideradas produto das relações sociais e da produção material. O interesse de Soares era buscar a influência e a identificação do pensamento médico-higienista proveniente da Europa do século XVIII com as “bases científicas” que justificaram e nortearam a inclusão da Educação Física nos colégios e escolas brasileiras a partir do século passado. Por isso, não é sem propósito que, ao analisar a configuração da Educação Física em congressos médicos, através das pesquisas e teses sobre Medicina e Saúde, a Educação Física aparece colada aos ideais eugênicos de regeneração e embranquecimento da raça.

De inegável relevância para nossa área, o estudo de Soares ainda aponta a natureza do projeto político e ideológico sobre o qual a Educação Física se constitui no Brasil, e faz uma crítica à sociedade do capital que aqui então se instaurava. No entanto, como o projeto de modernização atravessa também as manifestações e hábitos culturais, fica a dúvida se de fato as políticas de medicalização conseguiram transformar a prática cotidiana da população. Além disso, por não enfatizar as contradições com as quais se desenvolvia a Educação Física no Brasil na virada do século e também por consultar apenas as fontes oficiais para sua pesquisa, acaba por não considerar a discussão da transformação da cultura brasileira, no que se refere à sua identidade.

Sem desmerecer o impacto da intervenção médica sobre essa área de conhecimento e as contribuições que desses estudos derivam, o início do século XX no Brasil, por ser um período de grande efervescência ideológica e inquietação social, também se apresenta como um momento de extrema produção cultural e artística, tendo como traço definidor a ruptura com os parâmetros de comportamento hauridos dos séculos passados e a busca por uma nova identidade, um sentido/significado capaz de agregar e expressar centenas de seres desenraizados e estranhos àquela nova ordem social: a modernização.

No caso da cidade de São Paulo,8 por exemplo, ao mesmo tempo em que há uma profunda sensação de estranhamento, exclusão e diferenciação entre a população, há também impulsos e momentos de organização coletiva e de ruptura com as práticas hegemônicas. Se, se por um lado, a automatização das atitudes individuais afastava o sujeito de sua identidade social para dotá-lo das capacidades e funções da máquina, por outro, certas práticas corporais, como o futebol e as atividades atléticas, faziam despertar um sentimento de igualdade e pertencimento em meio ao esfacelamento da consciência e da memória.9

Entretanto, na história já tida por nós como clássica,10 a Educação Física aparece engessada a uma origem européia, longe dos significados do imaginário social, distante dos sentidos que a formação da cultura brasileira podem lhe imprimir, pois é vista através de um tipo específico de fonte, coerente com um certo prisma da história.

Hoje, com o novo movimento de estruturação das pesquisas históricas em Educação Física, a diversificação das fontes é indispensável, assim como há necessidade de catalogar, recuperar e disponibilizar as que ainda são desconhecidas. Embora pequeno, mas evidente, o aumento dessa produção científica também tem apontado para uma tendência ao uso metodológico mais adequado e criterioso. Porém, a contribuição de tais trabalhos não pode deslocar-se de seu entendimento como produção material, científica, historicamente situada e que responde a certos propósitos específicos. E é justamente por não ter a pretensão de explicar “a história” que acabam, ao mesmo tempo, instigando o surgimento de novas pesquisas na medida em que deixam lacunas que merecem ser estudadas.

Dentro desse mesmo percurso de conflitos e concordâncias, a terceira concepção a ser configurada é a Nova História, que, ao conceber toda atividade humana como histórica, possibilita a utilização de contribuições plurais advindas das ciências humanas no que se refere às categorias de análise do conhecimento histórico. Além disso, amplia o conceito e a utilização das fontes, admitindo um modelo explicativo caracterizado por mediações independentes, concebendo a objetividade absoluta como irreal. Da primeira à terceira geração da Escola dos Annales,11 há uma tendência que consiste em compreender a história como sistema em que funciona uma certa sociedade em suas múltiplas dimensões: temporal, espacial, humana, social, econômica, cultural, acontecimental. Busca um recorte cronológico mais estreito em que a análise entre o todo e as partes não permite a relação entre antecedente e conseqüente, isto é, a relação com o presente torna-se secundária. Está atenta para as várias funções da comunicação, inclusive a simbólica e inconsciente, através de uma diversificação maior de fontes oficiais e não oficiais. Como desconheço trabalhos sobre a Educação Física no início do século XX desenvolvidos dentro da lógica utilizada pela Nova História, apenas farei algumas considerações no que se refere às suas perspectivas de estudo. Apesar das suas contradições e equívocos, devemos reconhecer que apresentam também muitas contribuições.

ALGUMAS PROPOSIÇÕES

Já vimos que o conhecimento histórico é condicionado por um processo de transformações contínuas, tanto das intenções e propósitos subjetivos como dos determinantes objetivos, sendo portanto inesgotável. Ainda que tenhamos hoje métodos e técnicas de investigação aperfeiçoados, os historiadores não só julgam e interpretam as mesmas questões e os mesmos acontecimentos, mas também selecionam, percebem e apresentam diferentemente os fatos. Encontrei algumas palavras interessantes de E. H. Carr, como epígrafe de um capítulo sobre os fatos históricos e sua seleção, no livro de Adam Shaff (1983, p. 203), que me foram muito reveladoras e que dizem respeito à necessidade de reescrevermos constantemente a história.

Não, na verdade, os fatos não se assemelham aos peixes expostos na banca do comerciante. Assemelham-se aos peixes que nadam no oceano imenso e muitas vezes inacessíveis; o que o historiador apanhará depende em parte do acaso, mas sobretudo da região do oceano que tiver escolhido para a sua pesca e da isca de que se serve. Estes três fatores são, evidentemente, determinados pelo tipo de peixes que se propõe apanhar. Em geral, o historiador obterá o tipo de fatos que deseja encontrar.

Entretanto, o que temos apreendido do debate atual sobre História e historiografia da Educação Física é um certo descompasso em relação às prioridades que se estabelece para a área. Nesse particular, concordo integralmente com Fernanda Paiva (1999), para quem a historiografia educacional deve colocar elementos que corroborem com o entendimento das problemáticas relativas à área, sem perder de vista a possibilidade de reflexão e intervenção, no presente, na educação e na história.

Como entendo a Educação Física como área correlata à Educação, vejo a legitimidade da História da Educação Física na medida em que estabelece um vínculo com sua prática educativa. Nesse sentido, longe de compactuar com um pragmatismo presentista, que busca na história a explicação e a justificativa mecânica do presente, penso que um compromisso político deve ser assumido e este exige conhecimento e intervenção. Para Paiva (1999), é a história que nos ajuda a entender e firmar esse compromisso.

Dessa forma, o estudo da história torna-se componente e condição constitutiva da formação profissional, pois nos fornece um importante recurso teórico-metodológico que qualifica nossa atuação para um recriar cotidiano da prática, a partir da realidade que nos cerca e com os subsídios de que dispomos (Melo, 1999). Para isso, não basta revisitar a história como se ela fosse apenas um amontoado de datas e fatos desconectados, nem olhar com as lentes da neutralidade positivista; como educadores e, por vezes, historiadores, somos seres de valor, carregados dos significados que construímos na relação com o presente.

Também não se trata de polarizar a discussão e aderir ao princípio subjetivista e relativista na apreensão do conhecimento histórico. Se no paradigma positivista tínhamos uma predominância do objeto em relação ao processo de conhecimento, atribuindo ao sujeito um papel passivo, no modelo idealista-ativista, a predominância se volta ao sujeito, que apercebe o objeto do conhecimento como sua produção. O descrédito quanto à validade do critério de verdade deixa claro o descompromisso dos historiadores com a ciência. Essa postura, somada a uma fragmentação, particularização e, portanto, superficialidade da história, comum à Nova História, pode expressar uma atitude despolitizante diante da nossa área e do todo social.

Como já havia dito antes, a produção do conhecimento histórico deve partir da interação sujeito-objeto em que é atribuído um papel ativo ao sujeito que, submetido às determinações sociais, introduz ao conhecimento uma visão de realidade socialmente transmitida e acaba por delegar seus valores à interpretação da história. O entendimento da história como ciência propõe uma relação cognitiva na qual tanto sujeito quanto objeto mantêm a sua existência objetiva e real, ao mesmo tempo em que atuam um sobre o outro. Essa compreensão, da qual me pronuncio, valida os critérios de verdade objetiva ao mesmo tempo que nasce da prática social e é interpretada e desenvolvida pela história marxista (Schaff, 1983).

Para além de um trato mais rigoroso com a metodologia da história, buscando superar uma discussão superficial que polariza de forma maniqueísta o posicionamento das diferentes tendências ou correntes da História, é preciso enfrentar coletivamente os problemas da área, privilegiando os objetos de pesquisa consonantes com a prática pedagógica da Educação Física. Há que se ampliar e diversificar o uso das fontes, entendendo que a compreensão da cultura por vezes deve passar pela interpretação de fontes literárias, orais e iconográficas, uma vez que também se configuram como produção material e, portanto, humana.

Por outro lado, lembro que as nossas pesquisas devem ser significativas para a prática pedagógica e relevante para a sedimentação e especificidade de nossa área de conhecimento. Não podemos correr o risco de fazer de nossos estudos a tematização ou problematização da vida privada, pois, ainda que a história possa ser constantemente reescrita, o nosso presente não pode esperar.

Enfim, os apontamentos que aqui coloco, mesmo que bastante genéricos, têm a pretensão de contribuir e entusiasmar outros profissionais de Educação Física que, sensíveis às problemáticas de nossa área, persistem em não perder “o bonde da história”.

ABSTRACT

This paper discusses the physical education historiography, presenting its sources, as well as its progress, limits and contradictions. The aim is to catch the senses and meanings of the production of knowledge in the field of physical education history and also to estimulate the researches about the subject.

KEYWORDS: Physical education history and historiography.

NOTAS

* Licenciada em Educação Física pela Unicamp, mestranda em Educação pela UFG. Professora da Faculdade de Educaçãso Física da UFG e sócia pesquisadora do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte - CBCE.  

1. Refiro-me à “História”, com letra maiúscula, quando falo de uma disciplina, área de conhecimento. Já “história”, com letra minúscula, diz respeito à determinados objetos estudados pela disciplina História.

2. Interessante notar que no caso específico de São Paulo, são as lavouras cafeeiras que acabam por aglutinar grande parte da população em torno de sua produção e comercialização, fazendo com que as cidades e as primeiras indústrias do estado surgissem do acúmulo de seu capital.

3. Guardadas as particularidades históricas de cada cidade, aqui me refiro às primeiras metrópoles que surgem no Brasil como São Paulo e Rio de Janeiro.

4. A esse respeito, consultar MARINHO, Inezil Penna. Rui Barbosa: paladino da Educação Física no Brasil. 2. ed. Brasília: Horizonte, 1980.

5. MARINHO, Inezil Penna. História da Educação Física no Brasil. São Paulo: Brasil Editora, s.d.,

6. Além do projeto de eugenização da população brasileira, tratado exaustivamente nos trabalhos de Castellani Filho (1988) e Soares (1994), o problema da raça, bem como do meio ambiente foram os temas básicos em torno dos quais surgiram as primeiras sistematizações acerca da cultura brasileira. Os precursores de tais ciências sociais no Brasil na virada do século são Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha que formulam suas teorias raciais sob influência do darwinismo, do positivismo e do evolucionismo europeu. A esse respeito consultar Renato Ortiz. Cultura brasileira e identidade nacional 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

7. Classificação apresentada por Amarílio Ferreira Neto (1996)

8. Uma das primeiras cidades brasileiras a viver, no início do séc. XX, o surto da metropolização desenfreada, acompanhada pela difusão desordenada da industrialização e da presença virtuosa da máquina como componente de um cenário tipicamente urbano.

9. Algumas indicações a esse respeito podem ser encontradas em Luciana Marcassa. Lazer e cultura na paulicéia desvairada: um diálogo com Nicolau Sevcenko. In: Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança. Anais. Porto Alegre: UFGRS, 2000. p. 649-654.

10. Alguns desses “clássicos” são Educação Física no Brasil: a história que não se conta, de Lino Castellani Filho; Educação Física: raízes européias Brasil, de Carmem Lúcia Soares; e O método francês e a Educação Física no Brasil: da caserna à escola, de Silvana Villodre Goellner.

11. Nesse particular, consultar Peter Burke. A Escola dos Annales 1929 – 1989: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Ed. Unesp, 1997, ou também José Carlos Reis. A História: entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996.

12. Victor Melo (1999).

13. Concepção desenvolvida por Adam Schaff (1983).

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