POLÍTICAS PÚBLICAS E EDUCAÇÃO FÍSICA & ESPORTES NO BRASIL: REFORMAS OU RUPTURA?*

CELI TAFFAREL

Dialogar com uma pessoa tão conhecida e respeitada por todos da área de Educação Física & Esportes, da Educação e do próprio movimento político-social de nosso país, como é o caso de nossa amiga, educadora e cientista, doutora e pós-doutoranda Celi N. Zulke Taffarel, não é uma tarefa fácil. Primeiro, pela importante contribuição que tem oferecido à área participando diretamente em onze livros e em dezenas de artigos e textos publicados em vários periódicos especializados na área da Educação Física, Esporte e Lazer a partir da década de 80. Integra-se portanto ao grupo de pensadores que procura estabelecer, além de uma crítica radical aos modelos e concepções de práticas pedagógicas e científicas – instituídos pelo viés mecanicista, reprodutivista, ideologizado e excludente no campo do conhecimento humano –, uma nova forma de compreender a Educação Física e seu papel social. Nossa entrevistada faz parte, também, daqueles raros grupos de intelectuais – destituídos da falsa neutralidade política – que apresentam proposições alternativas no campo educacional e no interior das diversas práticas sociais, contrapondo-se ao modelo hegemônico da Educação Física e Esportes no interior da escola e nos demais espaços sociais e visando construir uma sociedade mais humana, justa e eticamente superior a que temos hoje. Ressaltamos que esta condição não se resume a meras elaborações teóricas ou a discursos esvaziados de conteúdos práticos, mas a ações metodológicas objetivas. Esta educadora tem sido um exemplo para todos nós no campo da intervenção – militante dentro dos movimentos sociais, de trabalhadores e sindicais, nos movimentos estudantis, nas entidades ligadas à Educação, SBPC e CBCE – e em sua práxis permanente nas lutas travadas no interior das universidades seja como estudante da graduação e pós-graduação como também em suas ações pedagógicas, científicas e políticas dentro do espaço da docência.

Poucos são os profissionais de nossa área que nunca ouviram falar de Celi e todos aqueles que tiveram o prazer de conhecê-la dificilmente esquecerão sua fala clara, firme e indignada para com a miséria e a discriminação social. Mostra, porém, sensibilidade, doçura e fraternidade ao reconhecer as dificuldades, os limites e as possibilidades de cada um na construção de ações interventoras que busquem a superação e a construção de uma sociedade mais justa, solidária e eticamente humana. Se algum de vocês ainda tem dúvidas sobre os pequenos lampejos anunciados nesta sintética introdução, aproveitem esta oportunidade histórica de conhecer esta amorosa educadora que acredita em novos tempos para o ser humano através da revista Pensar a Prática.

PP - Professora Celi Taffarel, estamos vivendo uma crise social sem precedentes na história humana o que nos deixa apáticos, confusos e, o que é pior, sem nenhum norte que indique as formas mais adequadas para superarmos tal situação, ainda que a longo prazo. Diante deste contexto que tipo de saída (objetiva) deveríamos buscar no sentido de construirmos ações superadoras para o milênio que se inicia?

CELI – Em primeiro lugar, estamos vivendo, a nível planetário, a acentuação da decomposição do modo de produção capitalista, que esgotou suas possibilidades civilizatórias, é autofágico, e atualmente exacerba os mecanismos de destruição das forças produtivas. Este é um dado científico. Para constatar e explicar os dados confirmados pelos fatos e ampliar a compreensão da conjuntura atual, é necessário ler ou reler o Daniel Gluckstein, O imperialismo senil (São Paulo, Edição da Seção da IV Internacional no Brasil, s.d.), a Viviane Forrester, O horror Econômico (São Paulo, Unesp,1997), o Oswaldo Coggiola, Globalização ou socialismo (São Paulo, Xamã, 1997), o Gaudêncio Frigotto, Educação, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento: teorias em conflito (Curitiba, ANPED, 1997) ou, ainda, para sermos mais diretos, os textos de Marx, Trabalho assalariado e capital, O manifesto do Partido Comunista, ou o clássico Contribuição à critica da economia política. Os que procuraram atualizar o conteúdo histórico das teses de Marx não estão confusos ou apáticos. Toda esta decomposição pode ser desvelada a partir dos estudos no âmbito da cultura corporal; basta buscarmos compreender nexos e determinações históricas, porque as coisas são como são e porque não são diferentes.

Em segundo lugar: vamos tratar da apatia e da confusão. Gramsci, em seu texto (In: Escritos políticos. Lisboa, Seara Nova, V.I, 1976), já descrevia as conseqüências históricas da indiferença, do ser apático, do não tomar uma posição de classe: “amarram-se nós que só a espada desmanchará, promulgam-se leis que só a rebelião derrubará”. Petras, mais recentemente, critica os “Intelectuais em retirada” em vários textos, (por exemplo, Petras, James. Os intelectuais: uma critica marxista aos pós-marxistas. Plural.Revista dos Professores da UFSC-SIND, n. 8, ano 5, jul/dez 1996; Petras, J. Os intelectuais em retirada. In: Coggiola, O. (Org.). Marxismo hoje. São Paulo, Xamã, 1996). Deixa claro as conseqüências históricas da confusão e do fôlego que se empresta ao capitalismo e a sua ideologia, o neoliberalismo, com esta retirada, com esta confusão, apatia e retirada. O que nos cabe é reconhecer o papel estratégico na luta de classes que se expressa também no âmbito da Educação Física & Esportes. A identificação, a disposição, a convicção, a firmeza e a clareza no projeto superador capitalismo devem ser alcançadas coletivamente. Nada podemos esperar dos que “não têm certeza se quererem mudar o capitalismo”. O grande desafio da atualidade é atender a demanda das massas por práticas corporais cientificamente orientadas aliadas a possibilidades estratégicas de médio e longo alcance de superação do modo de producão capitalista que está esgotado em suas possibilidades civilizatórias. Este rumo não podemos perder.

O que devemos buscar, o que devemos fazer? Esta pergunta colocada pelos que têm disposição de lutar é respondida na inserção orgânica nas lutas em defesa do projeto histórico superador ao capitalismo. A resposta é encontrada nas reivindicações populares, nas lutas coletivas, nos movimentos de resistência. É isto que temos que fazer, construir coletivamente uma opção, com base nas reivindicações populares. Só para exemplificar menciono a reforma agrária – uma luta de todos. Ela deve chegar ao âmbito da Educação Física & Esportes. Nossas experiências pedagógicas com movimentos sociais organizados no campo, especificamente o MST, e com movimentos sociais organizados no meio urbano, com associação de moradores, nos permitem levantar esta possibilidade estratégica, central, na luta atual. Quem nos chama a atenção para a “força do lugar” é o geógrafo Milton Santos, em seu livro “A Natureza do Espaço” (São Paulo, Hucitec. 1997, p. 65 e 267). Ele define o espaço geográfico como sendo um conjunto indissociável de sistemas de objetos de ações, mas é sempre por sua corporeidade que o homem participa do processo de ação. Por isto temos clareza hoje do que significa a Educação Física & Esportes para os meios urbano e rural.

Ainda para exemplificar menciono o “Projeto Popular para o Brasil”, a “Consulta Popular”, a “Opção para o Brasil”, ora em debate em nível nacional, organizados por eminentes cientistas como o Benjamim, a Tânia Bacelar, entre outros e publicado em 1998 pela Contraponto, Rio de Janeiro. Em nível internacional temos movimentos de resistência como o Acordo Internacional dos Trabalhadores (ACIT), em torno do que se organiza a IV Internacional Socialista. Temos também o ATTAC, fundado em 1997 na França, organização que articula em nível internacional a discussão em busca de alternativas ao neoliberalismo. O cientista social e geógrafo Milton Santos é um dos articuladores deste movimento no Brasil.

PP – As proposições pedagógicas colocadas através da orientações

normativas (LDB, Diretrizes Curriculares e PCN) para a educação brasileira apontam, segundo suas perspectivas, para algum tipo de mudança substancial na formação educativa de nossas crianças e jovens?

CELI – Existem mudanças substanciais, sim, na perspectiva de consolidar o projeto capitalista de formação humana. Este ordenamento legal, gestado nos últimos 10 anos, sintonizado e monitorado pelo Banco Mundial e seus assessores, é a resposta no âmbito educacional, das exigências do projeto neoliberal e dos ajustes estruturais, impostos às nações, pela cúpula que hoje domina o mundo, capitaneada pelosEstados Unidos. É possível realizar um rastreamento e estabelecer nexos entre os ajustes estruturais, as exigências ao Estado, que passa a ser mínimo, privatizante, e o papel que é atribuído às denominadas “organizações da sociedade civil”, “parceiras” que substituem paulatinamente as responsabilidades do Estado . Os trabalhos que estamos produzindo no mestrado em Educação da UFPE, no Núcleo de Prática Pedagógica e Política Educacional, permitem reconhecer o que aqui afirmamos. A tese de doutorado do Lino Castellani, defendida recentemente, em fevereiro de 1999, também apresenta dados reveladores. Podemos ler mais no livro organizado pelo CBCE sobre a LDB e os PCNs. Mas precisamos nos reportar ao clássico "Programa de Ghota”, de Marx, para reconhecer o que fazer perante o novo ordenamento legal e retomar a tarefa – “a lição que o povo tem que dar ao Estado”. Não tenho esperança no que os arautos do governo defendem em relação à nova lei – “ tirar o máximo proveito de uma lei, aproveitar os pontos positivos da lei”. A raiz desta lei apodrece o seus frutos. Defendo a revogação e a retomada dos projetos de lei dos movimentos sociais de resistência. O Fórum Nacional em defesa da Escola Pública é um exemplo desta possibilidade. A lei tem nexos, em nível de super-estrutura, um modelo hegemônico na infra-estrutura, decorrente da reestruturação produtiva capitalista. Enquanto não compreendermos com radicalidade isto, vamos nos iludir com leis aprovadas em parlamentos onde as forças favoráveis aos interesses da classe trabalhadora são minoria.

PP – Estamos presenciando um importante e salutar momento de disputas teórico-metodológicas e conceituais, de caráter hegemônico, na área de Educação Física & Esportes. Para você, quais as conseqüências concretas que as orientações normativas do Gover-no Federal, via PCNs, trazem para a Educação e Educação Física neste campo de lutas?

CELI – A disputa acirrada no momento é por projetos históricos, um em franca decomposição e outro emergente. Isto se expressa também no âmbito teórico-metodológico. Alerto que elaborações teóricas imprimem fôlego ao capitalismo e prolongam sua sobrevida. Não acredito em produções teóricas que negam, desconhecem, subsumem, ignoram, ocultam os nexos e determinações históricas. Os cientistas, os professores, a ciência e o ato pedagógico não são neutros. Quando não sabemos para onde queremos ir, como remar e navegar corretamente? Quanto às conseqüências concretas das orientações normativas do Governo, podemos reconhecer a consolidação do projeto de formação humana na perspectiva neoliberal, que sustenta o capitalismo, que tem seus mecanismos de reprodução, mediados pela prática pedagógica também na Educação Física & Esportes. Mas isto não ocorre mecanicamente. Existem os consentimentos, os consensos, os aceites. Por outro lado existem também as resistências e esta é outra conseqüência das orientações normativas: o fomento da resistência ativa contra os planos de destruição da educação, pela ampliação das possibilidades de acesso aos bens culturais, entre os quais a Educação Física & Esportes. Isto não se dá fora da luta organizada, luta que se forja no dia-a-dia, mas exige fortalecer a subjetividade humana para tal. As mudanças não ocorrem com base na psicologia dos falidos amedrontados, como bem ressalta Trotsky. Não podemos esquecer que a expressão da subjetividade do mundo do trabalho é a organização de classe, que precisa ser construída de forma ampliada, democrática, combativa. Os organismos que defendem interesses da classe trabalhadora são expressão da subjetividade da classe. A classe existe e luta Não vamos nos iludir, não existe possibilidade de 80% da nossa população acessarem os bens simbólicos e materiais existentes na sociedade e, dentro deles, obviamente está a cultura corporal . O Estado cumpre o seu papel histórico, com as suas leis, de perpetuar este modo de organização da vida na sociedade. Hoje só existe uma possibilidade de a maioria da população acessar a Educação Física & Esportes – enquanto um direito a ser assegurado por políticas públicas conseqüentes, consistentes e realmente referenciadas nas aspirações das massas. Esta é a lógica que confronta a lógica do mercado, onde somente acessam aos bens materiais e espirituais os que têm acesso ao poder econômico e político.

PP - Que papel você indicaria para a escola hoje, se partimos da premissa de que ela deve propiciar a transmissão do saber, a criatividade e a produção de conhecimentos no sentido contribuir para a formação de um homem novo?

CELI -Em primeiro lugar é preciso ser mais preciso, mais exigente na explicitação do “ vir-a-ser”, nos anúncios. Não basta anunciar "um homem novo” – isto os liberais e neoliberais já cansaram de anunciar. Temos que precisar – mas onde vamos encontrar os elementos éticos, científicos e políticos para precisar os conceitos? Justo na luta histórica da classe trabalhadora em busca de sua emancipação/desalienação social, econômica e política. A escola é uma escola de classe. Reproduz, mas não mecanicamente, por mediações e contradições. É ai que devemos atuar, organizadamente, na defesa da escola pública, gratuita, que tenha como princípio educativo o trabalho humano, possibilidade histórica do vir-a-ser humano, como referência filosófica a filosofia da práxis, como projeto histórico o socialismo, ou, como preferem outros,

o projeto histórico superador das relações capitalistas. A escola deve assumir o seu papel de locus privilegiado para a expressão da cultura emancipatória, crítico-superadora, e isto significa materializar o eixo central da escola que é “ampliar a capacidade reflexiva crítica dos alunos acerca da realidade social, contraditória e complexa”. Ou a Educação Física & Esportes, com tudo que lhe é peculiar em termos de conteúdos e formas, contribui para isto ou não se justifica pedagogicamente na escola. Este é o desafio da atualidade para nós professores de Educação Física & Esportes: não mais recorrer a leis para legitimar a prática pedagógica e muito menos “a pensamentos eugenistas e higienistas, ou militaristas”, mas, sim, à legitimidade social, pedagógica.

PP – Neste sentido como a educação física poderia dar a sua contribuição?

CELI – Materializando o eixo central da escola, juntamente com as demais disciplinas e conteúdos curriculares. Em Metodologia do Ensino da Educação Física, encontramos uma possibilidade: não é a única, não é exclusiva, não será a última, mas é uma das melhores sínteses de um tempo, em termos de proposta sistematizada para a Educação Física & Esportes. Estamos ampliando as vivências, as experiências e, em breve, traremos novas possibilidades, alargando o campo de intervenção, para além da escola, considerando os movimentos sociais organizados no meio rural e no meio urbano. Estão surgindo muitas contribuições, tanto nos programas de pós-graduação quanto nos projetos abertos a experiências que estão sendo relatados em eventos científicos de nossa área. O importante é que a Educação Física & Esportes se reconheça como disciplina de conteúdos que trata de atividades corporais, oriundas do âmbito da cultura corporal, enquanto possibilidade de expressão, comunicação, linguagem e, que materializa com os demais componentes curriculares o eixo da escola.

PP – Você acredita que existe uma pedagogia de esquerda na área de educação física brasileira? Identifique quais seriam seus traços marcantes.

CELI – Já existe uma larga e vasta discussão sobre direita e esquerda, Para além da esquerda e da direita, por exemplo, como apresenta o Anthony Giddens, ou como podemos encontrar nas revistas do Instituto de Estudos Socialistas em São Paulo, ou como podemos constatar no interior dos próprios partidos, sindicatos e movimentos organizados. O que constatamos no âmbito educacional é um esgotamento de proposições pedagógicas, principalmente aquelas que têm nexos com o projeto histórico-capitalista. Surgem proposições pedagógicas emergentes com nexos ou no projeto capitalista, buscando dar-lhe fôlego, como, por exemplo, a pedagogia da qualidade total ou as orientações dos PCNs, ou, então, no projeto histórico da classe trabalhadora. Quem defende tais proposições situa-se no campo ou da direita ou das esquerdas, ou seja, no campo dos que defendem o projeto histórico da classe trabalhadora ou o projeto capitalista. No entanto existem esquerdas e esquerdas e isto precisa ficar claro para entendermos as próprias proposições pedagógicas emergentes. A esquerda comporta um espectro amplo de posições e proposições. Temos uma esquerda que busca as estratégias possíveis nas condições objetivas colocadas e existe outra que busca as possibilidades estratégicas. A primeira não tem clareza se quer mudar o capitalismo, busca humanizá-lo; a outra se reconhece na luta de classe com a tarefa histórica de desencadear as possibilidades estratégicas para romper com o modo capitalista de produzir e reproduzir a vida. A Educação Física & Esportes joga um papel estratégico na reprodução ou não. As proposições pedagógicas, elaboradas pela esquerda confusa, estão esgotadas, o que exige uma nova elaboração teórica, que nasce da prática interveniente e que se alimenta, por sua vez, da teoria construída nesta relação. Os traços marcantes de uma pedagogia da esquerda identificada com o projeto da classe trabalhadora, com a construção do socialismo são a busca de possibilidades estratégicas para romper com o modo capitalista. E isto se expressa no plano teórico-prático da Educação Física & Esportes, se expressa concretamente na direção que assume a formação humana. Isto pode ser cientificamente comprovado em cada trabalho produzido. Isto não é mistério invendável. Vamos olhar as proposições explicativas e propositivas para a área de Educação Física & Esportes, sejam elas com base na saúde, história, antropologia, fisiologia, pedagogia, sociologia, ou outras, e podemos reconhecer o que se acenta no idealismo filosófico, ou no materialismo histórico-dialético. É uma questão relacionada à teoria do conhecimento – como se apreende a realidade e sua construção. Vamos para uma aula de Educação Física observar como se dá o processo de trabalho pedagógico e aí podemos desvelar os nexos. Vamos à produção do conhecimento, vamos à formação acadêmica, vamos às politicas públicas. O que carateriza uma proposição pedagógica da esquerda: o projeto histórico socialista, a filosofia marxista – filosofia da práxis, a matriz cientifica, materialista, histórica e dialética, a pedagogia da emancipação humana, social, econômica, política. Qualquer projeto pedagógico, ou elaboração pedagógica apresenta estes elementos, nexos com um projeto histórico, com uma filosofia, com uma matriz científica, com um projeto de escolarização com um projeto político-pedagógico que se materializa no currículo e no processo de trabalho pedagógico. Com isto podemos olhar todas as contribuições pedagógicas hoje circulando no Brasil e nos perguntar – a que esquerda pertence esta produção emergente? A esquerda que busca o possível e com ele se contenta ou a esquerda que busca possibilidades estratégicas?

PP – Admitindo, por um lado, que cultura corporal é um termo muito amplo podendo significar generalidades e, por outro lado, que a educação centralizada no movimento humano representa procedi-mentos restritos e de natureza eminentemente técnica e descontextualizada, perguntamos: como um professor deveria formular ou selecionar (de forma objetiva) os conteúdos dentro de uma pedagogia de esquerda?

CELI – Em primeiro lugar, reconhecendo-se no coletivo em suas reivindicações, reconhecendo os elementos estruturantes do trabalho pedagógico, os nexos com o projeto histórico-superador, com o trabalho coletivo, produtivo, democrático, aberto, transparente, crítico, reconhecendo a contemporaneidade dos saberes, dos conhecimentos e da ciência

– a relevância social para o coletivo e suas possibilidades cognitivas, reconhecendo a espiralidade do processo ensino-aprendizagem no contexto de vida dos sujeitos, dos desafios colocados para cada um e para o coletivo. Enfim, o conteúdo deve ser submetido ao critério da relevância social, ou seja, deve ser socialmente referenciado, na perspectiva da emancipação humana – social, política, econômica. A pergunta a ser formulada criticamente é sobre a contribuição de um dado conteúdo na materialização do eixo curricular, na possibilidade de ampliar a capacidade reflexiva e crítica dos alunos, para sistematizar dados, explicar, compreender, avaliar, propor, construir, acerca da cultura corporal, que constitui a realidade social contraditória e complexa.

PP - A escola capitalista estrutura-se a partir das determinações e da lógica deste sistema de produção social. Em sua perspectiva, qual e como seria a organização do trabalho pedagógico que poderia contrapor e consolidar uma pedagogia de esquerda?

CELI – Em primeiro lugar a crítica à atual organização do processo de trabalho pedagógico. Isto é fundamental para superar a visão equivocada de que as mudanças na escola estariam expressas em mudanças nos métodos, na didática, nos equipamentos, nos conteúdos, nos fundamentos idealísticos. Em segundo, a compreensão dos nexos e das relações existentes entre o trabalho pedagógico e o trabalho, em geral, na sociedade. As alterações e as mudanças têm relações com o que está acontecendo com a classe trabalhadora em geral. A flexibilização do trabalho, a reestruturação produtiva não param na porta da escola, penetram nela. Não vamos mudar nada se não entendermos este processo. Como se expressa no interior da escola, por mediações e contradições, o processo de reestruturação produtiva? E aí está o hegemônico penetrando na escola. A qualidade total é uma forma de gerenciamento científico do trabalho também pedagógico. Esta é a pedagogia do capital, a pedagogia da produtividade capitalista. Mas reconhecemos o contraponto também, e aí estão, em condições adversas, as experiências e vivências na perspectiva da materialização do trabalho, como o princípio educativo, as experiências interdisciplinares, as construções coletivas, a auto-organização do coletivo de estudantes, os currículos organizados em projetos, abertos a interfaces com a comunidade, respeitando a cultura local, o trabalho pedagógico crítico, criativo, valorizado, bem remunerado, em condições objetivas favoráveis, com conquistas resultantes da organização e da luta coletiva, entre outras. Condições objetivas de trabalho, carreira, salários, seguridade social, formação inicial e continuada consistente, projetos e programas superadores são indicadores de alterações no processo de trabalho pedagógico.

PP – Compreendendo que os conhecimentos da Educação Física escolar integram e decorrem dos conhecimentos oriundos da educação e do meio sócio-cultural, como poderemos tratar destes conhecimentos em nossa ação educativa na escola?

CELI – Defendo que a construção da teoria se dá como categorias da prática e com categorias da prática. Isto significa apreender o movimento do geral, do particular e do singular. Esta responsabilidade pedagógica não se dá de graça, aprende-se e apreende-se, com e dos processos pedagógicos sistemáticos, em ambientes educativos. O “x” da questão não é como tratar destes conhecimentos, mas, sim, como conhecer. Como apreender o concreto no pensado? Como superar as meras representações da realidade? Como meros sujeitos passivos, ou como sujeitos históricos ativos, intervenientes? Kosik permite uma ampliação desta perspectiva em seu livro A dialética do concreto (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976). A mera transmissão de conhecimentos decorre desta perspectiva de tratar estes conhecimentos, produzidos por outros e não da produção do conhecimento. Temos que nos apropriar dos meios e do produto deste processo, o processo de conhecer. O domínio dos meios de produção do conhecimento nas mãos de poucos leva a isto. Uns produzem (bacharéis) ou outros ensinam (licenciados). Sou contra esta divisão desqulificadora do trabalho e do trabalhador profissional de Educação Física & Esportes. Este crime de desqualificação, será julgado no século XXI. Da mesma forma isto está expresso no âmbito da intervenção profissional. Uns transmitem informações, conhecimentos; outros produzem coletivamente novos e significativos conhecimentos, novos sentidos e significados. O que queremos nas nossas aulas?

PP – Para alguns estudiosos, a função da educação básica deve ser a de focalizar a transmissão de conhecimentos (ensino) para o aluno na escola. Você concorda com esta afirmação ou acha que se podem produzir conhecimentos nos vários níveis de escolarização e na própria educação física?

CELI – A questão acima já permitiu responder a esta. Não concordo com esta fragmentação e com esta concepção de transmissão do conhecimento. Esta não é a responsabilidade da escola emancipadora, mas sim da escola alienadora, da escola bancária, como denominava Paulo Freire. Sou pela apropriação dos meios e do produto e isto deve ter início nas aulas na educação infantil, incentivando-se a atitude científica critica, criadora, perante a realidade. As novas tecnologias comunicacionais e informacionais jogam um papel estratégico nesta luta de posse, por isto devem ser amplamente democratizadas nas escolas. Defendemos a expressão corporal em confronto com a linguagem computacional no interior das escolas porque nossas experiências demonstram ampliação nas possibilidades reflexivas críticas dos alunos, ampliação nas possibilidades , competências e proficiências educacionais e sociais.

PP – Você poderia indicar estes procedimentos dentro da Educação Física Escolar?

CELI – Vamos recuperar o objeto de estudo da Educação Física – a expressão corporal como linguagem. A relação que pode ser estabelecida, reconhecida, analisada, avaliada, criada com as crianças e jovens escolares a partir do primeiro ciclo de ensino, é fantástica. Do ponto de vista pedagógico, ocorre tanto a apropriação dos meios, de como se dá tal elaboração de conhecimentos, quanto do saber em si. Que procedimentos são privilegiados nesta abordagem? O processo de problematização, de busca criativa e crítica da construção de possibilidades de ações e atividades corporais, que permita sistematizar dados, explicá-los, ampliá-los recriá-los, transformá-los. Os processos participativos e cooperativos são incentivados, ampliando-se o universo de referências sobre a cultura corporal. Aqui a didática, tanto instrumental (transmissão) quanto fundamental (fundamentos), passa a ser criticada e fomentase a crítica à organização do processo de trabalho pedagógico. Alunos, professores, no trabalho pedagógico, reconhecem-se como detentores de meios e produtos que, quanto mais socializados, mais ampliam as possibilidades de desalienação humana. A auto-alienação induz a fazer sem saber para que, sem se identificar com o que se faz e como se está fazendo. A desalienação exige o domínio dos meios de produção. Isto tanto está colocado no universo dos sujeitos, enquanto indivíduos, nas aulas de Educação Física ( reconhecer crítica e sistematicamente dados da realidade contraditória e complexa, sistematizá-los e confrontar, ampliar e aprofundar saberes, vivências, experiências para a autodeterminação e auto-organização), quanto dos sujeitos políticos, que produzem e estabelecem relações de produção e troca, definindo-se o modo de produzir e reproduzir a vida na sociedade.

Da expressão corporal à linguagem informacio nal/computacional1 existe um universo a ser reconhecido, tratado, considerado, porque alteram relações de produção e de poder. Negar isto às crianças e jovens é negar a possibilidade do vir-a-ser humano omnilateral, em um mundo que definirá um novo processo civilizatório, uma vez que o capitalismo, enquanto processo civilizatório, esgotou suas possibilidades. Não apresenta saída para a humanidade.2 Travamos este diálogo crítico com o trabalho de Pierre Lèvy, especialmente em seu texto “As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática”,3 bem como com Vani Moreira Kenski, em seu estudo “Novas tecnologias: o redimensionamento do espaço e do tempo e os impactos no trabalho docente”.4 Estes textos estimulam nossas contestações e incentivam a superação de proposições explicativas e propositivas. Vivenciamos no computacional. Revista de Extensão (Recife), UFPE, 1999. [no prelo]. 2 MÉSZÁROS, István. Ir além do capital. In: COGGIOLLA, Oswaldo. Globalizaçào e socialismo. São Paulo: Xamã, 1997. 3 LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.

Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. 4 KENSKI, Vani Moreira. Novas tecnologias: o redimencionamento do espaço e do tempo e os impactos no trabalho docente. In: Revista Brasileira de Educação. ANPED, Maio, Junho, Julho, Agosto, 1998, n. 8, p. 58-71.

Projeto Expressão o que seriam procedimentos coerentes, compatíveis, para construir novas aprendizagens significativas, em novas situações e novos tempos pedagógicos. As oficinas de ginástica, dança, jogos esportivos e populares, teatro/mímica, musica e computação/informática são o palco de nossas vivências, a partir de onde elaboramos teoricamente e levantamos proposições tanto para a prática pedagógica no meio urbano, em escolas e associações, quanto no meio rural, em movimentos sociais organizados e escolas.

PP – Para fugirmos do espontaneísmo pedagógico e não ficarmos presos ao diretivismo autoritário dos professores com seus alunos – ambas as situações presentes hoje no ensino da Educação Física –, que tipo de relações uma pedagogia de esquerda poderia sugerir à escola e aos seus professores? Você poderia aprofundar melhor as questões interacionais, mediação, relações dialógicas, parcerias no processo de conhecimento da Educação Física escolar?

CELI – Para fugirmos do espontaneísmo ou do diretivismo cego autoritário, ambos alienantes, exigem-se condições sine quo non. Os professores, enquanto sujeitos políticos, que com seu trabalho imprimem direção ao processo de formação humana, materializando um projeto políticopedagógico, um projeto de escolarização, precisam de: a) reconhecer e estabelecer as relações entre a prática pedagógica, o projeto de escolarização, as teorias educacionais e o projeto histórico. Sem reconhecermos nexos internos e determinações históricas deste processo, não compreenderemos o complexo e o contraditório do nosso trabalho pedagógico; b) condições dignas de trabalho, oriundas de políticas sociais/educacionais sérias e responsáveis e não compensatórias, inconseqüentes, inconsistentes e freqüentemente interrompidas por políticas de ajustes que buscam livrar o Estado de suas responsabilidades politicas e sociais para com a maioria da população. c) formação profissional com referência em um padrão unitário de qualidade e com uma consistente base teórica crítica, tanto na formação inicial quanto continuada.

A prática pedagógica cotidiana, na perspectiva aqui indicada, deve estar aliada a uma intervenção política consistente, para além da escola.

Se nos limitarmos estritamente ao espaço institucional em uma perspectiva individualista e individualizada, seremos esmagados e massacrados. Os professores devem se reconhecer como intelectuais orgânicos comprometidos com as reivindicações da classe trabalhadora, a que detém a única mercadoria que imprime valor no que transformar – o trabalho. É pelo trabalho e sua capacidade de relações, mediações que vamos construir alternativas às relações, mediações que consolidam o capitalismo. Considero isto fantástico porque recoloca para cada um de nós a relevância da nossa intervenção. Não podemos ser indiferentes. Esta possibilidade histórica aqui tratada está colocada. Urge reconhecêla como necessidade histórica. Criaremos, assim, as condições objetivas para que a possibilidade se converta em realidade.

Quanto à questão internacional, não podemos deixar de nos reconhecermos em relações internacionais, também de classe. O problema da Educação Física & Esportes, enquanto bem cultural, direito e imperativo ético da humanidade,que deve ser para todos, é uma questão afeta à luta internacional dos trabalhadores por seus interesses de classe.

Quanto às parcerias, é uma estratégia da política de ajustes para repassar à “sociedade civil” o que é de responsabilidade da sociedade política..

Com as condições acima referenciadas nos três itens seremos capazes de responder aos desafios do trabalho pedagógico.

PP – Um professor engajado numa pedagogia de esquerda, ao lidar com a perspectiva da interdisciplinaridade dos conhecimentos, deve apontar para que tipo de ação metodológica no ambiente escolar?

CELI – Para a alteração das relações de trabalho pedagógico, para o diálogo critico, construtivo, produtivo, persistente, para a socialização, para a avaliação crítica, produtiva, para a construção coletiva, para a interface, para as experiências abertas, para as inter-relações, para a posse e apropriação dos meios, para a permanência e possibilidade de trabalhar em uma só escola, para um salário digno, condições de trabalho dignas, para um tempo pedagógico e político maior para as inúmeras tarefas decorrentes da mudança nas relações, tanto interpessoais quanto de trabalho, entre outros.

PP – Numa pedagogia de esquerda deve ser avaliado o quê e quem?

CELI – Não existe ação humana sem avaliação, a questão é que rumos esta avaliação pode e deve tomar, dependendo do projeto histórico em jogo. Temos que avaliar tudo e não só o aluno para classificá-lo, incluílo, excluí-lo, eliminá-lo. A escola como um todo deve ser constantemente avaliada em seu projeto de formação humana, o trabalho pedagógico deve ser avaliado, as políticas públicas devem ser avaliadas, o processo ensino-aprendizagem, enfim, o coletivo político que constrói o projeto político-pedagógico da escola. Temos que ser competentes e superar urgentemente a avaliação criminosa que se faz na escola. E, para completar, a política atual usa a avalição como instrumento ideológico de controle político. Urge entendermos isto e reconceptualizar a avaliação na escola. Este é um ponto determinante na direção das mudanças pedagógicas na escola. A avaliação é central na organização do trabalho pedagógico e merece toda a nossa atenção. Ela é indicadora dos rumos que o processo de formação humana está tomando. É um elemento central no trabalho pedagógico porque é altamente ideológico e materializador das funções da escola capitalista: eliminar, excluir, porque a escola é de classes.

PP – Todos nós sabemos que a formação profissional, de uma forma geral, e a Educação Física, de forma particular, vinculam-se aos interesses restritos do mercado de trabalho. Então perguntamos: como construir uma formação que fuja destas determinações no sentido de garantir a formação de um educador de esquerda?

CELI – Respondi inicialmente esta questão em um texto de 200 páginas, fruto de meus estudos de pós-doutorado. Analisei a política do governo para a formação na graduação, analisei planos e programas de avaliação institucional, analisei diretrizes propostas para a graduação e identifiquei os íntimos nexos com o projeto capitalista, com os ajustes estruturais, com a reestruturação produtiva, com as reformas, com as idéias hegemônicas veiculadas em nível planetário sobre a “globalização”, termo pósmoderno que oculta o termo original e adequado, imperialismo senil. Creio ser importante transcrever aqui o fruto desta reflexão.

O processo de definição de diretrizes curriculares, sob os auspícios da política do MEC, 5 apresenta-se com características de “assalto às consciências e amoldamento subjetivo”. Os parâmetros desse “assalto” se revelam quando se comparam os processos em andamento, como a proposta neoliberal do governo (Edital nº 04/97, Ofício Circular nº 019/98 GAB/SESu/MEC de 4/3/98), com os processos anteriores de luta da sociedade brasileira pela universidade pública, gratuita e de qualidade, preservados na memória das entidades sociais (Andes-SN, Anped, Anfop, CBCE, Abess6 e outras; conselhos profissionais de saúde, psicologia, serviço social 7, dos códigos de ética profissional8 ), a exemplo do que se segue.

Levantando dados junto a associações envolvidas na elaboração de propostas básicas para projetos de formação profissional, constatamos a necessidade de um tempo pedagógico e político em torno de três a dez anos. Por exemplo: a Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social (Abess) elaborou uma Proposta Básica para o Projeto de Formação Profissional. Submetida à Comissão de Especialistas em Serviço Social da SESu/MEC, foi aprovada em decorrência de grande mobilização, envolvendo 72 unidades de ensino de serviço social, exaustivos debates em uma série de eventos – duzentas oficinas locais, 25 oficinas regionais e duas nacionais –, criando condições para a participação das unidades de ensino na elaboração das novas diretrizes, aprovadas em assembléia com a participação de 80% das unidades de ensino. Isto ocorreu no período de 1994 a 1996, ou seja, três anos e não três meses como exigiu a SESu/MEC9. Para chegar à formulação da Resolução nº 003/87 -CFE, que reordenou a formação do profissional de Educação Física, por exemplo, constatamos aproximadamente dez anos de debates dos profissionais da área (1979 a 1987). Mesmo assim, setores foram excluídos de participar e prevaleceram, hegemonicamente, as concepções sustentadas pelos docentes das instituições paulistas, notadamente da USP, e as concepções defendidas pela Associação de Diretores das Faculdades de Educação Física de São Paulo.10 Regulamentou-se a profissão sem código de ética. Mas esta é uma outra discussão a ser aprofundada em breve.

Tendo como referência, portanto, o que pode ser detectado em documentos já elaborados, destacamos alguns tópicos para aprofundar análises comparativas e reconhecer as profundas e radicais diferenças entre as propostas do governo e as propostas da sociedade brasileira que defende a universidade pública, gratuita e de qualidade social para todos.

As idéias básicas a serem confrontas e questionadas são:

- fundamentação filosófica: o enfoque no perfil, na competência, nas habilidades, no individualismo, na adaptação ao mercado de trabalho versus "objetivos-avaliação na formação humana, profissional, com base nas necessidades da sociedade de transformação social, no mundo do trabalho";11 referências éticas (móvel da conduta humana e profissional):

- o capital, o mercado mundializado, a globalização da economia versus "a luta histórica da classe trabalhadora pela emancipação humana e de classes econômica, social e cultural";

- justificativas:  sintonizar a universidade com uma nova ordem mundial, sintonia com paradigmas do mundo moderno, científicotecnológico versus sintonia com as reivindicações e as aspirações das amplas massas pelas transformações sociais do modo de produção capitalista;

- idéia   de currículo: as proposições para substituir o currículo mínimo versus "currículo espiralado com base no padrão unitário de qualidade que assegure uma produção cultural e científica verdadeiramente criadora e conforme as aspirações da maioria da sociedade brasileira";

• organização do             conhecimento: a organização do conhecimento em disciplinas de forma etapista versus a "organização do conhecimento em ciclos, com critérios relacionados à relevância social";

- concepção de formação: a formação propedêutica/etapista, os cursos seqüenciais, o aligeiramento na formação versus "a formação integralizadora, inicial e continuada, espiralada, totalizante, de conjunto e de aprofundamento, com uma consistente base teórica".

- participação docente: os incentivos à docência através de bolsas e produtividade atrelada à lógica das tarefas e da terceirização do trabalho com retirada de direitos e conquistas trabalhistas versus "conquista democrática, valorizada por reajustes salariais dignos, condições objetivas de trabalho adequadas, plano de carreira e política de capacitação docente";

- concepção       de aprendizagem: a idéia do aluno como ator principal e construtor e as novas tecnologias como elemento revolucionário do processo versus "o aluno e o professor como produtores, consumidores e socializadores do conhecimento científico de relevância social para todos, dominando meios de produção e circulação democrática do saber”;

- compreensão da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão: é no aluno que deve acontecer a indissociabilidade ensinopesquisa versus "indissociabilidade enquanto princípio da organização do trabalho pedagógico e de modelo de universidade";

- concepção de currículo: por disciplinas, extensivo, versus "currículo problematizado intensivo, com base em pesquisas matriciais, com abordagens qualitativas, pesquisa-ação, pesquisaparticipante no currículo";

- concepção       de reforma curricular: revisão da estrutura e da natureza do currículo versus "alterações significativas na organização do processo de trabalho pedagógico e nas relações de poder e comunicação";

- visão de formação: divisão entre formação acadêmica e formação profissional entre bacharéis e licenciandos, entre pesquisadores e aplicadores, com universidades de ensino, de pesquisa e de extensão/serviços versus formação integral - sólida base teórica para intervenções nos campos de trabalho em expansão - pela ampliação do poder aquisitivo - distribuição de renda e por direitos assegurados e dever/responsabilidade do Estado;

- concepção de perfil profissional: formação por perfil desejado (acadêmico e profissional, dicotomizado), com base em competências e habilidades ligadas ao mercado de trabalho versus "formação por objetivos-avaliação, com base em necessidades históricas, de relevância social, relacionadas ao mundo do trabalho capitalista e à perspectiva de sua superação, de acordo com interesses da sociedade brasileira";

- núcleo obrigatório: - definição de percentual máximo comum obrigatório de 50% versus "referência no padrão nacional de qualidade e relevância social";

- tempo de integralização curricular: redução do tempo de formação versus "ampliação da oferta para integralização da formação inicial e continuada, com qualidade social e com recursos/investimentos adequados";

- compreensão de formação crítica: compreensão de espírito crítico restrito a dar e receber crítica – consciência intransitiva – versus "crítica como práxis social transformadora, implicando consciência transitiva crítica";

- concepção de inovação: proposta inovadora/reforma 12 versus "proposta reconceptualizadora/alteração no propósito de trabalho pedagógico";13

- processo de reformas: processo orientado por comissões SESu/MEC (especialistas) e dentro das IES (direções/burocracia), monitoradas por agências financeiras internacionais versus "ampla participação, no tempo pedagógico e político necessário para democratizar experiências e envolver amplas parcelas de interessados nas reconceptualizações curriculares";

- ovo ordenamento legal: aceitação, sem críticas, da nova LDB e do Plano Nacional de Educação, bem como de todas as medidas decorrentes da legislação versus "críticas/revogação da nova LDB e defesa de planos da sociedade civil";14

- custos: estão sendo previstos recursos para comissões realizarem o trabalho de elaboração de diretrizes para responder a prazos fixados por agências financiadoras internacionais versus "proces-so científico permanente instituído nas IES, pela via da avaliação curricular qualitativa e baseada na valorização do magistério superior";

• modelos e padrões de referência: modernização, universidade de serviço, docência e pesquisa de resultados, privatizante e terceirizada versus "trabalho autônomo e autonomia criadora, dimensão pública da pesquisa tanto na sua realização quanto na destinação de resultados.15

Este paralelo inicial indica, tão-somente, que existem proposições que foram construídas por um coletivos de pesquisadores e por entidades da sociedade civil que apresentam elementos para a reconceptualização curricular, para além de meras inovações curriculares, pela via de diretrizes que, na essência, não alteram os pilares do currículo, a saber:

o processo de trabalho pedagógico e as relações de poder e de comunicação.

Urge, portanto, reconhecermos o que são as reivindicações e as possibilidades de reconceptualização do currículo na perspectiva da filosofia da práxis. Nesse sentido, reconhecemos os seguintes indicadores preliminares e básicos para a formação:

• a reconceptualização do currículo pela reconceptualização da prática do processo de trabalho pedagógico, que implica a formação continuada de professores das IES na perspectiva de novas relações do trabalho pedagógico na produção do conhecimento para a formação acadêmica consistente e socialmente relevante e na consideração do plano de carreira e política de capacitação docente;16

• a valorização do trabalho pedagógico como essencial. A valorização da profissionalização, do exercício do magistério superior, reconhecendo-se como essência, historicamente construída, da intervenção profissional, o ato pedagógico no trato com conhecimentos científicos que dão direção ao processo de formação humana;

• a sólida formação teórica com base no trabalho de pesquisa, tendo o trabalho como princípio educativo;

• a construção teórica das áreas como categorias da práxis social;

• a pesquisa como forma de conhecimento e intervenção na realidade contraditória e complexa;

• o trabalho partilhado/coletivo na construção do conhecimento interveniente;

• o trabalho interdisciplinar, construído na base de novas relações de produção;

novas formas de relação/unidade teoria-prática, na base do trato com o conhecimento, na produção do conhecimento;

novas relações entre professores e alunos, de responsabilidades mútuas entre produtores e construtores de conhecimentos e da realidade;

• o trabalho como princípio na concepção de formação inicial e continuada;

• a superação da divisão e fragmentação nas habilitações, entre formação acadêmica e profissional;

• a auto-organização do coletivo, para a autonomia, criatividade e responsabilidade social.

Os indicadores aqui levantados estão referenciados nas demandas/necessidades17 sociais tradicionais, emergentes, imediatas, mediatas e históricas para as intervenções profissionais, à luz do projeto histórico anticapitalista (o projeto histórico-socialista). Podem ser aprofundados na ampla literatura crítica atualmente existente acerca da formação profissional e currículo.

Considerando que “a ciência não é apenas um produto da razão mas um produto da sociedade, que nasce das necessidades da produção material” (Tsygankov 1987:8), nos cabe agora resistir, com posição ideológica clara, o que se expressa em uma vontade coletiva, por uma orientação histórica. Lembrando que, quanto menos resistência, quanto mais apatia e confusão, mais avançam as políticas neoliberais, e que a resistência é legítima, pois expressa a vontade coletiva, construída historicamente pela classe trabalhadora.

NOTAS

* Entrevista concedida ao Prof. Nivaldo Antônio Nogueira David, em 31 de março de 1999.

5 O MEC estabeleceu prazos irrisórios para definição de Diretrizes Curriculares. O Edital de Convite, expedido em 10 de novembro/97, estabeleceu como prazo de apresentação de propostas o dia 2 de março/98, nos quais – dezembro, janeiro e fevereiro – três meses são de recesso escolar, festividades natalinas e de final de ano e de férias docentes.

6 Abess – Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social. Consultar: SESu/MEC-Parecer às Diretrizes para o Curso de Graduação em Serviço Social. E ainda, Abess/Cedepss Proposta Básica para o Projeto de Formação Profissional – novos subsídios para debate. Recife, setembro/96. (mímeo.).

7 Em Of. Circular nº 0099/98, de 24 de março de 1998, o Conselho Federal de Psicologia, na pessoa da conselheira presidente Ana Merces Bahia Bock, dirige-se aos conselhos estaduais questionando as formulações para diretrizes curriculares ao curso de Psicologia apresentadas pela Comissão de Especialistas convocados pela SESu/MEC. Reage conclamando todos a dizer não à Proposta da Comissão de Especialistas do MEC.

8 Para exemplificar, sugerimos o Código de Ética dos Profissionais de Serviço Social, aprovado em 14 de março de 1993 pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS).

9 Por pressão do movimento grevista das Ifes/98, este processo está com o seu prazo comprometido.

10 Estas informações poderão ser exatamente confrontadas com análises sobre a composição da atual Comissão de Especialistas da SESU/MEC/99 e do Conselho Federal de Profissionais de Educação Física. Reconhecemos aí duas predominâncias: a) das universidades do Sul e Sudeste, destacando-se as paulistas e b) os envolvidos com instituições de ensino particulares.

11 O Código de Ética dos Profissionais do Serviço Social com normas e leis firmadas após anos e anos de lutas, é categórico na defesa e garantia dos direitos sociais e políticos da classe trabalhadora, o que se contrapõe às orientações neoliberais que acentuam a retirada de direitos e conquistas das constituições.

12 A inovação pedagógica se transformou num novo modismo, inútil e vazio. A palavra de ordem é inovar sem se perguntar em função de quê e a serviço de quem (Balzan, 1980).

13 Pinar (1979), em seu livro La reconceptualización en los estudios de cu rriculum, apresenta o conceito de reconceptualização como sendo a reação diante do que vinha sendo feito. O enfoque da pesquisa curricular para os reconceptualistas é baseado na teoria marxista; o paradigma curricular é o dinâmico dialógico. Considera que as alterações devem ser de essência e não fenomênicas, e isto implica alterar processos de organização de trabalho, relações de poder e formas de comunicação e linguagem. Um dos principais curriculistas do Brasil é Antônio Flávio Barbosa Moreira. Ver mais a respeito em Moreira e Silva (1995). Os principais curriculistas em um enfoque tradicional são Taba, Taylor e Tyler. Os curricu listas empiristas conceituais influentes no Brasil são Berman e Broudy. Entre os reconceptualistas situam-se: Apple, Giroux, Young e Pinar. O curriculista que assessora o MEC na organização dos Parâmetros Curricu lares Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio é Cesár Coll. Ver Coll (1996).

14 Apesar de representar a proposta da sociedade civil, o Plano Nacional de Educação da Sociedade Civil merece crítica e deve ser reformulado em oito pontos, a saber: 1) a revogação da LDB negociada no Congresso; 2) as idéias de parcerias; 3) as idéias privatizantes; 4) a idéia de políticas compensatórias; 5) as idéias voluntaristas e de cooperação eximindo o Estado de responsabilidades em relação ao déficit educacional e ao analfabetismo; 6) a guerra fiscal,
incentivos fiscais; 7) a reintrodução do ensino de religião de forma disfarçada; 8) os conselhos
tripartites e a municipalização.

15 Ver mais sobre Universidade de Resultados. In: Chauí (1995).

16 Ver capítulo II Do Plano Nacional de Capacitação Docente (PNCD). Proposta do Andes/SN para a universidade brasileira. Caderno 2, do Andes-SN.

17 Necessidade é aqui considerada enquanto uma categoria e representa um grau de desenvolvimento do conhecimento social e da prática. A atividade prática mostra a existência objetiva e real da necessidade. Cheptulin (1982) aborda esse assunto.

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