EDUCAÇÃO FÍSICA E DANÇA: UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
ANA JULIA PINTO PACHECO*
RESUMO
Este trabalho traz uma análise bibliográfica, cujo objetivo é o de depreender como a produção acadêmica brasileira vem abordando a dança na educação física. A partir desta preocupação inicial, foram formulados dois eixos de reflexão que serviram para balizar minha incursão pelos artigos “Marginalidade da dança na escola - causas e encaminhamentos” e “Cultura escolar da dança X incorporação de práticas predominantes.” O corte temporal do estudo abarcou o período compreendido entre 1986 e 1996 e o corpus de análise abrangeu os artigos publicados em dez periódicos da área de educação física. Dentre os aspectos discutidos ao longo deste texto, destacam-se principalmente a dança na formação do/a professor/a de educação física e o sexismo na dança.
PALAVRAS- CHAVE: Educação Física, Dança, Análise Bibliográfica.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Dentre as atitudes e estratégias necessárias para o avanço e consolidação científica de um campo de conhecimento, colocaria em destaque a constante revisão da sua produção coletiva. Esse tipo de abordagem, ao mesmo tempo compilatória, sintetizadora e que pressupõe uma apreciação crítica, mostra-se mais exeqüível através do exame criterioso da parcela de conhecimento que é veiculado sob a forma de publicação.
As análises bibliográficas panorâmicas que pretendem realizar um balanço teórico, por mais minuciosas e rigorosas que consigam ser, sempre arcam com os riscos dos estudos generalizantes. Uma das suas limitações é que invariavelmente são incompletas. E, com o intuito de diminuir prováveis falhas nessa direção, opta-se por um recorte na totalidade do conhecimento acumulado. Não obstante sejam parciais, há pertinência nesse tipo de mobilização, pois viabiliza à comunidade científica uma orientação da produção escrita, possibilita a reflexão sobre os fundamentos filosóficos que, explícita ou implicitamente, vêm embasando o conhecimento na área, oferecendo então a possibilidade de reconsiderar suas determinações epistemológicas, além de poder proporcionar uma melhor compreensão do seu campo auxiliando em seu avanço qualitativo.
Com este trabalho me propus a contribuir para suprir esta necessidade contínua de revisão da produção do conhecimento na Educação Física, restringindo-me a analisar na literatura brasileira como a dança tem sido considerada e refletida, enquanto tematização na Educação Física. A partir desta preocupação inicial, foram formulados dois eixos de reflexão que serviram para balizar minha incursão pelos textos:
Como é tratada a questão da marginalidade da dança nos tempo e espaço escolares? Os textos exploram suas causas e/ou propõem algum tipo de encaminhamento para minimizála?
Há alguma preocupação de produção de uma cultura escolar da dança ou, ao contrário, são incorporadas, simplesmente reproduzidas e/ou acriticamente adaptadas às práticas predominantes na sociedade? A dança é tratada a partir de uma perspectiva idealista ou é uma dança questionada, contextualizada e relacionada com a realidade concreta daqueles que a produziram e produzem?
O corte temporal do estudo abarcou os últimos dez anos completos a partir do início do trabalho de busca e levantamento de material, ou seja, de 1986 até 1996 e o corpus de análise abrangeu os artigos publicados em dez periódicos da área de educação física, que gozam de reconhecimento da comunidade acadêmica e/ou dispõem de circulação significativa entre professores, estudantes e pesquisadores da Educação física/esportes, a saber: Discorpo (n.º2, 1993 até n.º6, 1996), Motrivivência (ano 1, n.º 1, dez, 1988 até ano 8, n.º 9, dez, 1996), Motriz (ano 1, n.º 1, jun., 1995 até ano 2, n.º 2, dez, 1996), Movimento (n.º 1, ano 1, set., 1994 até n.º 5, ano 3, 1996/2), Revista Brasileira de Ciência e Movimento (n.º1, v.2, jan., 1988 até n.º2, v.7, abr., 1993), Revista da Educação Física - UEM (n.º 0, v.1, 1989 até n.º 1, v. 6, 1995), Revista do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (n.º 2, v. 7, jan., 1986 até n.º 1, v. 18, set., 1996), Revista Mineira de Educação Física (n.º1, v.1, ano 1, 1993 até n.º1, v.4, ano 4, 1996), Revista Paulista de Educação Física (n.º1, ano 1, jan., 1986 até v.10, suplemento n.º2, 1996) e Sprint -Revista Técnica de Educação Física e Desportos (n.º1, v.4, ano 5, jan./fev., 1986 até n.º 87, ano 15, nov./dez, 1996).1 As referências dos artigos selecionados são apresentadas no final deste artigo.
2. MARGINALIDADE DA DANÇA NA ESCOLA: CAUSAS E ENCAMINHAMENTOS
Ao tratar do ensino da dança no Brasil, Dionísia Nanni (1995) comenta a vinda de vários artistas estrangeiros durante o século XIX que, no entanto, não fundaram escolas. A autora se limita somente a mencionar o preconceito em relação ao aprendizado da dança, sem desenvolver o assunto: “nossa sociedade, de origem portuguesa, preconceituosa, não veria com bons olhos o ensino da dança a suas filhas burguesas” (p. 8).
O artigo de Maria do Carmo S. Kunz (1994) já manifesta uma insatisfação mais direta e atual relacionada ao processo educativo do ser humano, pois, para autora, “a educação formal tem negligenciado essa disciplina ou conteúdo” (p. 166). No entanto, a autora não elege esta temática como preocupação central de seu texto, limitando-se apenas a enunciá-la.
Maria Luiza de Jesus Miranda (1994) aprofunda essa discussão, apontando como problemas os preconceitos dos professores de educação física para com a dança, bem como o fato destes professores não terem tido formação suficiente que os capacitassem para o ensino da dança. Miranda (1994) apresenta um estudo que investiga os problemas relacionadas à dança em situações de ensino superior, a saber: como conteúdo disciplinar da graduação em Educação Física e como um curso próprio de graduação em dança. Para tal, foram entrevistados professores que atuam em ambas áreas já citadas, mais professores de dança em cursos livres desenvolvidos em academias, estúdios etc. Como conclusão de seu trabalho, destaca que os especialistas em dança consultados apontaram como “inadequado o estudo de Dança, como fenômeno sócio-cultural e como área de conhecimento específico, nos cursos de graduação de Educação Física” (Miranda, 1994, p. 11).
Outras assertivas tecidas pela autora, baseadas nas informações obtidas através do painel de especialistas, igualmente criticam a presença da dança na educação física em função da sua superficialidade e impropriedade no curso, bem como apontam a inviabilidade do estudo da dança neste curso, dadas suas características estruturais, como reduzida carga horária e pouca abrangência e aprofundamento do conteúdo.
No que diz respeito à formação profissional, Miranda (1994) questiona a presença e a validade do estudo da dança na graduação de educação física, já que a preparação dos professores de Educação Física não os qualificaria para o ensino desta. De acordo com a autora, assim se explicaria por que a dança não é incluída nos planos de aula escolares, isto é, por falta de capacitação profissional. A reduzida carga horária destinada ao estudo da dança nos cursos de educação física não proporcionaria conhecimentos e segurança necessários para o seu ensino, o que por outro lado seria satisfatoriamente atingido em um curso superior de dança. Esta explicação parece-me por demais reducionista, só me restando lembrar de outros fatores como, por exemplo, os preconceitos sexistas em relação à dança e o processo de desportivização da educação física.
Apesar de não refutar que existem problemas relacionados ao ensino da dança na Educação Física, não os interpreto como um indicativo de inadequação, no sentido de deslocamento de lugar. Antes os vejo como possibilidade de melhorar a integração e a especificidade da dança dentro da educação física. Entretanto, para que isso se dê, é de fundamental importância o discernimento entre uma abordagem da dança na Educação Física e da dança enquanto objeto específico de formação. Este ponto não pode passar despercebido, pois o painel de especialistas questionado por Miranda (1994, p. 11) considerou que a vivência de dança nos cursos de Educação Física é “insuficiente para denominar-se formação em dança”. Fica a necessidade de um maior esclarecimento do significado dessa inadequação e dos critérios pessoais utilizados pelos especialistas para realizar um juízo crítico da dança no ensino superior. Sem dúvida, o curso de educação física é inapropriado para a formação específica em dança, pois esta é uma questão teleológica. O eixo deveria ser direcionado para verificar se o ensino da dança na Educação Física tem sido satisfatório aos propósitos da educação física e, caso necessário, estabelecer quais medidas seriam possíveis para assim fazê-lo.
Miranda (1994) também argumenta que, quando o ensino da dança ocorre através da educação física, ele se torna uma seqüência de movimentos na qual só é observado o desempenho técnico, o que caracteriza uma abordagem tecnicista do ensino. Temos que concordar que a educação física através de certas instituições e de professores reforçou e reforça uma concepção tecnicista de movimento. Porém, não menos importantes são aqueles que se opõem a este modelo, propondo e trabalhando com e para uma educação física humanista e emancipatória. Eu me arriscaria ainda a dizer que as primeiras preocupações e reflexões sobre a dança como atividade educativa, tendo-se um entendimento de educação que ultrapassa a transmissão simples de conhecimentos, brotaram no seio das escolas de educação física, cujo marco talvez tenha sido o início dos trabalhos de Maria Helena de Sá Earp, em 1939, como professora da Escola Nacional de Educação Física e Desportos. Ou seja, o desencadeamento de uma perspectiva pedagógica/educativa da dança deu-se com a Educação Física e como a própria autora escreve “foi através da Educação Física que a Dança começou a ser estudada em Instituições de Ensino Superior” (Miranda, 1994, p. 3).
A autora ainda sugere “que não é somente por ser Arte que a dança está sendo discriminada, mas também pelo fato de estar no currículo da Educação Física” (p. 8). Considero uma visão simplista e distorcida a que atribui tal ônus àquela que durante décadas foi responsável pelo estímulo e pela permanência da dança na escola, mesmo que exíguo. Em vez de aprofundar o debate, procurando compreender por que a dança vem sendo relegada a planos secundários – o que também ocorre na educação física –, a autora transfere o problema para esta última. Seria mais interessante, em vez de simplesmente descartarmos o problema, se procurássemos entendê-lo e encaminhássemos possíveis soluções para a discriminação da dança e para a marginalidade que a dança vem enfrentando na própria educação física.
Miranda (1994) preserva-se de um posicionamento explícito a respeito das argumentações dos especialistas, contudo, ainda assim empresta ao seu texto uma tônica que flui no sentido de consolidar o curso superior de dança. A síntese de idéias apresentada como conclusão de seu trabalho, a partir das informações emitidas pelo painel de especialistas, mostra claramente a ‘inadequação’ do estudo da dança no curso de educação física, ao mesmo tempo em que denuncia a falta de reconhecimento, incentivo e de investimentos do curso superior de dança. Se esta é uma interpretação possível, haveria ainda uma ligação entre a desqualificação da dança, enquanto conteúdo da educação física, para justificá-la somente no outro curso.
Não se trata de formular uma posição contrária ao estabelecimento da dança em nível superior. Entretanto, não compartilho de uma postura exclusivista do conhecimento, quando proponho exatamente a democratização deste. A dança se constitui em uma rede de conhecimento com particularidades próprias e que dispõe de condições para se legitimar como área de estudo no meio acadêmico brasileiro. Educação física e dança são campos diversos, por certo com muitos cruzamentos e interseções, mas que não se restringem ao âmbito motor, pelo contrário, aspectos culturais e artísticos são incorporados por ambas. Além disso, embora também não seja objeto específico de formação, a dança também é passível de ser abordada em cursos superiores de educação artística, de artes cênicas/teatro e até em outros menos usuais, como comunicação social. A adequação às necessidades e à especificidade de cada curso não descaracteriza a dança, mas amplia as suas possibilidades de interação e atuação.
Dosmary de A. Fogaça Duarte (1995) também recorre ao argumento da deficiência na formação profissional, além dos ‘pré-conceitos’ sociais em relação à prática de dança pelo sexo masculino, para explicar
o número reduzido de educadores que trabalham com dança nas escolas. Todavia, sua abordagem é diferenciada, pois não defende que a dança está ‘deslocada’ dentro da educação física. Ao contrário, reconhece a historicidade da relação entre educação física e dança, afirma que há consistência na permanência desta última na formação em Educação Física, porém entende que é preciso uma avaliação crítica desta graduação no sentido de tentar solucionar os problemas que vêm ocorrendo na prática escolar.
Essa autora, ao tratar da questão do sexismo, aponta para mudanças no comportamento masculino. Isso seria verificado “a partir do momento que o homem observou que existem características em certos tipos de danças que não o fariam sofrer nenhum tipo de degradação da sua masculinidade” (Duarte, 1995, p. 297) e cita como exemplos de dança social o funk, o street dance, o hip-hop. Contudo, faço outra interpretação desse caso. Não considero que os homens estão “liberando-se das amarras do preconceito”, para empregar a mesma expressão utilizada por Duarte; diria que, apesar da dança, as amarras continuam bastante fortes. O fato de os homens dançarem e o rompimento de preconceitos não necessariamente conjugam uma relação de reciprocidade ou de causa-efeito. Existe aí uma extrapolação que pode não proceder; ainda mais, podemos entender a participação dos homens em certas danças exatamente por elas reforçarem os estereótipos masculinos ao invés de representarem uma ruptura destes. A própria autora escreve a respeito dos exemplos de danças citados afirmando que eles são “uma expressão bem clara de masculinidade” (Duarte, 1995, p. 297). Aqui não podemos generalizar a dança. Não obstante, não desconsidero que um trabalho pedagógico através da dança possa começar com movimentos estereotipados, até mesmo para que possamos gradativamente densconstruí-los.
O artigo da Revista Brasileira de Ciência e Movimento (1988)2 busca explicação para o ‘esquecimento’ da dança num processo mais amplo de ‘objetivação do corpo’, fruto de práticas racionais excessivas. Práticas estas acompanhadas de uma “visão comportamentalista, fracionada, que tende aos interesses da ideologia capitalista” (p. 46). No artigo há também uma manifestação contra a retirada da dança do cotidiano do ser humano que “hoje dança apenas quando lhe é ‘permitido’ socialmente. Ele tem que reaprender a dançar e muitos têm dificuldade em função de um preconceito que nada mais é do que um condicionamento cultural” (p. 46). No texto, ainda encontramos ressaltado o pensamento de que os meios de comunicação pasteurizam os princípios culturais, uniformizando o dançar entre outras ações. Como resultado, podemos ter uma dança reprodutora de modismos e que promove um esvaziamento da identidade social e cultural do grupo. Na conclusão do artigo há a indicação de uma escola criadora, na acepção gramsciana, que permita a democratização do saber e do método, que não devem pertencerunicamente ao professor. “É na busca do real que o ensino da dança deve preocupar-se, caso contrário, incorrerá no erro de trabalhar para a alienação” (p. 47). Acrescento a esse pensamento que podemos ter no processo de ‘modismo’ da dança um recurso pedagógico bastante interessante. Comumente denominada e conhecida como ‘pedagogia do conflito’, é possível que aproveitemos as práticas cristalizadas dos alunos como o ponto de partida para questioná-las.
Por fim, o artigo de Fátima C. do Valle Leitão e Iracema Soares de Sousa (1995) traz sua preocupação central dirigida para o sexismo relacionado à dança. De acordo com as autoras, o preconceito que gira em torno do homem que dança tem raízes nos modos conservadores de agir e pensar. As autoras reconhecem que existem diferenças biológicas, “porém, não é por isso que deve haver segregação” (p. 251). Somando-se a isso, ressaltam o papel da escola como sustentadora da discriminação, propagando concepções, “como por exemplo, ‘a menina nasce para bailar, ser dócil, doméstica e o homem para jogar, trabalhar e endurecer’, e ainda ‘...se meu filho for bailarino eu o deserdo’” (p. 250). O artigo aponta a transmissão de estereótipos através de gerações como um fator condicionante de comportamentos diferentes, e até opostos, entre meninos e meninas. Estes padrões são incorporados inicialmente à vida familiar, reforçados pela sociedade e pela escola, inclusive nas aulas de educação física. Contudo, mais importante, é que o artigo assinala a própria educação física como um meio de tentarmos transformar estes modelos estabelecidos e elege a dança como um dos caminhos possíveis.
Por outro lado, Leitão & Sousa (1995) entendem a dança como um modo de ‘suavizar’, ‘sensibilizar’, ‘dar leveza e sutileza’ aos homens. Neste sentido, tenho uma visão diferenciada, pois não vejo a dança associada apenas à delicadeza. Penso que este é outro ponto que também deve ser desmistificado. No entanto, não estou propondo uma ‘virilização’ da dança, recurso que tem sido utilizado para incluir os homens na prática desta atividade, e que nada mais faz do que dissimular os preconceitos referentes à sexualidade das pessoas. Explicando melhor, a dança deve aproveitar várias possibilidades dinâmicas do movimento (o delicado e o bruto, o forte e o fraco, o leve e o pesado, entre outras), mas de modo a rompermos com associações e estigmas sexistas e homofóbicos. Não se trata de suavizar homens ou de embrutecer mulheres, porém de explorar ambas as situações independentemente do sexo e da orientação sexual da pessoa.
A dança nas aulas de educação física pode contribuir para que acabemos com concepções fechadas e restritas de masculinidade/feminilidade, bem como para que respeitemos as opções individuais. Este ponto seria fundamental para resgatarmos essa atividade no convívio escolar. Porém, para que isto aconteça, a dança tem que primeiro ser efetivamente incorporada à escola e à educação física. Isto é, apesar de poder ser um dos meios para a superação de manifestações sexistas, este não é um objetivo exclusivo da dança, sendo pertinentes a discussão e as ações conjuntas daqueles envolvidos no cotidiano escolar e familiar.
CULTURA ESCOLAR DA DANÇA VERSUS INCORPORAÇÃO DE PRÁTICAS PREDOMINANTES
De que dança estamos falando? Qual é o papel da dança na escola?
A dança engloba sentidos bem mais amplos e complexos do que aprender uma coreografia ou decorar e executar uma seqüência de movimentos. A ‘dança pela dança’, no mínimo, é uma postura ingênua, pois toda dança comporta valores culturais, sociais e pessoais situados historicamente. Ignorar essas questões faz da dança uma repetição mecânica dos gestos, por mais agradáveis e belos que estes possam nos parecer. A utilização de outros aportes cognitivos que nos permitam melhor compreender o fenômeno dança (fisiologia, história, biomecânica, filosofia etc.) e o desenvolvimento de consciência crítica e reflexiva é que trazem significado ao dançar e ao fazer dança.
Neste sentido, muitas críticas têm sido feitas ao tecnicismo, ou seja, à valorização da boa execução técnica como um fim em si mesma. Ao mesmo tempo, propõe-se o movimento expressivo e criativo (Andrade et al, 1994; Coelho, 1987; Kunz, 1994; Lima, 1993; Miranda, 1994; Nanni, 1989, 1995; Porto, 1992; RBCM, 1988).
Se levarmos em consideração a estreita ligação entre forma/conteúdo ou método/conteúdo, podemos nos arriscar a dizer que, PACHECO, A. J. P. Educação Física e dança: uma análise bibliográfica se mudamos nosso modo de trabalho com a dança, estaríamos modificando também nossa concepção do que é dançar. Contudo, a consciência de que uma proposta de trabalho comporta um modo de perceber e ser no mundo nem sempre parece acompanhar a opção por um outro modo de conduzir o processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, tem-se uma visão apologética da criatividade, muitas vezes sendo considerada um imperativo, sem que haja uma reflexão mais aprofundada de sua importância e necessidade. O estímulo à criatividade, a utilização de diversos materiais, a exploração de inúmeras possibilidades de movimento, as novas maneiras de se organizar o antigo, o esforço pelo inédito rompimento com os códigos aceitos devem estar imbuídos de um sentido.
A criatividade pode ser teleológica, mas se pretendemos que nestas mudanças haja uma perspectiva de alteração profunda dos significados, um legítimo ato criativo que questiona o existente, uma aposta num novo, num novo revolucionário, há que haver o cuidado para não estarmos trocando simplesmente uns códigos por outros, que dissimulariam a continuidade às representações postas. Se assim for, podemos correr o risco de trocar o tecnicismo por outro ‘ismo’ vazio, o ‘criativismo’.
Cecília F. P. de Andrade et al (1994), Maria do Carmos Saraiva Kunz (1994), Nanni (1989, 1995), RBCM (1988) parecem nos mostrar argumentações alusivas aos processos criativos baseadas na autonomia dos indivíduos que se reconhecem enquanto sujeitos históricos, dentro de uma coletividade, que exercem sua capacidade de construir e transformar a realidade. Enquanto isso, Helena Coelho (1987), Maristela Moura Silva Lima (1993) e Eliane Tereza Rozante Porto (1992) parecem nos apresentar abordagens da criatividade isoladas em si mesmas.
Além de destacar o processo criativo, Porto (1992), recorre aos fundamentos desenvolvimentistas da aprendizagem motora, como os propostos por Tani & Kokobun e Gallahue (citados pela autora). Reconheço a necessidade deste tipo de conhecimento, entretanto não posso deixar de colocar uma ressalva a esta abordagem. Não compartilho das posições que justificam a atividade física mediante sua influência nodesenvolvimento cognitivo. É a máxima “mens sana in corpore sano”, que traz implícita uma visão dualista de ser humano e ainda a subordinação do corpo à mente.
Devemos buscar argumentos outros que legitimem a prática de atividades físicas, que reconheçam que o ser humano é mais que ter um corpo, é ser um corpo. Temos que superar o discurso de que “toda criança que recebe estímulos para atingir um pleno desenvolvimento motor, automaticamente também está recebendo estímulos para um bom desenvolvimento cognitivo” (Porto, 1992, p. 38). Da mesma forma, devemos refletir se são suficientes objetivos extrínsecos para orientar o ensino da dança como, por exemplo, “um efeito restaurador e de limpeza do corpo” (Lima, 1993, p. 16), dançar para livrarmo-nos do estresse, da agressividade, dançar apenas por diversão ou ainda por simples modismo.
Catia Mary Volp et al (1995) dedicam seu artigo à dança de salão, no entanto, ao proporem a dança de salão como atividade curricular, não nos mostram claramente se haveria uma filtragem crítica na incorporação deste conteúdo na escola. Dois pontos se sobressaíram no seu artigo e, por isto, é pertinente que sejam feitos alguns comentários: um se refere aos ritmos típicos dessa modalidade reconhecidos pelo British Council of Ballroom Dance; outro está relacionado à especificidade da dança de salão, cujo ensino “abrange um conteúdo técnico e um conteúdo referente à etiqueta social” (Volp et al, 1995, p. 53).
Primeiro, como foi mencionado e referendado pelo próprio artigo, este Conselho estrangeiro inclui o samba, a única manifestação brasileira no total das doze apresentadas. Esta é uma posição internacional do referido Conselho, mas não há uma maior identificação com a nossa realidade, com a nossa concretude histórica, por isso penso que seria interessante acrescentarmos outras danças/ritmos, como o forró, o pagode, a lambada, o xote, o carimbó a dois, entre outras.
Segundo, do conteúdo técnico e da etiqueta social, destaco a condução. Condução significa os procedimentos pelos quais homem conduz/dirige a mulher durante a evolução dos passos dancísticos. Se considerarmos que os gestos, e portanto a dança, inseridos em uma cultura revelam valores, códigos, sentidos, uma interpretação do significado simbólico da condução pode ser feita. A condução reflete uma construção social, traços de uma herança cultural com bases patriarcais e sexistas. O homem deve dirigir, a mulher o acompanha: ao pai, aos irmãos e depois ao marido. A sociedade vem mudando muito o seu modo de ver a mulher, mas algumas normas já estão tão enraizadas que passam por ‘naturais’. Quando raramente se questiona a condução masculina, a resposta é conformista: ‘a dança de salão é assim’. São precisamente os gestos e atitudes cristalizados que devem se tornar alvo de nossos questionamentos. Portanto, todos que de algum modo estão envolvidos com o ensino da dança deveriam refletir sobre os significados dos passos, movimentos e atitudes dancísticos, mas não como algo que está posto, algo ‘natural’, e sim como algo construído e passível de ser reconstruído. Se a escola reproduz as estruturas predominantes da sociedade de pensar sua corporeidade, as atividades físicas e a dança, a própria escola pode tornar-se um espaço de resistência, de transformação e de superação de manifestações discriminatórias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Empreendi esta revisão bibliográfica assumindo uma função problematizadora e, longe de realizar um balanço isento, à minha leitura está atrelado um modo de entender a educação física e sua relação com a dança. Por isso, considero que muito têm a contribuir, para a dinâmica de renovação de conhecimentos relativos à educação física e à dança, autoras e autores que trazem uma visão crítica destas áreas. Andrade et al (1994), Kunz, (1994), Leitão & Sousa (1995), Nanni (1989, 1995) e RBCM, (1988), além de um entendimento de que as realizações humanas são inseparáveis de suas dimensões sociais, culturais e históricas, pensam o ensino da dança comprometido com a realidade de seu grupo, questionam a exploração comercial e pretendem um mundo mais fraterno, igualitário e justo.
No material analisado, apenas um artigo aborda superficialmente as danças folclóricas/populares brasileiras (Souza, 1991), pois seu intuito é o de retomar e resgatar a dança africana primitiva. Além disso, os textos que trataram especificamente de uma abordagem técnico-científica (Ramos et al, 1995; Pereira & Matsudo, 1987a; Pereira & Matsudo, 1987b) fizeram-no somente a partir da fisiologia e para o alto nível de desempenho físico. O estudo sobre a dança, a partir de outras áreas científicas, pode indicar possibilidades futuras de reflexão e pesquisa para aqueles que pretendem ampliar/aprofundar as fronteiras do conhecimento sobre a dança e também sobre seu ensino.
Os pontos mais marcantes a respeito da marginalidade da dança na escola foram a formação inadequada do professor de Educação Física e o sexismo. Entretanto, os artigos que abordaram esse preconceito permaneceram mais no campo da denúncia. Apontaria para a necessidade de redirecionamento da dança na educação física, principalmente no tocante às ações voltadas para a superação de manifestações sexistas. Para que mudanças nesse sentido sejam possíveis e se efetivem, é necessário que nos preocupemos com os caminhos do ensino da dança na escola, na Educação Física, bem como para que exploremos alguns dos aspectos relacionados à dança já mencionados e aos quais pouca atenção foi destinada na produção teórica investigada.
Quanto aos estilos de dança que flutuam em função da moda, proporia uma atitude de constante filtragem crítica. Se, por um lado, se exige uma discussão no campo da educação física, a fim de desenvolver a dança nesse espaço disciplinar, por outro lado, a dança existe como uma prática cultural externa à escola. Nessa relação encontram-se aproximações, distanciamentos, ambigüidades e tensões que se localizam no intercâmbio mais direto entre a escola e a sociedade. Compartilho da idéia de que a escola possa produzir uma cultura corporal de movimento, o que não significa ficar alheia ao mundo para além de seus muros. Em outras palavras: em vez de a escola reproduzir as práticas corporais da sociedade, ela deve realizar uma transposição didática que também trabalhe as práticas corporais já consolidadas, sem as absorver simplesmente, mas estabelecendo uma relação de fluxo e refluxo (Vago, 1996).
Neste sentido, há que se ultrapassar as fronteiras do ‘balé das formas’ puramente estéticas e entender o compromisso da dança na escola com uma comunicação significativa, que vai além da expressão da natureza ou dos sentimentos humanos. Uma comunicação que pretenda ‘liberdade’ de expressão corporal, um movimento emancipatório, uma comunicação que se efetive no reconhecimento do indivíduo como sujeito no processo de construção e transformação da realidade e que, sobretudo, negue a exploração do homem/mulher pelo(a) homem/mulher. Assim,
o ato de criação estética, ou seja, a invenção de novas finalidades, a concepção e a realização de novas formas de vida, é o modelo de ato político no sentido mais nobre do termo, ou seja, ato revolucionário de desprendimento das rotinas da ordem estabelecida, de seus “valores”, de suas rígidas hierarquias, esforço para conceber um novo e mais justo projeto de civilização (...) e uma cultura que criem as condições nas quais cada homem possa vir a tornar-se um homem, isto é, um criador, um poeta. (Garaudy, 1980, p. 182).
E acrescento: um(a) dançarino(a).
ABSTRACT
This work brings a bibliographic analysis that aims to gather how the academic brazilian production of physical education has been dealing with dance issues. There were formulated two directions to guide my incursion in the articles: “Dance apart of school – causes and perspectives; Dance from school X predominant practices assimilation”. The period studied was from 1986 until 1996 and articles from ten physical education periodics there analysed. Between the aspects discoursed through the text, these ones deserve to be detached: dance in the physical education, teachers graduation and sexism in dance.
KEY- WORDS: Physical Education; Dance; Bibliographic Analysis.
NOTAS
* Professora da Escola Rachide Glória Saker, Fundação Municipal de Educação – Niterói / Rio de Janeiro, Professora da Escola Pinto Lima, Secretaria do Estado de Educação – Rio de Janeiro.
Não foram encontrados para a consulta os seguintes números: Discorpo, n.º1, 1992; e Revista Brasileira de Ciência e Movimento, vol. 6, n.º 1, jan., 1992.
Não há identificação do nome do autor deste artigo, portanto sua referência será feita a partir do nome do periódico: Revista Brasileira de Ciência e Movimento (RBCM).
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