A EDUCAÇÃO FÍSICA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO PERMANENTE DA POLÍTICA CURRICULAR

Márcia Rejane Vieira Guimarães*

RESUMO

O referido estudo busca compreender como a Educação Física se constitui componente curricular, na hierarquia dos saberes, das séries iniciais de uma escola da rede municipal de Pelotas (RS), após o processo de discussão e construção do Projeto Político-Pedagógico, do Plano de Estudos e do Regimento Escolar. É uma pesquisa qualitativa, cuja conclusão é a de que a escola, por meio de seus agentes, transforma, reorganiza e modifica as políticas oficiais e também as não-oficiais. A escola encaminha suas políticas de acordo com sua visão de educação; por isso, o processo de construção e implementação de políticas curriculares em seu âmbito não é fixo e fechado, mas envolvido em constantes relações de poder.

PALAVRAS-CHAVE: currículo – Educação Física – séries iniciais – hierarquia de saberes

UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

Este artigo apresenta parte da discussão e das conclusões de minha dissertação de Mestrado intitulada A Educação Física no currículo das séries iniciais: um espaço de disputas e conquistas, concluída em dezembro de 2006, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Pelotas/RS. Tal pesquisa teve como objetivo geral compreender como a Educação Física se constitui como componente curricular, na hierarquia dos saberes, das séries iniciais de uma escola da rede municipal de Pelotas, após o processo de discussão e construção do Projeto Político-Pedagógico (PPP), do Plano de Estudos e do Regimento Escolar, ocorrido durante o período pós-LDB/96.

Meu interesse por estudar a Educação Física nas séries iniciais veio de minha trajetória como professora da rede municipal de ensino de Pelotas/RS, desde 1992, e da atuação como supervisora pedagógica da área de Educação Física Escolar na gestão da Secretaria Municipal da Educação 2001/2004. Na supervisão pedagógica, minhas inquietações como professora se multiplicaram à medida que fui conhecendo, pautada na fala dos professores da rede e nas visitas para acompanhar estágios probatórios, a realidade das escolas nesse nível de atendimento e suas diferentes maneiras de pensar e encaminhar as políticas curriculares.

A escola em que realizei esse estudo foi escolhida com base em critérios previamente elaborados com o intuito de encontrar sujeitos que vivenciaram o processo de discussão e construção do Projeto Político-Pedagógico, do Regimento Escolar e do Plano de Estudos. Tive interesse em saber que lugar a Educação Física ocupou nesse processo – entendê-lo melhor por dentro da escola, ouvindo os envolvidos, observando os diferentes contextos e analisando a produção textual dos documentos.

Utilizei a técnica de coleta de dados, por intermédio das observações da rotina pedagógica e administrativa, realizando registros e conversando informalmente; análise documental do Projeto Político-Pedagógico, do Plano de Estudos e do Regimento Escolar; e entrevistas semi-estruturadas com a professora de Educação Física das séries iniciais, que para fins de citação escolheu ser chamada de “Sol”, com a Coordenadora Pedagógica, “Estrela”, e com a Diretora, “Lua”. Também para fins de citação, intitulei a escola de “Movimento”.

Evidencio a seguir alguns aspectos que devem ser sublinhados sobre o trabalho de campo dessa pesquisa. Faço tal destaque pela importância, segundo minha percepção, da forma como a política curricular é construída nessa instituição investigada e por ser o foco de interesse deste artigo.

A pesquisa de campo foi muito valiosa e como professora de Educação Física das séries iniciais que sou, aprendi bastante, não só com a prática da professora observada, mas com os encaminhamentos político-pedagógicos que presenciei nas reuniões e no estudo dos documentos oficiais da escola.

Os sujeitos da escola “Movimento” me acolheram numa relação de muita afetividade e transparência. Fui literalmente incluída no grupo e devo confessar que, principalmente nas reuniões pedagógicas, vivi momentos inusitados. Em algumas ocasiões de minhas observações tive muita vontade de falar, contribuir, interagir de forma mais efetiva com o grupo.  Como professora que trata quase o tempo todo com o movimento humano, até meu corpo tinha necessidade de se comunicar, desde a respiração até um olhar de concordância. Eu estava ciente de que meu papel ali, naquele momento, não era de intervenção, e fiz o possível para não interferir. Hoje percebo que a convivência silenciosa me beneficiou muito, pois pude escutar e, a cada fala, refletir sobre o pensamento do outro. Voltava, assim, para casa, com um turbilhão de idéias em conflito e em confronto e a cada dia no campo de pesquisa mais curiosa e com vontade de estudar mais sobre a realidade que para mim se apresentava. Ou seja, o processo da política curricular oficial de uma escola em permanente construção.

A seguir, uma síntese dos achados referentes à análise documental e às observações das reuniões pedagógicas, detendo-me no processo de discussão e construção das políticas curriculares da escola pesquisada.

OS ENCAMINHAMENTOS DA POLÍTICA PEDAGÓGICA DA ESCOLA "MOVIMENTO": DOS DOCUMENTOS ÀS REUNIÕES PEDAGÓGICAS

Dentro da realidade que encontrei vou começar destacando os documentos por mim analisados. Antes da entrada no campo de pesquisa fiz a leitura do PPP, do Plano de Estudos e do Regimento Escolar, enfim, dos documentos oficiais da escola. Essa ação me deu muitas pistas sobre o seu funcionamento e sobre o processo de elaboração dos documentos, impulsionando-me a aprofundar estudos sobre políticas curriculares.

As leituras que fiz (BALL, 1994; BERNSTEIN, 1996; 1998; DESTRO, 2003; LOPES, 2004, 2005; OLIVEIRA, 2005; VEIGA, 1995, 2003, entre outros.) e o que li nos documentos oficiais da escola me fizeram ponderar que ela pode ser considerada como agente na produção de suas políticas. Por mais que tenhamos leis e pareceres de políticas oficiais, sejam elas de esfera Federal, Estadual ou Municipal, que tentam cercear e pré-determinar as políticas de ensino, os encaminhamentos político-pedagógicos e a organização curricular das instituições, isso não pode ser generalizado nem tampouco entendido como um caminho seguido cegamente pelas instituições escolares.

O tempo que passei dentro dessa escola e estudando seus documentos me permite afirmar que há uma reinterpretação feita pelos seus agentes no que se refere às políticas oficiais, o que Bernstein (1996 e 1998) desenvolveu em seus estudos a partir do conceito de recontextualização. Ou seja, a escola, por meio de seus agentes, transforma, reorganiza e modifica as políticas oficiais e também as não-oficiais. Por intermédio de textos e documentos refocaliza e ressignifica as políticas de acordo com sua visão de educação.

Percebi também, nas observações das reuniões pedagógicas¹, que existem lideranças dentro da escola à frente desse processo que acreditam e impulsionam o grupo para que se sintam sujeitos e protagonistas na construção de suas políticas e de suas ações pedagógicas. São lideranças legítimas que estão na escola há muitos anos e hoje, em sua maioria, na equipe diretiva. Pessoas que, segundo os dados da pesquisa, possuem uma caminhada de estudos e compromisso com uma educação democrática e humanizadora. Uma educação para a cidadania.

O resultado dessa postura das lideranças da escola aparece no texto dos documentos estudados e nas reuniões pedagógicas em que se percebe, por intermédio de seus agentes, uma valorização dos espaços de discussão, por mim interpretados como espaços de disputa e de relações de poder, nos quais as pessoas, por meio do discurso e da prática, estão produzindo uma política curricular em que parece não existir uma hierarquia consolidada. Diferentemente disso, os saberes são colocados à prova. Ou seja, nos espaços de discussão da escola os agentes precisam se expor e disputar espaço, aliar-se, ceder e conceder para, no final, garantir ou não legitimidade às suas propostas.

A estratégia usada nas reuniões pedagógicas que presenciei foi cada professor apresentar para o coletivo de professores, por área de atuação, seu planejamento, ou seja, o que estava trabalhando, como estava trabalhando os conteúdos e porque escolheu esses conteúdos. Essa apresentação e discussão começou pela área das Humanas com a Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Arte, Educação Física, Música, entre outros. Posso afirmar que na construção dos documentos dessa escola a forma de organização do currículo, os procedimentos, os métodos e as técnicas não são elementos neutros, colocados ali por acaso. Eles têm produzido o que é válido e o que é legítimo e a “abertura das gavetas”, com seus conhecimentos e saberes, está criando um clima de instabilidade, ou seja, todos estão à prova, tendo que se justificar para sustentar seu espaço ou até mesmo com base nessa disputa perder ou conquistar um maior espaço no currículo.

A saída do isolamento rompe com o silêncio do discurso, que muitas vezes fortalece a divisão, o distanciamento e a especialização de certos saberes. Como escreve Bernstein, “em outras palavras, é o silêncio que transporta a mensagem de poder” (1996, p.21). E, “quanto mais forte o isolamento entre as categorias, mais forte será a fronteira entre uma categoria e a outra [...]. Assim o grau de isolamento é um regulador crucial das relações entre categorias e da especialidade de suas vozes” (1990, p. 42).  Esse silêncio, em minha opinião, está sendo rompido no atual formato de reuniões que discutem e constroem as políticas curriculares da escola “Movimento”.

Nesse processo, os componentes curriculares que historicamente são considerados de menor importância no currículo estão, com o rompimento da hierarquia do tempo escolar, tendo uma oportunidade de reverter essa situação, de conquistar território e uma melhor condição no currículo. A construção permanente do Plano de Estudos apresenta como resultado, principalmente nas séries iniciais, a introdução de diferentes componentes curriculares, quebrando um pouco aquela tradicional hierarquia, na qual a maior carga horária é para Português e Matemática. Por exemplo, a 4ª série possui, como distribuição de carga horária, um Núcleo Geral (Matemática, Português, Ciências, Religião e Estudos Sociais) com 11h/a, ministrado pela professora titular; os componentes curriculares ministrados pelos ditos professores especialistas (Educação Física, Educação Musical, Ensino da Arte, Língua Espanhola e Filosofia) possuem 9h/a. Isto evidencia uma carga horária distribuída de forma mais igualitária, sem um maior tempo para determinados componentes curriculares em detrimento de outros.

A equipe pedagógica da escola expressa, em suas falas, orgulho dessa mudança. Considera um avanço a introdução de diferentes componentes curriculares, ministrados por especialistas, no currículo das séries iniciais. A Coordenadora “Estrela” relata:

...a gente colocou nas séries iniciais e de 5ª série outras disciplinas, como a Filosofia, a Sociologia, a Língua Estrangeira, o Espanhol, que começou como projeto, a gente começou a colocar, Música. A cada ano a gente foi regimentando essas disciplinas, dentro dos Planos de Estudos também, a gente foi arrumando, vendo o que a escola podia estar proporcionando para essa comunidade. Então aos poucos nós fomos construindo isso, muito com a participação e o comprometimento de professores, de funcionários, isso tem que se deixar bem claro, e dos pais que se faziam muito presentes dentro da escola.

E conclui sua fala sobre o Plano de Estudo dizendo:

Esse Plano de Estudos que temos hoje, essa grade, muitas coisas foram tiradas de discussões. Tivemos muitos momentos para discutir o regimento, momentos para discutir o PPP, os planos de estudo, então muitas coisas se tirou dessas discussões. O que realmente era relevante, ou o que realmente se precisava pra avançar.

A Diretora “Lua” destaca que muitos componentes curriculares foram introduzidos no currículo inicialmente por meio de projetos; depois, pela pressão da comunidade, passaram a integrar o horário normal como disciplinas do currículo. Foi o caso do Espanhol e da Filosofia.

Esse é o exemplo de como a escola vem tentando, nos seus espaços de discussão, inovar e tratar de forma menos desigual os tempos escolares e a respectiva divisão entre os saberes escolares. No entanto, como relatarei a seguir, esse ainda é um processo de conflitos e lutas no espaço curricular.

CURRÍCULO DAS SÉRIES INICIAIS: A CONQUISTA DE UM ESPAÇO PELA EDUCAÇÃO FÍSICA

O foco principal de minha dissertação de mestrado foi compreender como a Educação Física vem se constituindo como componente curricular, na hierarquia dos saberes, no currículo das séries iniciais, a partir da construção dos documentos oficiais da escola “Movimento”.  No decorrer da pesquisa percebi que sua trajetória nas séries iniciais foi sendo construída a partir do final da década de 80, quando iniciou no município de Pelotas a política de inserir professores especialistas de Arte e Educação Física nas séries iniciais – uma política que possibilitou que os alunos de pré-escola até 4ª série não fossem atendidos, como na maior parte das redes de ensino, apenas pela professora titular, normalmente formada em Magistério e/ou Pedagogia.

Meus estudos indicaram que, na constituição da Educação Física enquanto componente curricular dessa escola, ela passou de uma condição marginal, utilitária, até chegar a uma condição de destaque no currículo das séries iniciais. Assumiu nessa caminhada a condição de “folguista²” do currículo, de organizadora de festas e torneios, de socializadora das relações, até chegar, por meio da atuação da professora “Sol” e de diferentes agentes sociais, a melhorar consideravelmente seu status. A professora “Sol” articulou seu planejamento com o PPP da escola; destacou a importância da Educação Física; aliou-se às lideranças da escola e às professoras titulares, conquistando espaço e melhores condições de trabalho no currículo e legitimando sua prática pedagógica nas séries iniciais. Não desconsiderando a participação das outras professoras de Educação Física que passaram pela escola “Movimento”, concluí que a atuação da professora “Sol” foi a mais determinante para que a Educação Física alcançasse uma posição de destaque no currículo das séries iniciais. O fato de ela ter conquistado, por meio de seu trabalho, a confiança das lideranças da escola, do quadro de professores e, aos poucos, uma maior carga horária para estar na escola foi, em minha opinião, um passo importante para a consolidação da Educação Física como um componente curricular de destaque na escola. Esse contexto permitiu a circulação da professora por todos os turnos da instituição, agregando aliados e, por intermédio do discurso assumido nos espaços de discussão e construção dos documentos, conquistando espaço e status no currículo da escola. A conquista de horário para projetos extra-classe (dança, voleibol, futebol e handebol) e a manutenção e ampliação dos mesmos ao longo dos anos; uma melhor organização e distribuição dos horários no currículo, rompendo com a condição de folguista; e a conquista de melhores condições de espaço e estrutura de trabalho, são os principais exemplos do status conquistado pela Educação Física no currículo da escola “Movimento”.

É possível afirmar que aos poucos a Educação Física, com seu discurso, foi desconstruindo alguns conceitos trazidos pelo grupo de professores da escola dando uma nova identidade a esse componente curricular, assim como legitimando sua prática pedagógica nas séries iniciais. Nesse processo, meus estudos evidenciam que uma das estratégias da professora “Sol” foi buscar sempre uma articulação de seu trabalho com o PPP da escola e uma possível parceria com as professoras titulares das turmas de séries iniciais. Ela, na legitimação de sua prática pedagógica, não seguiu receitas nem listas de conteúdos, ou seja, recontextualizou, reinterpretou os textos ditos oficiais e criou, tanto no contexto do texto como no contexto da prática, baseada em suas expectativas e vivências, a Educação Física que entendeu estar de acordo com aquela comunidade escolar e com aquele nível de atendimento.

Alguns limites puderam ser observados no que se refere à integração do trabalho entre as professoras titulares e a professora “Sol” no contexto da prática. No entanto, em relação à Educação Física, mesmo não havendo, naquele  momento, horários e dias fixos para a integração com as professoras titulares no sentido de discutir conteúdos específicos e estratégias, elas já alicerçaram um repertório de atividades, objetivos e estratégias comuns que dão, de certa forma, uma sintonia entre seus fazeres pedagógicos.

Outro exemplo da posição de destaque ocupada pela Educação Física nas séries iniciais pode ser obtido através da comparação feita pelas entrevistadas entre esse e outros componentes curriculares como Filosofia, Espanhol e Música que foram, a partir do ano de 2000, sendo inseridos no currículo das séries iniciais, ministrados, assim como a Educação Física, por especialistas. Como exemplo, observemos o que diz a coordenadora “Estrela”:

A Educação Física como eu disse já conquistou o espaço dela na escola pelo fato do comprometimento dos profissionais e pela proposta, que é bem clara e por estar dentro da proposta do PPP, principalmente. E essas que estão chegando, que estão sendo introduzidas agora, principalmente das humanas, Filosofia, Música. A gente entende que poderiam dar muito mais, mas que acabam pecando em um dado momento, por não ter claro ainda esse processo, não se dar conta que dentro da nossa escola não tem essa hierarquia gritante, uma ter carga horária maior que a outra. Eles não se dão por conta que a gente está valorizando, que há um espaço a ser ocupado e que não está sendo ocupado. Os profissionais não perceberam ainda que não só a Matemática, não só a Língua Portuguesa, a Ciência, não só a História, a Geografia, que são disciplinas que historicamente são consideradas as disciplinas ditas importantes, que a questão da Música da Arte, da Filosofia, que elas também têm um papel na formação e que contribuem tanto quanto as outras.

Nas observações das reuniões pedagógicas também percebi algumas diferenças da posição ocupada pela Educação Física no currículo em relação aos demais componentes curriculares ministrados por especialistas. Uma delas é que a professora de Educação Física está perfeitamente integrada ao grupo de professores; em suas 40h/a de trabalho circula diariamente pelos três turnos de funcionamento da escola e participa de todas as reuniões pedagógicas, o que não ocorre com outros professores especialistas, que às vezes cumprem sua carga horária na escola em dois, no máximo três turnos semanais e nem sempre se fazem presentes nas reuniões. Inclusive em uma das reuniões as professoras titulares reclamavam que muitos especialistas não compareciam a conselhos de classe e isso dificultava a construção dos pareceres de avaliação dos alunos.

Outra diferença é quanto ao discurso assumido pela Educação Física na escola. Nas reuniões em que os professores apresentaram seu planejamento para o grande grupo, a disciplina, representada por duas professoras da escola, manteve um discurso articulado defendendo seus propósitos e apresentando seus objetivos e metodologias de trabalho de forma coerente e articulada com o PPP da escola. Já com determinados especialistas isso não ocorreu, até mesmo no discurso de diferentes professores de uma mesma área parecia não haver uma idéia articulada. Tais observações também foram feitas pela coordenadora “Estrela”:

A Música mesmo eu vejo que tem uma gama de coisas para trabalhar, para explorar que eu atualmente eu não percebo isso. A Filosofia, o pensar, eu vejo que esses profissionais ainda estão muito ligados à questão acadêmica, ainda não chegaram na escola, não sentiram a escola como deveriam, não perceberam a escola. Então eu vejo que eles ainda têm uma grande caminhada, têm muita discussão. Isso eu pude perceber na fala dos colegas quando apresentaram suas propostas pedagógicas para o grande grupo nas reuniões, eu vejo que eles ainda têm que caminhar muito. E acho que ainda não conseguiram, estão muito fora da realidade da escola, desse contexto escolar. E a Educação Física aqui dentro da nossa escola conseguiu ocupar o espaço dela.

Esse depoimento deixa evidente que a posição ocupada pelos componentes curriculares ministrados por especialistas nas séries iniciais é uma posição instável e que está sendo negociada e disputada. Nesse processo, com exceção da Arte e da Educação Física, que já possuem uma caminhada, todas as outras vão ter que achar seus próprios caminhos de legitimidade, não só na articulação do discurso, mas na ação da prática pedagógica nos diferentes níveis de atendimento da escola. É uma forma nova de organizar o currículo e a posição dos componentes curriculares quanto a território e status não está dada como algo definitivo.

A diretora “Lua” corrobora essa idéia, comparando a Educação Física e a Arte com os demais componentes curriculares ministrados por especialistas nas séries iniciais:

A Educação Física, ela e Arte foram as primeiras que entraram, se solidificaram com o trabalho e foram respeitadas por isso. Não houve discussão para que isso fosse diminuído. Nós tivemos a diminuição de carga horária este ano da Língua Estrangeira e da Filosofia, por um aspecto bem forte assim, justamente até de formação dos professores para essas disciplinas em séries iniciais, é muito complicado tu conseguir profissionais que trabalhem em séries iniciais com disciplinas, muito difícil.  Tu consegues gente de 5ª a 8ª e de ensino médio e ensino infantil e as séries iniciais é complicadíssimo.

A fala da diretora evidencia que além de conquistar território nas séries iniciais, os especialistas precisam entender melhor as características e singularidades desse nível de atendimento, por ser um trabalho com crianças e exigir um novo olhar por parte da formação nos cursos de graduação, que parecem não haver despertado para essa realidade e demanda. Acredito que não perceberam que a esfera de atuação não é mais somente no ensino médio e no ensino fundamental, que está aberta, em certas escolas, uma nova possibilidade e que esta deve ser levada em conta o mais rápido possível, sob pena de, por meio de experiências frustradas, se perder esse espaço, se é que ele está mesmo sendo pretendido por essas áreas.

Os dados da pesquisa demonstraram que a Educação Física está bem mais consolidada no currículo das séries iniciais e em uma posição de maior destaque e status em relação a outros componentes e que a atitude da escola de romper com a tradicional hierarquia, na qual componentes curriculares como Português e Matemática ficavam com o maior tempo escolar, possibilitou que outros se habilitassem a ocupar maior espaço. Esse fato ainda tem causado muito conflito, pois o rompimento dessa tradição ainda parece assustar algumas áreas que, historicamente, se sentiam menosprezadas no currículo e parecem não se sentir prontas para lutar pela reversão dessa situação.

Esse estudo, portanto, indica que o currículo não possui uma seleção natural de conteúdos no qual aqueles tradicionais saberes considerados como superiores desfrutam de uma melhor posição e melhores condições de trabalho. No caso da escola estudada há espaços para disputas e não há uma hierarquia consolidada. Pelo contrário, a tradicional hierarquia está sendo rompida e o componente curricular Educação Física, muitas vezes considerado sem status no tradicional currículo, está conseguindo reverter tal situação.

Nesse sentido, acredito, portanto, que as reflexões acerca do currículo enquanto produção singular da instituição escola podem nos levar a pensar que falar de currículo é falar de disputas, conflitos, contradições e espaço no qual nada está definitivamente determinado. Sendo assim, no caso da escola “Movimento”, é uma tarefa para os componentes curriculares historicamente colocados em posição inferior iniciarem, por meio de seus agentes, suas próprias lutas para reverter essa situação; e para lideranças e professores seguirem investindo no processo de discussão do currículo no sentido de pensar um formato que rompa com a hierarquia e ao mesmo tempo aproxime práticas e saberes: para que os fins de uma proposta mais integradora de currículo, perseguidos por essa escola, sejam alcançados, o contexto da prática deve perseguir a organização do trabalho coletivo e integrado. Como afirma Santomé (1998, p. 29), “um corpo docente que pesquise e trabalhe em equipe é algo consubstancial a este modelo de currículo”.

Para nós, professores da área da Educação Física das séries iniciais, fica a indicação de que temos uma luta diária a ser travada. Parece-me que essa luta é muito particular de cada comunidade escolar, mas partindo do pressuposto de que o currículo é um espaço de lutas, conflitos, alianças e também de possíveis inovações, portanto um espaço que pode romper com tradições, precisamos estar constantemente refletindo sobre a posição desejada por nós para a Educação Física.

A política da rede Municipal de Pelotas permite e incentiva a inserção do professor especialista nas series iniciais. Como este é um espaço que representa a maior demanda para a Educação Física – já que as séries iniciais em Pelotas representam o maior nível de atendimento da rede – não podemos deixar de refletir criticamente sobre o papel da Educação Física nesse espaço.

Cada realidade escolar possui suas peculiaridades. Assim, acredito que essa é uma luta de cunho local e, principalmente, uma luta que deve levar em consideração o PPP da escola e a visão que queremos que a Educação Física assuma nesse contexto. Receitas e generalizações não servem, mas uma visão do global em termos de políticas curriculares e estudos feitos na área da Educação Física pode servir como base de reflexão para que a produção de novas experiências com base no local permita, quem sabe, que a presença da Educação Física nas séries iniciais se constitua numa história de sucesso.

NOTA

*Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (2006).

¹Observei as reuniões pedagógicas de maio a julho de 2006. Elas aconteceram todas as segundas-feiras a partir das17h30 e tiveram como dinâmica principal a discussão pedagógica permanente do plano de estudo. Um espaço aberto para disputas curriculares.

²Folguista: termo utilizado para identificar algumas professoras de Arte e Educação Física da rede municipal que, em alguns casos, na organização dos horários escolares nas séries iniciais atendiam os alunos no mesmo dia e de forma concentrada para que as professoras titulares das turmas não comparecessem na escola nesse dia, caracterizando, assim, sua presença como o dia de folga da professora titular.

THE PHYSICAL EDUCATION IN THE PROCESS OF PERMANENT CONSTRUCION OF CURRICULUM POLITICS

ABSTRACT

This study aims at understanding how physical education becomes a syllabus component in the knowledge hierarchy of initial schooling in a public municipal primary school in the city of Pelotas (RS), after the process of discussion and building of the school’s political-pedagogical project has taken place. This qualitative research work has concluded that the school, through its agents, transforms, reorganizes and changes official and non-official policies. The school conducts school policies according to their particular view of education; thus, the building and implementing of syllabus policies within the school is not a static and closed process, as it is involved in a constant power relationship.

KEYWORDS: syllabus – physical education – initial education– knowledge hierarchy

LA EDUCACIÓN FÍSICA EN EL PROCESSO DE LA CONSTRUCCIÓN PERMANENTE DE LA POLÍTICA CURRICULARL

RESUMEN

El estudio busca comprender comprender cómo la Educación Física se constituye curricular, jerarquía de los saberes, de los grados iniciales de una escuela de la red municipal en la ciudad de Pelotas (RS), tras el proceso de discusión y construcción del Proyecto Político-Pedagógico del Plan de Estudios y Normas Escolares. Es una investigación cualitativa y se concluye que es la escuela, que por medio de sus agentes transforma, reorganiza y modifica las políticas oficiales. La escuela dirige sus políticas de acuerdo con su visión de educación; por eso, el proceso del la construcción e implementación de políticas curriculares en su ámbito no fijo es cerrado, mas implicado en constantes relaciones de poder.

PALABRAS-CLAVES: currículum – Educación Física – grados iniciales – jerarquía de los saberes

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 03/08/2007

Aprovado em: 07/05/2008

Contato: marciaguimaraes@cresce.net.

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