FUTEBOL NO SUL: HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO E RESISTÊNCIA ÉTNICA
JOSÉ LUIZ DOS ANJOS *
RESUMO
Este estudo propõe abordar e analisar, à luz dos conceitos antropológicos, as relações sociais ocorridas sobre o tema futebol, com o intuito de ampliar as discussões que permitam novos olhares para os fenômenos sociais futebolísticos. O escopo deste estudo é o futebol na Região Sul, mais precisamente no Rio Grande do Sul, onde, desde as décadas iniciais do século XX, é possível identificar o futebol criando e promovendo relações na Capital e no interior do Estado. Esse recorte se limita às “associações de futebol”, cuja fonte são documentos e estudos de autores da historiografia de Porto Alegre que tratam do tema.
PALAVRAS-CHAVE: futebol – associações de futebol – Tesourinha – representação social
INTRODUÇÃO
A maioria dos estudos e da produção bibliográfica acerca do futebol concentra suas incursões nos fatos procedentes do eixo Rio-São Paulo, analisando a formação de clubes de futebol ainda em evidência no cenário esportivo/futebolístico. Sem contestar tais estudos e análises, fizemos opção por uma mudança de cenário. Procuramos realizar um breve recorte, tendo como escopo o futebol na Região Sul, mais precisamente no Rio Grande do Sul, onde, desde as décadas iniciais do século XX, é possível identificar o futebol criando e promovendo relações na Capital e no interior do Estado. Nesse mesmo espaço, o recorte se limita às “associações de futebol”, até então pouco analisadas, tendo como fontes as historiografias urbanas e o futebol do Sul.
Nesse sentido, o estudo aborda a formação das “associações de futebol” e as relações sociais que permitiram configurar um cenário de múltiplas distinções sociais. A ampliação das novas relações sociais nas cidades, do início do século XX, fez com que muitas levas de migrantes se apropriassem de novos estilos de vida, que marcaram distinções e possibilitaram a criação de novos valores. Nesse processo, podiam-se identificar muitos de seus regionalismos, de suas culturas e de suas resistências culturais, enfim, do cotidiano popular que fora transplantado para a vida urbana. Também o futebol, de maneira muito clara, foi palco desse cenário e constituiu instrumento para manutenção dos valores e das relações sociais.
A literatura atual pertinente ao futebol trata das relações ocorridas nos grandes clubes das metrópoles brasileiras. Para os nossos objetivos, que não contemplam uma discussão exaustiva de todos os aspectos, devemos procurar entender como foram tratados e vistos alguns fenômenos sociais e culturais e como se deu sua transposição para o futebol. As considerações, nesse sentido, procuram estabelecer relações com o início da popularidade do futebol no Brasil, tendo o começo do século XX como foco de análise. Trataremos da entrada dos grupos populares no futebol, detendo-nos em duas regiões, geograficamente diferentes, mas com similaridades sociais semelhantes às da Capital, Porto Alegre, e às do interior, lugares onde ocorreu o mesmo fenômeno histórico. Assim, delimitado o nosso objetivo, elegemos dois momentos que, embora semelhantes, apresentam características distintas.
No primeiro momento, levantamos um conjunto de fontes bibliográficas que, embora não discutam o futebol, apontam para uma interpretação acerca do tema, convergindo na direção dos objetivos. São principalmente os trabalhos de Pesavento (1991, 1996), Corrêa (1991) e Santos (1991a e 1991b), autores que tratam da comunidade negra na vida urbana de Porto Alegre, no início do século XX. Para analisar o futebol, apoiamo-nos em Endler (1984) e Jesus (1998), que tratam do futebol no Rio Grande do Sul. Endler (1984) discute as relações sociais e culturais nesse contexto, ao passo que Jesus propõe um estudo aberto das relações sociais, tendo o espaço geográfico da cidade de Porto Alegre como base de sua análise.
No segundo momento, trataremos de um fenômeno isolado, embora no contexto do futebol possa ser generalizado. Discutiremos a passagem de Tesourinha pelo futebol do Sul, onde a reação social em frente à descontinuidade da tradição clubística nos fornece elementos para refletir acerca de fenômenos sociais e étnicos que vêm ocorrendo atualmente, no cenário do futebol brasileiro e internacional.
O FUTEBOL NO RIO GRANDE DO SUL NO INÍCIO DO SÉCULO XX
É comum imaginar que a Região Sul – onde hoje se encontra uma grande parcela da etnia branca do País, a ponto de se poder afirmar que o Sul representa a civilização européia no Brasil – não tem, em sua história ou literatura, destaque para a inserção do negro. Contudo, é na urbanidade que se dão os embates, com diferentes interesses e necessidades de grupos que se revezam ou se tornam hegemônicos na sociedade. Esses mesmos espaços amalgamam as “culturas” dominadas e as dominantes, que criam ou configuram novas interpretações, recortam e se apropriam de outras “culturas”, fazendo surgir novos contornos e valores. É no espaço urbano que ocorre a formação de novas “culturas”, que, na simbiose dos recortes, passam a ser aceitas tanto por dominantes como por dominados.
Fazendo valer uma observação antropológica, entendemos por espaço não somente uma forma física, mas a construção resultante da atuação de diferentes forças sociais, que determinam a evolução de uma sociedade em cada momento histórico e constituem o campo de evidências por excelência das práticas culturais. Na cidade, a fricção e o entrecruzamento dos vários interesses, estilos de vida, formas de produção, consumo e práticas culturais acirram essa disputa, fazendo dela (cidade) uma construção multidimensional, um artefato singular em que, nas apropriações culturais, parece não haver vencidos e vencedores.
A rua, a casa, a habitação e os locais de lazer são os espaços de transformação da cidade. No caso brasileiro, esses espaços refl etiram as mudanças urbanas do novo século (XX), plenos de atores sociais criadores de novas ambiências. Segundo Pesavento (1991), na virada do século XIX para o século XX, o efeito civilizador europeu fez-se presente nas políticas governamentais dos Estados do Sul. Em Rua, caminho do progresso, Pesavento (1996) refere-se às políticas governamentais do Sul como a instalação da ordem burguesa, segundo a qual o caminho da modernidade passava pela adequação a padrões desejados. É justamente nesse ciclo de modernização que cresce o antagônico, o excludente. O efeito excludente torna-se eficaz na medida em que nega espaço à população pobre, nessa concepção de mundo. Nessa negação, o espaço urbano foi reorganizado, privilegiando espaços e marginalizando os que, na resistência, se aglutinaram em cantões, verdadeiros focos de resistências contra a “ordem”, em frente da dominação e violência que se impunham contra essa população exclusivamente pobre e negra (SANTOS, 1991b).
Pesavento articula suas argumentações, destacando que o Estado, aliando-se ao
discurso higienista, que se articulava a uma política moralizadora, as vivências e territórios dos pobres são tematizadas como focos da criminalidade [...]. Desterritorializados do centro em função da política saneadora que acompanha o crescimento urbano, os pobres são ‘varridos’ para as zonas mais afastadas [...]. As áreas para onde migram estas populações pobres progressivamente passam a conviver com o impacto desse imaginário urbano. São também elas espaços de controle e focos de tensão social para onde os poderes constituídos devem exercer a sua vigilância (PESAVENTO, 1991, p. 58).
Por sua vez, Santos acompanha essa mesma reflexão:
Porto Alegre é testemunha de como a mobilidade, para os negros, não é social, mas sim espacial. Onde as famílias negras são obrigadas a se mudar de lugares sem estrutura, para outros em pior estado. A liberdade, em finais do século XIX, jogou-os nas proximidades do Parque Redenção. A urbanização lançou-os ao Alto Petrópolis, mais especificamente ao bairro Mont’Serrat, que (mais tarde) se tornou reduto da alta burguesia porto-alegrense, fazendo com que os negros se dirigissem a vários outros lugares (SANTOS, 1991a, p. 113).
A origem dos novos territórios étnicos, segundo Jesus (1998), tem relação direta com a exclusão da camada pobre e negra de Porto Alegre da nova economia industrial. Excluído do trabalho e dos espaços urbanos, o negro, em Porto Alegre, ocupa os cinturões em volta da “cidade branca”, constituindo grandes guetos, onde as práticas religiosas afro-brasileiras sofreram intensa discriminação e perseguição pelo Estado (PESAVENTO, 1991). Certamente, a situação descrita por esses autores não é excepcional na realidade do Sul. A perseguição ou discriminação ocorreu em diversos cantos do País, como sugere Silva (1996, p. 92), para quem “até poucas décadas atrás os adeptos das religiões afro-brasileiras, sofriam uma forte discriminação social, muitas vezes somada à violência policial”.
Dessa forma, na ebulição de ocupação do espaço urbano, cria-se uma antítese: de um lado, a racionalidade urbana discursando em favor de um comportamento ético ou moral em face ao desenvolvimento urbano, de idéias européias; de outro, a luta das massas periféricas pela continuidade de valores, práticas e significados divergentes da “nova ordem” – o que nos sugere reflexões sobre a luta entre o mágico e o racional, entre o sagrado e o profano, enfim, sobre o cenário dos grandes centros populacionais brasileiros nos anos iniciais do século XX.
Valente (1976) aponta a construção de práticas sociais que diversos grupos construíram para manterem seus valores, sua cultura, enfim, seu campo simbólico intacto às investidas da nova ordem social. O autor conduz as diversas análises no campo antropológico para explicar esse fenômeno de relações sociais. Para escapar da perseguição exercida pelo Estado, a técnica mais utilizada pelos grupos que não faziam parte da “nova ordem” urbana foi a do disfarce, resultando não em conflito, mas em acomodação. A literatura nos aponta muitas outras construções sociais em que, na luta de preservação do campo simbólico, outras práticas foram constituídas para vencer no terreno social. Aqui recorremos a Mauss (2003), quando o antropólogo diz que a sociedade, ela própria sanciona atos especiais; os grupos se protegem pelos efeitos necessários resultantes de seu universo simbólico.
Essa proteção levou às mais diversas relações, no sentido de preservação e conservação de tradições e de manter vivo o campo simbólico, que, resguardado pela memória coletiva, garantiria a continuidade de se entender como sujeito de suas práticas ritualísticas. Assim, danças, futebol e rituais religiosos foram disfarçados na luta de preservação de um campo simbólico.
Buscando nas danças, nos cânticos e, aqui, no futebol, os diversos grupos negros souberam lidar com o disfarce, por meio de seus gestos, suas crenças. Isso permitiu que determinadas culturas, ainda no mundo contemporâneo, suscitassem plasticidades peculiares e rituais que apontam sua gênese ontológica, permitindo a inserção de certas práticas expressadas tradicionalmente. Um exemplo desse disfarce é que, no Sul, os grupos negros não precisaram se despojar absolutamente de seus costumes tradicionais, nem romper com suas tradições. Éuma sobrevivência das lutas étnicas e culturais. É curiosa essa luta pela sobrevivência, pois, no futebol, tornou-se uma simbiose enraizada e já não é possível separar o que é do campo da invocação do ritual pré-jogo de futebol ou da invocação afro como forma de manifestar e expressar disfarçadamente uma crença, uma cultura.
Assim, a tentativa de supressão cultural de determinados grupos em Porto Alegre, no início do século XX, a qual discutiremos, merece atenção devido à complexidade que possui. Estende-se, de certa forma, uma profundidade nas discussões que debatem duas categorias da Antropologia: a aculturação e a acomodação, fenômenos culturais existentes nas relações entre os diversos grupos étnicos, nas trocas das relações, no decorrer da história brasileira, segundo Ferretti (1999). Servimo-nos de exemplos para entendermos as diversas lutas ocorridas no campo simbólico, como no caso das “associações” de futebol e blocos carnavalescos. Lazzaroto (1978, p. 107), em sua obra História do Rio Grande do Sul, deixa-nos pistas da simbiose entre o carnaval e a religiosidade nesse Estado. Revela que o carnaval é a reprodução do ritmo, ritos e tradições das antigas festas de guerra ou de culto de tribos africanas. “As associações de carnaval, pela organização, são análogas aos nossos terreiros, que se constituem em lugares de culto, um tanto sincretizados”. Em estudos (anos 2002 e 2003), no Sul, propusemos, uma vez identificada essa hipótese, pesquisar as origens dos blocos carnavalescos. Hipoteticamente, traçando paralelos históricos, podemos fazer menções de que, no início do século XX, há uma estreita relação entre blocos carnavalescos, associações de maracatus e times de futebol popular.
Nas duas décadas iniciais do século XX, havia um significativo número de clubes, mas suas ações não se limitavam ao futebol. Percebe-se o clube como resultado da aglutinação social ou da resistência étnica, independente de classe ou status social. Tanto brancos estrangeiros como negros descendentes de escravos constituíam clubes e associações, para resguardar valores, como classe social ou grupo étnico. Referindo-se ao contexto porto-alegrense, Endler (1984) faz menção à formação das associações de futebol nos espaços existentes entre os redutos da massa operária e dos bairros privilegiados pelo Poder Público. Também Corrêa (1991) nos possibilita refletir sobre a resistência de tais grupos e bolsões étnicos, por meio de suas associações, disfarçadas de grupos carnavalescos, “escondendo” os terreiros, locais de cultos afros. Por fim, Jesus (1998) nos aponta os caminhos para encontrar a peça que completa o quadro, quando assinala que é desses locais que saem os negros em direção à várzea do “Caminho do Meio”, do “Campo do Bom Fim” ou da “Volta do Cordeiro”, para praticarem o futebol.
Aqui reside o fundamento que aponta os objetivos deste estudo. Analisando jornais e a historiografia de Porto Alegre, constatamos que é justamente das sedes dos clubes carnavalescos que surgiram os times de futebol que, por sua vez, poderiam ser identificados como possível local de práticas afro-religiosas. Percebe-se, dessa forma, que o futebol serviu de disfarce para a continuidade das práticas (rituais) e das relações sociais, assim como essas práticas foram transplantadas para o futebol.
Na resistência e conservação das raízes culturais, os grupos populares utilizaram-se das associações de futebol/blocos carnavalescos como meio para garantir a continuidade de suas descendências culturais, usando esse disfarce para escapar da perseguição estatal. Assim, muitas “associações” serviram de cobertura sob rótulos de clubes carnavalescos, maracatus e associações esportivas, mas não deixavam de ser um clube ou associação de futebol. Para esses grupos, o caminho a seguir na vida urbana era misturar o fetichismo religioso com o futebol. Desse modo, esses grupos marginalizados protegiam seu campo simbólico de um provável desajustamento dos valores na vida urbana e escapavam às conseqüências da ordem estatal.
Para Corrêa (1991), o “disfarce” conserva com surpreendente fidelidade suas raízes originais. Representa um locus de resistência e sobrevivência física e cultural para as grandes massas urbanas de descendentes de africanos. No entanto, as “associações culturais” foram esvaziadas paulatinamente, conforme a sociedade foi assimilando a nova ordem; novas formas éticas e estéticas culturais foram criadas e recriadas.
Analisando a vida esportiva da época, observamos que a maioria das associações se encontrava na organização das dinastias germânicas. O esporte não consistia um privilégio das massas urbanas. Porto Alegre, no início do século XX, já era distinta nos locais de lazer da burguesia, com destaque para os esportes e suas associações. É Pesavento (1991,
p. 101) quem aponta a diferenciação dos valores e costumes das classes na nova ordem urbana, em que “de forma diferente, eles [negros e pobres] se encontravam nas rinhas de galo e nas casas de batuque – ambos proibidos pelo Estado; nos carnavais de rua, nos cafés dos subúrbios e no Mercado Público, nos botequins da Ilhota, nos banhos no Guaíba e na festa de Navegantes e do Divino Espírito Santo”. Era nítida, na virada do século (XIX), a identificação de “cada qual no seu lugar”.
A FORMAÇÃO DOS CLUBES DE FUTEBOL E A LIGA DA CANELA PRETA
Em 1903, foi fundado o Grêmio Foot Ball Porto Alegrense por jovens pertencentes às camadas médias e altas, em sua maioria constituída de teuto-brasileiros. Em 1909, o Sport Club Internacional foi fundado por migrantes paulistas e jovens de menor prestígio na sociedade porto-alegrense. A Liga Porto-Alegrense de Football foi constituída em 1910. As duas equipes disputavam anualmente a taça Wanderpreiss e realizavam alguns jogos amistosos pelo interior do Estado. No entanto os negros e as camadas periféricas não tiveram acesso a nenhum desses clubes. No Sport Clube Internacional, a possibilidade de o negro vir a fazer parte da equipe só ocorreu na década de 1930 e, no Grêmio, somente nos anos iniciais da de 1950. Foi nesse contexto que, ainda na década de 1910, foi formada a Liga da Canela Preta, em oposição à Liga Branca, constituída pelos descendentes de europeus.
Em 1920, havia três ligas no futebol porto-alegrense. Todas traziam certas identificações quanto à cultura e ao status social de seus membros. Assim, havia a “liga do sabonete”, composta por elementos da elite, que entravam em campo impecáveis; a intermediária, denominada de “liga do sabão”, composta por pequenos comerciários e clubes de etnias minoritárias; e, por fim, a “liga das canelas pretas”, constituída de times formados exclusivamente por jogadores negros, que não eram aceitos pelas outras equipes 1.
O resgate histórico da Liga da Canela Preta, como foi chamada, só foi possível por meio da história oral e de alguns documentos do Estado, oriundos de instituições públicas, embora encontremos pessoas ligadas à crônica esportiva em Porto Alegre que fizeram menção histórica a essa Liga.
Sobre essa questão há duas versões a respeito de sua formação: a primeira refere-se à apropriação do antigo campo do Sport Club Internacional, em 1911/12, pelas associações formadas nas vilas operárias, em sua maioria constituídas de negros; a outra versão relata que a Liga foi formada por representantes da Vila Africana. Qualquer que seja a origem, certamente a criação da “Liga Negra” foi um meio de desenvolvimento da cultura negra, e também serviu para atenuar as discriminações ou perseguições por causa da cultura religiosa. Porém, não se pode efetivar uma pesquisa mais rigorosa sobre essa questão, porque, em 1941, toda a documentação a respeito foi destruída numa enchente, que invadiu bairros operários, como Navegantes, São João e áreas marginais (PESAVENTO, 1991; JESUS, 1998).
O espaço do futebol proporcionou aos membros da “Liga” a possibilidade de convívios sociais, constituindo um território e criando resistência social e política. Para Mauss (2003), a “resistência social” opera por meios de sínteses coletivas. A síntese coletiva ocorre quando necessidades coletivas são sentidas por todo um grupo e forçam os indivíduos desse grupo a operar sob o efeito das necessidades e desejos unânimes em qualquer instância social. Manter a tradição é um consentimento da sociedade, é uma necessidade social, da qual se desencadeia toda uma série de sínteses coletivas. Essa síntese pode ser vista nas páginas dos jornais da época, onde as autoridades viam com certos receios as “associações de futebol” formadas nos bolsões dos bairros que aglutinavam a etnia negra: difícil era separar o que estava no âmbito da religiosidade e o que estava no âmbito do futebol e do carnaval. Segundo Mauss (2003), sínteses coletivas podem romper com tradições quando há aceitação de novas representações.
Em seu início, a Liga da Canela Preta contava com nove clubes associados. Em 1922, a Liga Branca criou a segunda divisão, que abriu oportunidades para jogadores negros, o que desencadeou um lento processo de decadência da Liga da Canela Preta.
A constituição de uma liga formada por negros não ocorreu somente em Porto Alegre. Na cidade interiorana de Rio Grande, há registros da Liga Rio Branco e, em Pelotas, em 1919, registra-se a Liga José do Patrocínio, fundada como ato de resistência cultural em oposição ao futebol branco elitista praticado em todo o Estado. Essa Liga se perpetuava unicamente não permitindo a entrada de negros nos clubes e ligas por ela dominados.
Assim, o Rio-Grandense determinou que somente mulatos e mulatas poderiam torcer pelo clube, embora os registros não apontem se apenas os mulatos podiam ser jogadores, o que parece óbvio. Em Pelotas, a Liga José do Patrocínio era constituída por negros e mulatos de clubes, como GS Sul América, GS Vencedor e GS Lusitano. Esses clubes filiados revelavam uma forte resistência, pois eram compostos exclusivamente por negros sem mestiçagem. Há também registros de associações exclusivas de mulatos, tendo como estratégia a ascensão de classe, pela negação da própria negritude. No decorrer dos anos 20 e início da década de 1930, essas associações foram se diluindo, quando os outros clubes passaram a aceitar e a buscar jogadores negros (RIGO, 2001).
Os focos de resistência no futebol do Sul constituíam-se tanto de clubes elitistas como de equipes de trabalhadores, de operários e de clubes associativos étnicos que tinham o futebol como objetivo único. Tanto na Capital como nas cidades maiores do interior, podia-se ver a separação, tendo o futebol como meio, como instrumento para efetivação. Em Pelotas, no final da segunda década do século XX, havia 69 equipes de futebol. Entre essas, equipes de alemães e portugueses – estes divididos de acordo com a estirpe e categorias de trabalho e equipes formadas por grupos étnicos de negros (RIGO, 2001).
A separação reinante configurava a permanência de uma mobilidade de relações sociais recíprocas. Para Simmel (1986), o número de diferentes círculos, no qual o indivíduo se move, é um dos indicadores do desenvolvimento cultural, pois permite que ele ocupe distintas posições na interseção de vários círculos. A possibilidade de alargamento de círculos sociais fez que as associações de futebol procurassem construir demandas de relações com grupos das cidades vizinhas e com grupos da Capital, configurando e evidenciando a força de agremiações de futebol, no Interior e na Capital. A mobilidade social e as associações de futebol dos times formadas pelos negros do interior e Capital, entre os anos 20 e 30, motivaram o desenvolvimento do futebol no Sul (RIGO, 2001). As relações foram extensas, pois clubes de futebol e associações religiosas permitiram que as sínteses coletivas pudessem ser mantidas, numa sociedade, que, na época, distinguia cada membro e seu pertencimento social. A extensão das relações sociais possibilitou espaços para que clubes passassem a contar com jogadores negros em seus elencos, o que ocorreu com o S. C. Internacional na década de 1930.
TESOURINHA: DESCONTINUIDADE DE UMA TRADIÇÃO SEGREGACIONISTA NO FUTEBOL
Atualmente, temos visto, pela imprensa, fatos revelando no campo esportivo atitudes e comportamentos denominados de racismo. Seja no Brasil, seja na Europa, jogadores brasileiros ou africanos recebem atitudes provocadas por grupos de torcedores ou provocações isoladas originadas por jogadores da equipe adversária. São fatos revelando atitudes que talvez não possam ser denominadas de racismo, mas que promovem análises e reflexões que abordam esse conceito sociológico.
É num contexto de resistência da comunidade negra e popular à segregação reinante que o Grêmio F.B.P.A. – somente em 1952 – aceitou em seu elenco um jogador negro: Tesourinha. “O Grêmio quebrará hoje em Caxias uma tradição de meio século, ao incluir um elemento de cor preta em sua equipe” (CORREIO, 1952, p. 5). E
o grande ponteiro direito passou a figurar como personagem principal de um novo capítulo da vida esportiva da cidade, já que formal e oficialmente, é o primeiro elemento de cor que enverga a camiseta da Baixada, quebrando-se desse modo, uma tradição que a imensa maioria dos gremistas não suportam mais (CORREIO, 1952, p. 5).
A quebra de tradições, promovida pelo aceite do Grêmio de um jogador negro em seu clube, não possibilitou ao protagonista novas fronteiras de relações. Associados do clube protestaram diante da admissão de um jogador que trazia para o clube toda uma representação sócio-cultural. Não se tratava de se opor à vinda de um jogador, de um indivíduo para o clube. A preocupação dos opositores da ruptura era contra a representação que Tesourinha carregava em sua imagem de jogador, homem negro, precursor dos valores e da cultura afro. Como jogador, essa representação era mais latente, tanto que a imprensa e o mundo futebolístico do Sul admitiam que Tesourinha possuía uma característica distinta de jogar. Trata-se da acumulação cultural em que as técnicas corporais dos jogadores negros são incorporadas como um habitus do futebol nacional, um jeito ímpar de beleza e plasticidade das características do jogador pertencente à etnia negra, fato este, que, atualmente, recebe apoio e oposição dos autores da literatura do futebol.
Tesourinha foi ídolo no Sul e protagonista de muitos acontecimentos importantes, entre eles as vitórias do Internacional e do Grêmio de Porto Alegre. Endler (1984) argumenta que o jogador, embora tenha conquistado muitas vitórias, tinha uma vida social segregada, limitada às comunidades negras carnavalescas e religiosas – uma forma sutil de driblar a discriminação reinante no Sul. Mesmo sendo ídolo do futebol rio-grandense, Tesourinha procurava fintar as oposições a seu bojo cultural. É interessante que o jogador, segundo os registros históricos/literários, não fazia do futebol a vitrine de seu sucesso, ou de sua cultura. Foi em finais dos anos 30 e início dos 40, que Tesourinha e sua mulher, dona Conceição, puderam ser encontrados nas sociedades criadas por negros, onde concorridos bailes aglutinavam as famílias negras de Porto Alegre (ENDLER, 1984).
Em 1949, Tesourinha saiu de Porto Alegre para o futebol carioca. Foi no Rio de Janeiro, no período em que jogou pelo Vasco da Gama, que ele pôde se sentir mais livre para desenvolver suas devoções religiosas: “é no Rio de Janeiro, no Lar Espírita Irmã Zarabatana, que Tesourinha passa a integrar a escola de médiuns. Toda semana, numa casa da rua Conde de Bonfim (até hoje em funcionamento no Bairro da Tijuca), Tesourinha recebe um espírito de luz” (ENDLER, 1984, p. 72). Tal fato vem nos mostrar que o espaço social, assim como o espaço urbano, funciona como um processo de reificação, que permite a continuidade de certas práticas antropológicas. A miscigenação étnico-social e a própria territorialidade, que põem em contato diferentes classes sociais, como ocorria no Clube Vasco da Gama (por sua história de formação popular), abriram possibilidades para Tesourinha encontrar condições para suas crenças e expressar suas práticas religiosas no Rio de Janeiro.
Sempre que há novas relações na entrada num novo grupo social, esse fato promove e sempre desencadeia um processo de determinação de fronteiras. Mas as fronteiras que Simmel (1986) tem em mente não separam o sistema social anterior do seu novo ambiente. As novas relações recortam os objetos das influências do sujeito no novo grupo: na fronteira das novas influências/limites, dos direitos e, mais fundamental, das novas fronteiras das relações.
Enquanto jogava no Sul, Tesourinha procurava não se aproximar de sua religião, o espiritismo. Temia que dissessem que o seu sucesso em campo “era produto de sua prática e fé religiosa”, discurso latente dos atores que imaginam uma relação entre fé religiosa e sucesso futebolístico. Tesourinha soube separar sua vida religiosa da profissional. Como “todo” brasileiro do maior país católico do mundo, “Tesourinha sempre tomou seus passes, acreditou em espiritismo, freqüentou centros kardecistas. Sua mãe era adepta da religião afro-brasileira. Sua esposa, dona Conceição, sempre representou a família em sessões kardecistas em Porto Alegre” (ENDLER, 1984, p. 71).
Tesourinha retornou à sua cidade natal em 1952, mas foi recusado por seu time, o Internacional, no qual “o jogador é tomado como traidor: pecou por ter pensado no futuro material de sua família”. Consultando jornais da época, encontramos um fato que corrobora essa discussão. Em entrevista para uma emissora local, fizeram-lhe esta pergunta: “O Internacional continua a ser o clube do seu coração?” E a resposta surgiu, como estivesse engatilhada: “Sou cem por cento profissional e o clube do meu coração é aquele cuja camiseta visto no campo de luta” (CORREIO, 1952, p. 5). Em pleno profissionalismo, exige-se ainda do jogador uma atitude amadorista de amor incondicional ao clube, o que Mazzoni (1939) chamou de futebol de camaradagem; por outro lado, insurge a resistência de um jogador que soube se colocar como profissional, num momento histórico em que o futebol profissional ainda era incipiente.
Para Endler (1984), Tesourinha soube se colocar nesse cenário hostil e traiçoeiro, ponderando suas condutas de jogador com posturas culturais e religiosas. O jogador deu sua contribuição ao futebol sulino e manteve sua postura de identidade cultural e de laços com a comunidade negra, além de deixar explícita as suas raízes culturais. Embora não tivesse posição política partidária, soube traduzir a luta de sua etnia e classe social e, nas palavras de Endler (1984, p. 45), “Tesourinha sempre foi consciente de seu valor como cidadão negro”. Assim como Leônidas da Silva, que rompeu o preconceito étnico no Botafogo do Rio de Janeiro, como Moreira também fizera no Palmeiras, Janquinho no Coritiba e Bigode no Fluminense 2, no Sul, Tesourinha foi o primeiro negro a vestir a camisa do Grêmio e romper a tradição de segregação. Tesourinha garantiu sua integridade e manteve a conduta de seus laços culturais.
CONCLUINDO A REFLEXÃO SÓCIO-HISTORIOGRÁFICA
As transformações urbanas presidem as transformações sociais. São criadoras de uma nova sociedade e articulam todo um jogo de representações, criando resistências em diversos espaços sociais. A nova sociedade suplanta a velha ordem, mas se distancia da verdade social.É o que vimos na Região Sul, mais precisamente na Capital, onde podemos confirmar não mais um conjunto social, mas grupos se isolando, procurando cada qual manter suas resistências.
Os estudos sócio-historiográficos permitiram identifi car essas resistências e a formação de grupos étnicos se organizando e estruturando socialmente, tendo o futebol como instrumento para manutenção de valores e práticas antropológicas, que, na nova sociedade, não eram toleradas pelo Estado. Assim, surgem as “associações de futebol”, no Sul, no início do século XX, que, conforme o estudo evidenciou, foi palco de resistência e luta para a continuidade do campo simbólico de grupos pertencentes às comunidades de bolsões negros da Porto Alegre que procuravam impor a sua cultura. A Liga da Canela Preta nos revela que, na segregação provocada pelo Estado, a organização se torna fator de sobrevivência, abrindo um campo de relações sociais.
O futebol, servindo de instrumento, no encontro com outras culturas, se torna um espaço que permite a continuidade de certas práticas, servindo de disfarce e de trocas sociais. A manutenção das trocas sociais é possível quando encontram terrenos e espaços férteis para que possam ser expressas sem que os atores sejam segregados pelo grupo do qual participa. Assim, para Tesourinha, na sua vida profissional no mundo do futebol, foi possível expressar sua crença quando encontrou espaços que permitiram a correspondência necessária com sua representação social. A ruptura desencadeada pela aceitação de Tesourinha no Grêmio, em 1952, não foi uma ruptura pela aceitação de um jogador, bem como os associados que deixaram o clube não constituíram uma posição contrária a um homem. Isso permite refletir que a aceitação de Tesourinha consistiu na aceitação e na entrada de uma nova síntese coletiva que poderia criar e recriar novas relações sociais, permitindo extensas rupturas sociais.
Entendemos que, para compreender as relações e os fatos que hoje ocorrem no futebol, um mergulho na historiografia do futebol e em suas relações, tomando uma importante região como a do Sul para análise, fornece condições para ampliar as discussões e permitem novos olhares para os fenômenos sociais que ocorrem no futebol.
Football in the south: a history of ethnic organization and resistance
ABSTRACT
This research study aims at using anthropology concepts to approach and analyze social relations based on football, in order to broaden the discussions that will allow for new ways to look into social phenomena linked to football. This research study focuses on football as it is practiced in the Brazilian South - in Rio Grande do Sul state to be more specific – where, since the early decades of the 20th century, it is possible to identify how football creates and promotes relationships both in Porto Alegre - the capital city - and in the countryside. This research work is limited to the “football associations” and the study sources are documents and other studies on the historiography of Porto Alegre that deal with this topic.
KEYWORDS: football – football associations – Tesourinha – social representations
Fútbol en el Sur: historia de la organización y resistencia étnica
RESUMEN
Este estudio propone abordar y analizar, a la luz de los conceptos antropológicos, las relaciones sociales que ocurren en el fútbol con la intensión de ampliar las discusiones que permitan nuevos puntos de vista para los fenómenos sociales futbolísticos. El blanco de este estudio es es fútbol en la Región Sur, exactamente en Río Grande do Sul, en donde, desde las décadas iniciales del siglo XX, es posible identificar al fútbol creando y promoviendo relaciones en la Capital y en el interior del Estado. Este recorte se limita a las “asociaciones de fútbol”, teniendo como fuente documentos y estudios de autores de la historiografía de Porto Alegre que tratan del tema futbolístico.
PALABRAS-CLAVE: fútbol – asociaciones de fútbol – Tesourinha – representación social
NOTAS
* Professor do Departamento de Desportos do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo.
1 Nas cidades do interior do Rio Grande do Sul, como Pelotas e Bagé, já se identificavam clubes associativos na década de 1910, onde jogavam brancos e negros. Nessas cidades, a restrição ao negro foi menor do que na Capital.
2 Estivemos em duas oportunidades com Bigode na cidade de S. Mateus (ES). Bigode conta que, na sua volta ao Fluminense, em 1952, foi alvo de chacotas no clube. Diz que nas ruas sofreu (ainda sofre) com ofensas de torcedores e menosprezo da imprensa e de dirigentes.
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Recebido: 08 de setembro de 2006
Aprovado: 06 de novembro 2006
Endereço para correspondência:
José Luiz dos Anjos
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