Que vença o melhor! Competição, concorrência e rendimento. Esses são elementos fundamentais da sociedade capitalista, ritualizados por uma manifestação cultural chamada esporte. Para aqueles que pensam esse fenômeno e a Educação Física desvinculados do paradigma da aptidão física, há o difícil, e não menos desejado desafio de “reinventar” tal prática. É com esse sentimento, gerado a partir do interesse sobre o esporte encontrado na escola, que Sávio Assis de Oliveira apresenta importantes contribuições para a Educação Física escolar.
A encruzilhada entre a “desesportivização” da Educação Física e o não abandono do esporte pela escola é a mola propulsora utilizada pelo autor. Pautado no paradigma da cultura corporal e na metodologia crítico-superadora, o livro em questão permite o questionamento das “regras do jogo” do esporte moderno, apontando, com detalhes, as relações entre o fenômeno esportivo e a sociedade.
O foco do estudo, apresentado pelo autor, é o esporte encontrado no contexto escolar. Para tematizar essas questões foram feitas discussões sobre a escola e suas relações com a sociedade capitalista, indicando que essa instituição possui importante papel na reprodução dos valores desse modo de produção. Assis de Oliveira aponta, ainda, para a questão de que é através da Educação Física escolar, influenciada pela instituição esportiva, que a escola assume códigos, sentidos e valores da sociedade capitalista. É nesse contexto que emergem as principais categorias utilizadas pelo autor. Trata-se do par dialético levantado por Alexandre Cheptulin (1982), denominado realidade e possibilidade. Para o autor, a categoria realidade, do ponto de vista do materialismo dialético, é o que existe realmente e a categoria possibilidade é o que pode produzir-se em cima da realidade, ou seja, pensando essas categorias, no livro de Assis de Oliveira, a realidade é o esporte existente na escola e a possibilidade é aquilo que o esporte pode vir a ser nesse espaço.
Foi buscando essas possibilidades de reinvenção do esporte, que surgiu a principal tese levantada por Assis de Oliveira: a busca de outros jogos possíveis. Nesse sentido, o autor aponta os aspectos lúdicos como elementos centrais para haver possibilidade de construção de um novo modelo social.
Embora o autor comente diversas vezes que a escola é um importante instrumento na reprodução da lógica capitalista, sua análise discorda, em parte, do modelo apresentado por Louis Althusser (1983), que visualiza esta instituição somente como “Aparelho Ideológico do Estado”, argumentando que o lócus escolar deve ser compreendido como espaço de contradição e intervenção, e lugar privilegiado de construção de um “novo esporte”, que deve surgir a partir das críticas dirigidas ao “velho esporte”. Observamos que o autor não rompe com o esporte, nem prega, como vários críticos deste, seu abandono. E apesar de concordar com discussões anteriores sobre a necessidade de se pensar a transformação do esporte na escola para o esporte da escola, entendemos que o autor realiza uma crítica política a um texto publicado anteriormente por Vago (1996). Acreditando nas possibilidades emancipatórias do esporte e da Educação Física, Assis de Oliveira indica que não se deve simplesmente reinventá-lo. É preciso antes que essa prática esteja atrelada a um projeto político-pedagógico que vise à transformação da sociedade.
Nesse sentido, outro ponto importante merece ser destacado: as escolhas políticas e teóricas realizadas pelo autor para a empreitada da “reinvenção do esporte”. Amparado numa nova vertente do materialismo histórico dialético, o autor coloca a cultura como elemento fundamental na construção do seu texto, tratando este conceito não como algo simplesmente dado pelas estruturas econômicas, mas que perpassa também pelo plano cultural.
De fato, essa é uma questão comumente colocada no sentido de evidenciar uma lacuna na proposta crítico superadora, ou mesmo, na perspectiva marxista. Esse é, sem dúvida, um tema a aprofundar, cuja abordagem não pode se resumir ao marxismo, mas também não pode excluí-lo. Um caminho é começar pela redescoberta da perspectiva humanista do próprio Marx, de Gramsci e de Lukács, para citar apenas esses. No entanto, posso registrar, desde já, meu entendimento no sentido de que a formação da consciência (a “corporal” inclusive) não se dá no vazio e nem fora do mundo, mas na própria vida cotidiana, onde são gerados os problemas, as questões, as indagações, as quais exigem saídas e soluções (ASSIS DE OLIVEIRA, 2001, p. 154).
Amparado no materialismo histórico dialético, mas com uma forte tendência do que Perry Anderson (1989) denominou de “marxismo ocidental”, Sávio Assis de Oliveira procura apontar possibilidades para o ensino do esporte encontrado no interior das escolas baseado principalmente nas reflexões levantadas inicialmente pelo Coletivo de Autores (1992), no início da década de 1990.
Apesar dos esforços do autor em mostrar as possibilidades da metodologia crítico-superadora, notamos algumas lacunas, no que tange ao ensino de Educação Física. Acreditamos que o paradigma da cultura corporal, ao se opor ao da aptidão física, não supera o modelo tradicionalista de educação, pois as análises contidas em Reinventando o esporte e no próprio Coletivo de Autores, apesar de transcenderem ao modelo hegemônico de Educação Física, acabam operando na mesma lógica, ou seja, apenas invertem as “regras do jogo” em favor de uma “suposta” classe trabalhadora. Essa idéia não sugere a inexistência do conceito de classe trabalhadora, ela apenas adverte para o caráter reducionista do binômio dominante x dominado, alertando para a necessidade de dar visibilidade a inúmeras outras questões, que assim como a própria categoria de classe social, perpassa os sujeitos e seus corpos, inclusive durante todo o processo de escolarização.
A perspectiva adotada pelo autor, de afirmar que a Educação Física escolar deve tratar do conhecimento da cultura corporal historicamente produzida pelo homem, através dos esportes, da dança, da ginástica, das lutas e da expressão corporal, reduz as manifestações corporais a tempos e espaços previamente definidos, reproduzindo assim a ótica conteudista de educação, embora amparada por um enfoque político. Acreditamos que, ao perspectivar uma formação humana, a escola deve ir além dos conteúdos formais, considerando-os mais uma possibilidade de intervenção de ensino e não somente como a única forma.
Entendemos que Assis de Oliveira, ao propor um trato, mesmo que diferenciado, do conteúdo esporte, continua “encaixotando” as diversas manifestações corporais existentes no contexto escolar a uma dimensão motriz da educação física. Isso acaba por negligenciar importantes aspectos que perpassam o corpo dos diversos agentes escolares e que se manifestam em todos os sujeitos e, sistematicamente, no cotidiano dessa instituição.
Chegando ao final da partida, é importante salientar o esforço crítico de Assis de Oliveira em “desconstruir” as bases do esporte hegemônico, no contexto escolar, tratando-o como possibilidade de explicação, negação e superação. O autor enaltece a idéia de escola, discutida ao longo do livro, como produtora de uma cultura própria, capaz inclusive de provocar outras mudanças para além dos muros escolares.
Enfim, nem ganhadores, muito menos perdedores! Esta análise busca dar visibilidade a uma obra de relevância para a área de Educação Física, a fim de exclamar que o jogo continua, no entanto, com um olhar mais atento para o corpo. Corpo esse que ultrapassa as aulas de Educação Física, o conteúdo esporte, a dimensão motriz, a instituição escola bem como a própria sociedade capitalista.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989.
ASSIS DE OLIVEIRA, Sávio. Reinventando o esporte: possibilidades da prática pedagógica. Campinas: Autores Associados, chancela editorial CBCE, 2001.
CHEPTULIN, Alexandre. A dialética materialista: categorias e leis da dialética. São Paulo: Alfa-Omega, 1982.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
VAGO, Tarcísio Mauro. O “esporte na escola” e o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente – Um diálogo com Valter Bracht. Movimento, Porto Alegre, ano 3, n. 5, p. 4-17, 2 de set. 1996.
* Professora Substituta do Departamento de Teoria e Prática de Ensino e aluna do Mestrado da Universidade Federal do Paraná.
** Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
Recebido:11 de outubro de 2007
Aprovado: 6 de dezembro de 2007
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