CORPO, ESTÉTICA E DANÇA POPULAR: SITUANDO O BUMBA-MEU-BOI
RAIMUNDO NONATO ASSUNÇÃO VIANA*
RESUMO
Este artigo propõe refletir os conceitos Corpo e Estética, situando-os no cenário das danças populares, especificamente o bumba-meu-boi do Maranhão. Entre tantas leituras possíveis dos textos inscritos no corpo e em diversas situações, nas quais poderíamos situar essa manifestação da cultura sob vários enfoques, a saber: folclórico, histórico, antropológico e outros, para serem lidos, interpretados, compreendidos e atualizados, situamos nossos estudos na condição de fenômeno estético. Para tanto, temos, como interlocução principal, os estudos fenomenológicos sobre o corpo em Maurice Merleau-Ponty.
PALAVRAS-CHAVES: corpo – estética – bumba-meu-boi – fenomenologia
INTRODUÇÃO
O corpo é lugar de inscrição, mensagem, comunicação, história, memória. Inscrição que se move a cada gesto aprendido e internalizado. Com sua materialidade, os corpos e sua gestualidade traçam desenhos no espaço e no tempo que permitem a compreensão de toda uma dinâmica de elaboração de códigos. Os gestos se revelam num poder persuasivo, colocando em jogo todos os sentidos, não só de quem executa, mas também de quem observa. Por sua característica polissêmica e multifacetada, o corpo é objeto de estudo de várias ciências, permitindo o cruzamento de diferentes vias de conhecimento. Ao longo da história da humanidade, o ser humano construiu inúmeros saberes sobre o corpo; das Ciências às Artes. O corpo é tematizado pela Religião, pela Filosofia, pela Ciência, pela Educação e pela Arte, apresentando-se de diversas formas no pensamento e na cultura, de modo geral (NÓBREGA,1999).
Entre tantas leituras possíveis dos textos inscritos no corpo e, em diversas situações, este artigo propõe refletir os conceitos Corpo e Estética, situando-os no cenário das danças populares, especificamente o bumba-meu-boi do Maranhão.1 Portanto, entre tantos enfoques em que poderíamos situar essa manifestação cultural – folclórico, histórico, antropológico e outros –, que são alguns dos textos oferecidos para serem lidos, interpretados, compreendidos e atualizados, situamos nossos estudos na condição de fenômeno estético.
Ressaltamos que ao elegermos uma manifestação tradicional dentro da grande diversidade cultural brasileira, não estamos afirmando que somente essa, tenha a particularidade enfocada para esse estudo. Acreditamos que as diversas manifestações culturais brasileiras, cada uma em seu “mundo vida”, vivem sua experiência estética. A situacionalidade do fenômeno é prerrogativa do viés metodológico-fenomenológico ao qual optamos para esse empreendimento.
Para refletirmos sobre essa temática, baseamo-nos em estudos de Nóbrega (2000, p. 54) ao afirmar
que as danças populares brasileiras, com seus gestos e dramaticidade próprias, configuram uma estética, ou seja uma percepção que conforma um estilo, visível nos códigos gestuais, criando uma linguagem que pode vir a ser tematizada na Arte e na Educação, considerando-se os diferentes modos de fazer e compreender o conhecimento.
A autora afirma ainda que
A Arte é constitutiva da Cultura e como expressão artística do povo, a dança popular apresenta possibilidades para a Educação: No campo ontológico, do Ser, como artesã de subjetividades individuais e sociais. No campo ético, como mestra da diversidade dos valores, etnias e sistemas simbólicos. No campo lógico, epistemológico, dos saberes, como bricoleur da escrita do conhecimento. No campo do método, dos fazeres, como potencializadora da linguagem sensível, expressa no corpo em movimento (NÓBREGA, 2000, p. 58).
Para Nóbrega (2000, p. 59)
Essas possibilidades podem se concretizar nas dimensões do fazer compreender e apreciar a linguagem da dança, expressão poética do corpo que, ao movimentar-se cria realidades fantásticas e inusitadas, a partir dos elementos da cultura como articuladora de identidades, de modos de Ser.
Atendo-nos a essas considerações, acreditamos que, assim como outros folguedos populares, essa manifestação das tradições maranhenses reúne elementos constitutivos, determinantes de uma linguagem estética expressa nas formas de ser e de viver em sociedade, no espaço e no tempo, criando e recriando estruturas, modos de ser e de fazer dos seus sujeitos sociais. Visualizamos esse cenário como espaço que reúne diferentes códigos estéticos de viver, ser, produzir e circular conhecimentos, pois através de seu canto, de sua dança, de suas ações na organização do grupo, os brincantes estabelecem diferentes estratégias de leitura de mundo; movimentando-se, reorganizando-se, informando-se sobre o meio ambiente e informando-se sobre si mesmo.
A partir de um olhar sobre o corpo na manifestação do bumba-meu-boi, acreditamos poder compreender as estratégias de produção de conhecimento, observando como essas danças se apresentam com relação à estética.
Ao focalizarmos essa manifestação na condição de fenômeno estético percorreremos trajetórias já transcorridas por outros autores em suas teses de doutoramento na área da educação como Nóbrega (1999) e Porpino (2001). Em seus trabalhos, sobretudo no que diz respeito ao estudo do Corpo e da Estética, as autoras referem-se a um duplo deslocamento. O primeiro, refere-se à concepção de corpo como ajuntamento de partes anátomo-fisiológica e sujeito à relação de causalidade linear de estímulos e respostas, para a concepção de corpo que não se apresenta com essa passividade, mas como possibilidade de encontro com outros e com o mundo, isto é, em relações imaginárias com o mundo, deixando de ser apenas uma estampa de anatomia para ser uma totalidade, entrelaçando o mundo biológico e o mundo cultural.
O segundo deslocamento diz respeito a uma concepção de estética fundamentada numa racionalidade em que as análises do objeto estético ora privilegiam o próprio objeto, ora privilegiam o sujeito contemplador, para compreensão de experiência estética relacionada com o domínio da apreensão sensível vinculada à relação de sentidos do homem com o mundo, consigo próprio e com os outros. Isto é, à experiência da vida e da linguagem; a experiência estética originada no domínio da experiência de vida, de onde fundamenta seu modelo de beleza. Portanto, deslocamento para um conceito fenomenológico do belo.
A partir da perspectiva fenomenológica colocada por autores como Merleau-Ponty (1999), o corpo ao qual nos referimos é um corpo vivo, que trabalha, sente prazer, sofre de amor e de fome, molda, transforma, conforma, disciplina-se e disciplina. Um corpo que escreve sua história tem sua técnica corporal ao dançar e festejar seus rituais. Um corpo onde é possível ler informações geradas pelo universo da cultura no tempo e no espaço, portanto, na história; universo esse, que o mantém vivo e ao mesmo tempo é sustentado por ele através da transmissão social de informações. Enfim, um corpo anatômico e também um corpo social, real e imaginário que se contrapõe ao discurso que o considera como partes distintas, órgãos justapostos por onde os canais sensoriais são apenas instrumentos de estímulos e respostas, apresentando-se no mundo como um acontecimento através da causalidade linear.
Merleau-Ponty (1999) afirma que o corpo é o nosso meio geral de ter o mundo. Para o filósofo, esse corpo quando se movimenta, se reorganiza, informa-se sobre o meio ambiente ao mesmo tempo informa-se sobre si mesmo, criando significações transcendentes ao dispositivo anatômico. Desse modo
ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através dele um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança. Ora, enfim, a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele se construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203).
Outro aspecto que também queremos ressaltar, é que, embora a “reflexão sobre o objeto estético sempre privilegia a arte, é sobre a arte que ela melhor exercita o gosto e provoca a experiência estética” (DUFRENNE, 2002, p. 60). Compreendemos que essa vivência estética se estenda a outros campos da atividade humana, como as festas e manifestações populares, daí, a nossa imersão nesse empreendimento investigativo.
Originada da palavra grega aisthesis-aisthetike, que denota percepção/sensação, a estética diz respeito ao belo, à harmonia e ao artístico. Todo empreendimento cognitivo nessa área de estudo tem sido em busca de uma definição de “Estética”, bem como seu método, natureza e objeto (SUASSUNA, 2004).
Dessa maneira, diversas teorias foram construídas: platônica, aristotélica, plotínica, kantiana, hegeliana entre outras. Essas discussões também dizem respeito ao lugar “de fala” da Estética, ou seja do estatuto de “filosofia do Belo” ou “ciência do Belo”, bem como da relação entre o sujeito e o objeto que transita entre situar o Belo como propriedade do objeto, como capacidade de o sujeito discernir a beleza em determinado objeto, ou então a beleza como estado de imanência entre sujeito e objeto (SUASSUNA, 2004).
É com o estatuto filosófico da Estética que nos identificamos para abordarmos este estudo, bem como a compreensão da experiência estética que se constrói em uma relação de imanência entre sujeito e objeto, o que caracteriza o pensamento fenomenológico sobre a estética. Neste artigo, abordamos o corpo e sua dimensão estética presente em narrativas do bumba-meu-boi; narrativas expressas pelos corpos que dançam essa manifestação, nas relações que se estabelecem na organização de sua prática, ou seja, nos ensaios, confecção de figurinos, apresentações, ritualizações, nos processos de ensino-aprendizagem, na produção e circulação de saberes.
Nas relações construídas entre todos os elementos que compõem esse mundo vivido, ou seja, os brincantes, o boi, a religiosidade,2 enfim na construção, na organização da beleza de sua festa, de seu objeto estético, seus protagonistas inauguram uma racionalidade não determinada pelos padrões conhecidos pela lógica formal. Uma racionalidade mais flexível e menos esquemática, onde cada ação tem uma razão de ser e uma lógica específica, delineando assim, uma razão sensível que nos remete ao pensamento de Dufrenne (2002, p. 28).
Poder-se-á, assim mostrar que a beleza apela para o saber: que as idéias fundamentais de invariável, de ordem, de lei, são sugeridas por certas propriedades dos objetos belos; e também que a criação de certos objetos da plástica ou da música requer atividades como contar, medir, ordenar, onde a imaginação já é esquematizante, e que imitam os processos da ciência.
Trata-se, portanto, de um logos estético capaz de explicar o papel da imaginação, da emoção e do inconsciente na construção desse objeto estético. Razão que é ao mesmo tempo percepção e reflexão, emoção e entendimento; intelectualização dos meios sensíveis e sensibilização dos meios inteligíveis, contudo sem a formalização e a abstração exigidas pela linguagem científica. Mas em ambos os domínios se encontram os elementos de criação, de produção e de organização (PAVIANI, 1991).
Situar o bumba-meu-boi na condição de fenômeno estético é experimentar o acordo entre o ser humano que realiza e se realiza nesse imaginário de cores, formas, ritmos, e o objeto que lhe apraz pela beleza; o boi, a dança, o seu objeto de contemplação, enfim, o seu objeto estético.
É na descrição da construção desse objeto estético; em cada canutilho escolhido, cada miçanga perpassada em suas vestes e no couro do boi,3 cada fita e cada pena colocadas no chapéu, em cada toada criada e cantada, na reafirmação de dançar para o santo de sua devoção, que confirmamos os três planos noemáticos desenvolvidos por Dufrenne (2002) para a descrição do objeto estético: o sensível, o objeto representado e o mundo expresso. Eles correspondem respectivamente aos níveis Presença, Representação e Sentimento. Três marcos do roteiro da fenomenologia da percepção estética, e sobre os quais discorreremos a seguir.
No plano da presença, Dufrenne (2002) enfatiza o papel desempenhado pelo corpo na percepção e o faz influenciado pelo filósofo Merleau-Ponty, para o qual, o corpo não é soma de órgãos justapostos e sim sistema sinérgico no qual todas as funções são retomadas. Merleau-Ponty (1999) reforça o corpo como textura comum de todos os objetos e, em relação ao mundo percebido, o mundo geral da compreensão. O corpo é também o lugar e a própria atualidade do fenômeno da expressão.
Para Merleau-Ponty (1999, p. 279), “a percepção não deve nada àquilo que nós sabemos de outro modo sobre o mundo, sobre os estímulos, tais como a física os descreve, e sobre os órgãos dos sentidos, tais como a biologia descreve”.
Na tradição positivista criticada por Merleau-Ponty (1999), os órgãos dos sentidos são instrumentos de excitação corporal e não da própria percepção. Na abordagem fenomenológica, o perceptivo e o motor do comportamento se comunicam numa relação que acontece na maior parte do tempo como se não mudasse nada nos termos entre os quais ela acontece.
Desse modo, Merleau-Ponty (1999, p. 160) considera que “não há uma percepção seguida de um movimento. A percepção e o movimento formam um sistema que se modifica como um todo”, e como já comentamos anteriormente, o corpo é a textura comum de todos os objetos, nele, as experiências sensoriais são pregnantes umas das outras. A função essencial da percepção é fundar ou inaugurar o conhecimento.
A percepção chega a objetos, e o objeto por sua vez constituído aparece como a razão de todas as experiências que dele tivemos ou que dele poderíamos ter. [Desse modo,] olhar para um objeto é vir habitá-lo e dali aprender todas as coisas segundo as faces que elas voltam para ele (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104-105).
O conhecimento, portanto, não tem domínio sobre o objeto, eles se ocasionam um ao outro, intercalam-se numa só estrutura, unificando também passado, presente e futuro.
Sendo assim, o que Merleau-Ponty (1999) denomina de presença corporal nada mais é que um dos saberes corporais. Através da presença corporal, guardamos no corpo o passado sob forma de técnicas, experiências formativas, e de vivências incorporadas: afirmamos essas experiências no presente e esboçamos prontidões para o futuro.
Sobre a representação, Dufrenne (2002) aceita a distinção entre percepção e imaginação, empenhando-se em demonstrar que a imaginação está na base da percepção, sendo, portanto, sua colaboradora. Para o autor, a imaginação se distingue da percepção, porém não pode subsistir sem ela e sem poder ser reduzida a ela, distinguindo-se da percepção, como o possível do dado, e não como o real e o irreal.
A imaginação amplia o campo do real que lhe é oferecido, dá-lhe profundidade espacial e temporal, dá à aparência densidade e consistência, converte o real num mundo. Logo, “imaginar é primeiramente abrir possíveis, que além do mais não chegam necessariamente a realizar-se em imagens. Sem dúvida, a imaginação se distingue da percepção, como o possível do dado, e não como o real e o irreal: a imaginação não produz nada, exceto a possibilidade de algo dado, ela reproduz” (DUFRENNE apud PAVIANI, 1991, p. 69).
A percepção dá-nos a presença; a imaginação, a representação; e a reflexão, o mundo do texto. Dufrenne (2002) aceita também a função do intelecto na percepção estética, esclarecendo que não deve ser exagerada sob pena de transformar a experiência estética em mero exercício racional. Quanto ao sentimento, o autor situa-o no ápice da percepção, mas chama a atenção para que não se caia no erro de tudo sacrificar em favor do sentimento. Para ele, na atitude estética há uma espécie de oscilação entre atitude crítica e atitude sentimental.
Desse modo, as situações descritas no bumba-meu-boi são emblemáticas para abordarmos a experiência estética vivida no seio dessa manifestação, pois em cada desenho imaginado, nuança de cores experimentadas, sons percebidos, os brincantes percebem-se no mundo, organizam-se, dançam, aguçam os sentidos da experiência de vida.
Através do canto, o brincante concebe e representa experiências, projeta valores, sentidos e significados e revela sentimentos, emoções e sensações. Ao balançar seu maracá, ele anuncia a entrada das zabumbas, pandeirões e chocalhos,4 sons que invadem os ouvidos e encontram respostas na dança de outros brincantes; homens e mulheres que celebram e que, por um instante, permitindo-se esquecer a rotina do cotidiano, utilizam o movimento como linguagem dançante, dançam!
No momento dessa festa, em que os brincantes se entregam a esse mundo de ritmos, cores, formas e ligam sua existência terrena à espiritual, é que “boi” e brincantes se condensam em um só, numa só celebração, e esse objeto estético resultado do fazer e da subjetividade que o criou, se expressa.
Se o objeto é capaz de expressão, se traz em si um mundo próprio, completamente diferente do mundo objetivo no qual está situado, é necessário dizer que ele manifesta, a propriedade de um para-si, que ele é um quase sujeito. O sentido que exprime é para ele a forma de seu corpo (DUFRENNE, 2002, p. 84).
Quando dançam, esses homens e mulheres demonstram comportamentos constituídos a partir de seqüências de movimentos e gestos. Assim, cativam, tomam, capturam as pessoas, enfim, comunicam-se, usam o gesto como linguagem. Cativar, tomar, capturar o outro pelo gesto, enfim comunicar-se através do gesto, não ocorre linearmente somente a partir do interlocutor, porque o sentido do gesto não é dado, é compreendido e retomado por um ato do espectador, como concebe Merleau-Ponty (1999, p. 251):
obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitasse o seu.
Assim, quando os brincantes dançam, eles inscrevem em seus corpos, histórias, memórias e as comunicam, comunicam-se consigo, com o outro, interligam passado e presente e apontam para o futuro, a partir dessas relações.
Portanto, o brincante traz no seu corpo toda a sua história e em especial para o momento, sua técnica de dançar; ou seja, sua técnica corporal ou maneiras de servir-se do seu corpo para dançar, fazer seus jogos de ações, realizar movimentos e de organizá-lo para reverenciar seus mitos, festejar seus rituais, representar fenômenos da natureza; enfim, somente após selecionar essas ações e sabê-las eficazes, as transmitiu pelo fenômeno da tradição (Mauss, 1974).
Mauss (1974, p. 217) cita o seguinte conceito de técnica: “Chamo de técnica, um ato tradicional e eficaz (e vejam que nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição”.
Em seus estudos sobre os saberes da tradição, Almeida (2001, p. 59) comenta que a tradição é comumente identificada como forma transacional “folk” entre a primitividade e a civilização, acabando “por ser percebida apenas em função de conservação, constituída por elementos petrificados nos escaninhos da memória coletiva”.
Para a autora, os saberes da tradição são discriminados e rotulados de não científico, recebendo a rubrica de popular como carga conotativa de produto inferior, desconsiderando, portanto, o seu poder de reativar o que já existiu, constituindo-se num eixo no qual, o passado se prolonga no presente. Entretanto, “os saberes tradicionais são uma das formas de explicação de fenômenos e fatos da vida social, a partir da articulação de um conjunto de relações priorizadas, sistematizadas coerentemente” (ALMEIDA, 2001, p. 81).
Nessa concepção de tradição que se renova, visualizamos as danças populares, considerando-as como saberes inscritos nos corpos; saberes constantemente renovados, pois o corpo que dança está sempre criando novos hábitos, novas significações.
As danças que consideramos neste texto, assim como as demais danças populares, enquanto técnicas corporais, foram priorizadas, sistematizadas dentro de determinado contexto social e se repetiram ao longo do tempo pela tradição. É nessa experiência estética vivida no seio dessas manifestações que homens e mulheres vêem possibilidade de se reconciliar com eles mesmos, de se sentir um ser no mundo, de experimentar o acordo, a familiaridade com o mundo, de experimentar o valor do belo e de manifestar melhor a condição humana.
Se o ser humano tem necessidade do belo, é na medida em que precisa se sentir no mundo. “Estar no mundo não é ser uma coisa entre as coisas, é sentir-se em casa entre outras coisas, mesmo as mais surpreendentes e as mais terríveis, porque elas são expressivas” (DUFRENNE, 2002, p. 25).
Nesse sentido, a experiência estética se dá no corpo, na sua relação com os objetos estéticos.
O belo é esse valor que é experimentado nas coisas, bastando que apareça, na gratuidade exuberante das imagens, quando a percepção cessa de ser uma resposta prática ou quando a práxis cessa de ser utilitária. Se o homem na experiência estética, não realiza necessariamente sua vocação, ao menos manifesta melhor sua condição: essa experiência revela sua relação mais profunda e mais estreita com o mundo (DUFRENNE, 2002, p. 25)
Ao dançar, esses homens e mulheres o fazem porque realizam movimentos aparentemente sem nenhuma utilidade ou função prática, mas que possuem sentidos e significados em si mesmos. Mais que fenômeno fisiológico ou reflexo psicológico, a dança ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. A dança é uma função significante, isto é, encerra determinado sentido, transcende as necessidades imediatas da vida e confere sentido à ação. O corpo ao cantar e dançar comunica, manifesta sua presença na esfera da vida, ilustra o quanto é diversificada a comunicação nas relações humanas, pois a mesma confunde-se com a própria vida, servindo à sobrevivência individual e coletiva e às trocas sociais. Ao se comunicar, o homem põe em relevo a sensibilidade. Utiliza seu corpo como instrumento para compartilhar emoções, transmitir ordens, partilhar idéias. Os brincantes do bumba-meu-boi do Maranhão, assim como outros dos demais folguedos populares brasileiros, ensinam a ritualização da cultura pelo aguçamento dos sentidos.
Ultrapassando os limites da atividade puramente física ou biológica e transcendendo as necessidades imediatas da vida, o homem nessa experiência estética supre outra necessidade, a de viver em toda a plenitude a beleza desenhada e residida na forma, nas cores, nos sons. Necessidade denominada por Dufrenne (2002, p. 248)
de necessidade no sensível. É uma necessidade no sensível, não é uma necessidade sensível como a do fato bruto, de não importa qual presença inerte e opaca, que se identifica com a pura contingência, e não mais uma necessidade lógica, como a do raciocínio, que abole o sensível.
Para Dufrenne (2002, p. 24), o belo é um valor que abre caminhos aos outros, cujo valor não é só o que é procurado, mas aquilo que é encontrado: “é próprio de um bem, de um objeto que responde a algumas de nossas tendências e satisfaz algumas de nossas necessidades. A exigência do valor está enraizada na vida e o valor está enraizado em certos objetos”.
Afirma também, o autor, que há uma sede de beleza no homem e que essa não é muito exigente, nem muito consciente, mas se torna cônscia quando está satisfeita por objetos que oferecem apenas sua presença, cuja plenitude só se realiza no sensível.
O elemento sensível por sua vez, não é definido como efeito imediato de estímulo exterior e o aparelho sensorial não desempenha papel de transmissor. O sensível é aquilo que se apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este “com” não é simplesmente instrumental e o aparelho sensorial não é apenas um condutor e que mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes consideradas como centrais (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 32).
A experiência estética à qual nos referimos diz respeito à sensibilidade e é fundamentada na comunicação dos sentidos. O elemento sensível relaciona o corpo à unidade do humano que se revela na diversidade, aproximando a linguagem do corpo da expressão artística, privilegiando a beleza, a poesia e a diversidade da linguagem produzida por corpos humanos em movimento (NÓBREGA, 2001).
A experiência estética enquanto dimensão do sensível expressa o belo, o que nos motiva a questionar, como Dufrenne (2002, p. 45).
Mas o que é então o belo? Não é uma idéia ou modelo. É uma qualidade presente em certos objetos – sempre singulares – que nos são dados à percepção. É a plenitude, experimentada imediatamente pela percepção do ser percebido (mesmo se essa percepção requer longa aprendizagem e longa familiaridade com o objeto). Perfeição do sensível, antes de tudo, que se impõe como uma espécie de necessidade e logo desencoraja qualquer idéia de retoque. Mas, é também imanência total de um sentido ao sensível, sem o que o objeto seria insignificante: agradável, decorativo ou deleitável quando muito.
Portanto a experiência estética vincula-se à sensibilidade. O sentido do objeto que se apresenta belo se estabelece numa relação de imanência com o sujeito que o contempla. O objeto estético é belo porque é verdadeiramente, segundo o modo de ser que convém a um objeto, sensível e significante. É belo com a condição de significar certa relação do mundo com a subjetividade, descortinando-o como fonte de verdade “pois o mundo não é, para mim, um objeto de saber antes de ser um objeto de deslumbramento e de reconhecimento” (DUFRENNE, 2002, p. 53).
Também o objeto estético tem sentido, sendo ele próprio um sentido: “sexto ou nono sentido, cuja aquisição logo me é facultada, se eu me dedico a esse objeto, e cuja especificidade é propriamente espiritual; pois é a faculdade de ressentir o afetivo e não o visível, o tátil, o auditivo” (DUFRENNE, 2002, p. 53).
Desse modo, o objeto estético resume e exprime a totalidade sintética do mundo, fazendo-nos compreender o mundo ao compreendê-lo em si mesmo e tendo-o como mediador, reconhecendo antes de conhecê-lo, pois é nele que nos reencontramos antes de nos ter encontrado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destacamos a relevância dessas reflexões como contribuição epistemológica para ampliar a compreensão da relação entre os estudos do corpo, estética e dança popular, aproximando os diversos cenários educativos e o cotidiano, ambos produtores de saberes, portanto, dialogáveis. Ensejamos um fazer educativo dialógico que ultrapasse a concepção de um saber cristalizado, cuja característica mais evidente é a multidisciplinaridade compartimentalizada, estanque, na qual os saberes coexistem, mas não dialogam.
No universo das manifestações populares, no qual situamos as danças populares, em especial para este estudo o bumba-meu-boi, processos de aprendizagem ocorrem simultaneamente nesse corpo que dança, bem como podemos perceber a capacidade de produzir, circular e religar saberes desse corpo que constantemente reelabora sentidos. Tal investimento implica em novas escrituras, novas interpretações sobre os conceitos os quais refletimos, sugerindo-se também uma nova compreensão quanto a esses gestos construídos por um determinado segmento social e possamos ultrapassar a concepção de petrificar esses movimentos ou repeti-los mecanicamente em datas comemorativas.
BODY, AESTHETIC AND POPULAR DANCE: POINTING THE BUMBA-MEU-BOI
ABSTRACT
It enters as many possible readings of the enrolled texts in the body and, in diverse situations, this article considers to reflect the concepts: Aesthetic body and pointing out them in the scene of the popular dances, specifically the Bumba-meu-boi of the Maranhão.Therefore, it enters some approaches that we could point out this manifestation of the culture, to know: folkloric, description, anthropological, among others, that they are some of the texts offered for this form of manifestation to be read, interpreted, understood and brought up to date, we point out our studies of this manifestation in the condition of aesthetic phenomenon. For In such a way we have as main interlocution the phenomenological studies on the Body in Maurice Merleau-Ponty.
KEY-WORDS: aesthetic body – bumba-meu-boi – phenomenology
CUERPO, ESTÉTICA Y DANZA POPULAR: SITUANDO EL BUMBA-MEU-BOI
RESUMEN
Entre tantas lecturas posibles de los textos inscritos en el cuerpo y en diversas situaciones,ese artículo propone reflejar los conceptos: Cuerpo y Estética localizado en presentaciones de danzas populares, específicamente el Bumba-meu-boi del Maranhão. Portanto, entre varios enfoques que podríamos situar esa manifestación de la cultura, a saber: folklórico,histórico,antropológico entre otros, que son algunos de los textos ofrecidos por esa forma de manifestación para sereis vistos, interpretados, comprendidos y actualizados, situamos nuestros estudios sobre la manifestación en la condición de fenómeno estético. Para tanto tenemos como interlocución principal de los estúdios fenomenológicos sobre el cuerpo en Maurice Merleau-Ponty.
PALABRAS-CLAVES: cuerpo – estética – fenomenologia – bumba-meu-boi
NOTAS
* Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Maranhão, mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
1 No Brasil, este folguedo teve origem no ciclo econômico do gado, sendo produto de tríplice miscigenação, com influência indígena, do negro escravo e do português. Com diferentes denominações tais como: boi-de-reis, boi calemba, surubi e outras, espalhou-se por todo o nordeste, chegando até o Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Entre os vários grupos de bois do Maranhão, três se destacam pelo estilo que apresentam (indumentária e bailados): boi-de-matraca (instrumentos de percussão, pandeiros e maracás; boi-de-orquestra (destacam-se os instrumentos de corda, sopro, bombo, tambor-onça e maracás; e boi-de-zabumba (tambores tipo zabumba, pandeirinhos e maracás). Uma armação de taboca de buriti na forma do animal boi é recoberta de veludo bordado com lantejoulas e canutilhos, homens e mulheres se tratam como brincantes (CASCUDO, 2001, p. 80 ).
2 O bumba-meu-boi do Maranhão é indiscutivelmente parte integrante de um processo mítico. Entretanto, não existem quaisquer implicâncias idólatras, pois não é ao boi que se rende a homenagem, mas através dele, a um santo (AZEVEDO NETO, 1983, p. 66).
3 Peça de veludo bordado de canutilhos, miçangas, paetês etc., que cobre a armação do boi (AZEVEDO NETO, 1983, p. 79).
4 Maracás, zabumba, pandeirões, chocalhos são instrumentos musicais utilizados para o bailado do bumba-meu-boi.
REFERÊNCIAS
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CASCUDO, L. da C. Dicionário do folclore brasileiro. 11. ed. rev.e atual. São Paulo: Global, 2001. 768 p.
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MAUSS, M. Sociologia e antropologia. Trad. de Humberto Puccinelli. São Paulo: EPU, 1974.
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PAVIANNI, J. A racionalidade estética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991. 137 p.
PORPINO, K. O. Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. 2001. 159 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2001.
SUASSUNA, A. Iniciação à Estética. 6. ed. Recife: Universitária -UFPE, 2004. 396 p.
Recebido: 31/03/2005
Aprovado: 01/06/2005
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