PERCEPÇÕES SOBRE O CORPO FEMININO: UM ESTUDO COM AS SUBJETIVIDADES DAS ACADÊMICAS DE UM CURSO DE EDUCAÇÃO FÍSICA

EMILIA DEVANTEL HERCULES*
MARCELO MORAES E SILVA**

RESUMO

O presente estudo busca analisar como as imagens utilizadas nos meios de comunicação influenciam a construção das subjetividades. Para realização desta pesquisa foram entrevistadas 25 universitárias, de 19 a 24 anos, e utilizadas nove fotos de mulheres evidenciadas na mídia, todas atrizes, modelos e dançarinas. Entre os resultados, o dado que mais chamou a atenção foi a presença, na linguagem das universitárias, de um discurso sobre a “moral”, os “bons costumes” e a exploração do corpo como objeto de consumo. Apesar da consciência dos discursos, as acadêmicas deixaram transparecer que são ávidas consumidoras desses modelos corporais.

PALAVRAS-CHAVE: corpo feminino – subjetividades – discursos

 

Minha força não é bruta
Não sou freira nem sou puta
Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra-louca, tudo bem
Minha mãe é Maria-ninguém
Não sou atriz-modelo-dançarina
Meu buraco é mais em cima
Porque nem toda feiticeira e corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem.
(Rita Lee e Zélia Duncan)

INTRODUÇÃO

A imposição social realizada através dos meios de comunicação de massa torna-se grande influenciadora no desenvolvimento e construção de conceitos sobre o corpo. O modelo estético1 preponderante é apenas reflexo da formação do corpo ligada ao sistema mercantil, que retorna ao consumismo como único meio de se conseguir a perfeição e a felicidade, injetando ânimos na busca frenética pelo belo e constituindo, desta forma, uma indústria da cultura do corpo.

O atual descontentamento em relação ao corpo não atinge apenas as mulheres, mas também os homens.2 Ambos sentem necessidade de pertencer a uma sociedade do belo aparente, supostamente atingível e vendável por meio das diversas plásticas e por novos processos de rejuvenescimento, criados em escala progressiva pela crescente indústria da estética, da beleza e da saúde.3

Com o advento da Revolução Industrial, o domínio e a consciência sobre a dimensão corporal tornaram-se produtos de trabalho persistente, sistemático e meticuloso, e submeteram o corpo a um árduo programa de ginástica e exercícios. Esse fator causou radicais mudanças nas visões estéticas de corpo. Passou-se a ser considerado belo o corpo padronizado e adaptado a esta lógica disciplinadora e industrial. Desta forma, aqueles corpos que não se encaixam nesta padronização são considerados obsoletos e, com isso, marginalizados, discriminados e sem visibilidade neste momento discursivo.

Todavia, torna-se necessário ressaltar que os corpos marginalizados apenas mudaram de posição, ou seja, nunca deixaram de existir, apenas co (existem) com medo de não conseguirem corresponder às exigências discursivas, que em muitos casos são também cobranças lingüísticas, cujo objetivo é disciplinar os sujeitos para a vida na sociedade hodierna.

A exposição massificada do corpo feminino torna-se a cada dia fato repleto de dilemas corporais, e temporalmente formam uma cultura de beldades construídas por silicones e plásticas, visíveis principalmente nos meios de comunicação. Esta exibição propõe corpos esculpidos e esculturais como modelos de beleza a serem admirados, seguidos e desejados.

Apesar das conseqüências que a busca pelo belo pode causar, cada vez mais pessoas procuram esse modelo. Contudo, isso pode ser considerado uma afronta a sua forma natural. Dessa maneira, a indústria frenética da estética procria suas armas e lança a cada dia novos silicones, cremes, cirurgias, anabolizantes e... o conflito individual passa a ser o maior gerador de mercado para a exploração capitalista na disputa feroz da beleza.

A explosão deste assunto perante a área acadêmica proporciona ao estudo uma relevância importante. Lócus no qual as indagações sobre o corpo vêm gerando grandes discussões e debates, pois através da detecção da problemática da mercantilização e da cultura do corpo poder-se-ia intervir de forma que os sujeitos sejam capazes de produzir outras formas de subjetivações.

METODOLOGIA

Este trabalho se compõe de forma descritiva, com investigações de opinião e motivação, a partir do método científico hipotético-dedutivo, no qual pretende-se falsear as intenções durante o processo e não simplesmente manipular os resultados a favor de confirmar as hipóteses iniciais do estudo.

Considera-se como objeto da pesquisa a verificação da imposição social como influenciadora na construção do corpo, através da cultura e seus estereótipos, tendo como referência a utilização das imagens femininas vinculadas aos meios de comunicação de massa.

Para determinar a influência dessas modificações entre as mulheres propõem-se como procedimentos: cruzamento da bibliografia sobre o corpo, o gênero e os meios de comunicação de massa com os resultados colhidos na pesquisa de campo.

a) Sujeitos: A pesquisa foi realizada com 25 estudantes universitárias de um curso de Educação Física, de 19 a 24 anos. Tais alunas foram escolhidas aleatoriamente, respeitando a variável idade para compor o grupo adequadamente.

b) Instrumentos: A utilização de um questionário aberto, com questões simples e de fácil compreensão, previamente elaborado e validado por três professores do curso de Educação Física. Foram utilizadas nove fotos de mulheres consideradas representantes da beleza feminina e evidenciadas na mídia nos anos 2003 e 2004, todas atrizes, modelos e dançarinas.

c) Procedimentos: Todas as seleções da pesquisa, das fotos até as universitárias participantes, foram aleatórias e inerentes ao tema pesquisado. As imagens foram retiradas da Internet no período de maio a julho de 2004. A metodologia consistiu na aplicação do questionário, composto por sete questões abertas referentes ao corpo feminino, e na avaliação das fotos de mulheres freqüentemente expostas na mídia. O questionário foi dividido em duas partes – avaliação de opinião e avaliação da repercussão das fotos – e permeado pela exposição das fotos de modelos nuas e vestidas em um processo intercalado (uma nua, uma vestida... assim, sucessivamente).

• Fase 1: avaliação de opinião. As alunas receberam a primeira parte do questionário, composta por quatro perguntas, para respondê-la com conceitos básicos do cotidiano delas. Tal avaliação permite perceber qual é o ideal de corpo para cada acadêmica em específico e como elas vêem a exposição do corpo feminino nas mídias.

• Fase 2: exposição das fotos. Foi composto um livro com nove fotos intercaladas: cinco de mulheres nuas e seminuas e quatro de mulheres que não pousaram nuas para as revistas masculinas. Nesse momento, também houve observação por parte dos aplicantes do questionário em relação às posturas e comportamentos das acadêmicas em relação ao objeto da pesquisa.

• Fase 3: avaliação da repercussão das fotos. Na segunda parte do questionário, as questões estavam diretamente ligadas às fotos exibidas. Todas as perguntas foram permeadas pela demonstração do livro de fotos e coube à universitária reavaliar suas respostas anteriores e expressar conceitos de corpo perante a nova situação. A aplicação do questionário foi feita de forma individual e isolada, controlando assim as variáveis, sem interferência de opiniões alheias.

d) Verificação dos resultados: O levantamento dos dados adquiridos através do questionário, verificação e confrontamento dos resultados obtidos com as fotos e com a literatura consta de um agrupamento de respostas de análise subjetiva e foi baseada nos conceitos trabalhados por autores que tratam o corpo, o gênero e os meios de comunicação de massa. Também fizeram parte da interpretação dos resultados, os depoimentos retirados dos questionários nos quais transparecem conceitos sobre o corpo.

RESULTADOS

A média de idade das acadêmicas pesquisadas é de 20,5 anos. A representatividade da pequena amostra superou as expectativas iniciais e demonstrou alguns avanços perante as percepções apresentadas nas questões relativas ao corpo.

Na avaliação da primeira questão, “Como você vê seu corpo?”, as respostas não variaram muito, sendo a maioria ambígua, e demonstraram que as estudantes consideram os seus corpos “satisfatórios”. Mesmo assim, reconheceram que necessitam transformá-los ou mudá-los. Em várias ocasiões, foi relatado por parte das entrevistadas que “uma malhação ajudaria”. A partir destas respostas, observa-se que 30% das mulheres responderam gostar de seu corpo e 43% não gostam ou demonstram certo rancor ou mágoa em relação a ele. Corroborando estes fatores, foi indicado nos questionários que 24% das acadêmicas têm necessidade imediata de mudança em seu corpo.

GRÁFICO 1 – Gosto do meu corpo?

 

Na segunda questão, a pergunta foi sobre o que a mulher considera belo em um corpo feminino. A descrição da beleza devia ser referenciada com partes do corpo ou qualidades femininas consideradas desejáveis.

TABELA 1 – Avaliação do que é considerado belo

Descrição da Beleza %
Corpo proporcional 16,00
"Mulher Burguesa"4 10,66
"Bunda durinha" 9,33
"Perna durinha" 9,33
Cintura fina 8,00
Saudável 8,00
Sem presença de barriga saliente 8,00
Braço definido 6,66
Mulher magra 4,00
Abdômem definido 2,66
Coxa grossa 2,66
Quadril largo 2,66
Colo bonito 1,33
Mulher alta 1,33
Mulher com altura mediana 1,33
Postura reta 1,33

Pode-se perceber que as modelagens de beleza exaltadas pelas mulheres são as mesmas idolatradas pelo imaginário masculino. Contudo, foi possível detectar que representações ligadas a discursos dominantes anteriormente continuam presentes no cotidiano feminino, principalmente aquelas retratadas por um status social eminente e proliferador – a burguesia (MALUF; MOTT, 1999; D’INCAO, 2001).

Apesar dos discursos moralistas e em muitos casos escorregadios, as universitárias demonstraram a formatação de seus corpos e de seus desejos a variados modelos discursivos. Não se pode deixar de citar as menções machistas que, no cotidiano, se escondem e que se pode presenciar como os exemplos clássicos da ordem social vigente como bunda e perna durinha, cintura fina.

É neste momento que se pode perceber, conforme aponta Giddens (1991), a presença dos meios de comunicação de massa na experiência cotidiana das pessoas, criando novas formas de subjetivações e colocando o sujeito em contato com diversas experiências. Os sujeitos não possuem uma orientação segura de qual representação discursiva eles devem seguir. Essa idéia do autor corrobora as ambigüidades encontradas nos discursos do grupo pesquisado. Portanto, foucaultianamente falando, o discurso existente hoje é na verdade uma intensa ruptura-continuidade do discurso produzido anteriormente (FOUCAULT, 2003).

Fator merecedor de destaque especial é a presença da palavra “saudável”, a qual representa as máscaras utilizadas a fim de proliferar um consumo desenfreado de produtos para “saúde” e beleza, ou seja, um discurso reproduzido que fortalece profundamente as bases industriais do sistema capitalista e que mais uma vez representa essa ruptura-continuidade de discursos produzidos em outros momentos históricos, pois a medicalização da sociedade foi e ainda é uma das principais formas coercitivas para a manutenção da disciplina.

Michel Foucault (1996) afirma que, dentro dessa maquinaria de poder, a medicina (entendida não como profissão e sim como técnica geral de saúde) assumiu e assume lugar de importância na sociedade. E no Brasil, esse discurso começou a ganhar destaque a partir da década de 1920, momento em que se inicia a formação do saber médico, pois o clínico se torna o grande “defensor” do corpo social e continua muito presente na atualidade. Entretanto, ele utiliza agora de outros elementos discursivos para efetuar a disciplinarização da sociedade.

Para tentar avaliar a influência dos meios midiáticos, a pergunta número três foi incluída no questionário: “Qual a sua opinião sobre o uso da imagem do corpo feminino na mídia?”. As respostas não foram muito amplas, concentrando-se nos focos de exploração e lucro com as imagens. As opiniões mais apresentadas foram:

• 25%, exploração da imagem mulher objeto;

• 20,45% padronização da beleza feminina;

• 18,18%, utilização da imagem da mulher como fator de apelação sexual;

• 13,64%, como armas de venda de produtos ou mercadorias, visando ao lucro, subsidiando novos arquétipos de (in) felicidade;

• 4,55% desvalorização emergente da mulher, no meio social;

• 2,27% as imagens vinculadas à mídia são artificiais.

Entre as opiniões críticas a estes modelos, apresentaram-se também questões ligadas à falta de outros recursos na elaboração de propagandas e programas televisivos, que, na opinião das acadêmicas, utilizam essas imagens de maneira “errônea”. No total, 15,91% das pesquisadas indicaram esse tipo de situação perante a mídia.

Apesar desta crítica por parte das acadêmicas, elas se mostraram também ávidas consumidoras desses modelos corporais.5 Segundo Jean Baudrillard (1991), o que se consome faz parte da intimidade do que está sendo mostrado e quem não faz parte de tal consumismo exacerbado acaba por ficar de lado nos agrupamentos sociais, pois se não há consumo não há cidadania e muito menos integração social. Esse fator apresentado explica, pelo menos em parte, o porquê pode ocorrer essa relação “contraditória” entre a crítica e o consumo desses modelos corporais.

Nessa mesma linha de discussão, à pergunta: “Qual o conceito sobre as imagens vinculadas pela mídia?”, percebeu-se um novo reforço perante as opiniões anteriormente citadas, como:

• A questão da mulher-objeto;

• A referência à padronização do corpo;

• A confluência de opiniões sobre a utilização da mulher como apelo sexual;

• A incidência de questões mercadológicas como os lucros e a artificialidade.

Ainda foram mencionados fatores como a desvalorização feminina e o bombardeio de propagandas exploratórias do corpo feminino, entre outros. As opiniões demonstraram claramente que as mulheres compõem um grupo consciente de sua situação social, porém um grupo igualmente conformado em apenas fazer listas e não necessariamente em mudar de postura perante toda a “exploração” do corpo.

Após a pesquisa pessoal sobre os conceitos de corpo, foi mostrado o livro de fotos, de mulheres que estão expostas na mídia, intercaladas entre “mulheres6 moralmente bem conceituadas” e “mulheres7 que seriam consideradas um tanto quanto despudoradas”. A análise desses conceitos ficou a cargo das acadêmicas e das indignações apresentadas por elas perante o livro de fotos. As menções mais comuns foram: “como posso analisar essas fotos, elas são horríveis!” ou “por que não homens, mulheres são tão nojentas...” ou então a simples expressão de um “Ih!” . Estes discursos das acadêmicas são, na verdade, uma forma de elas delimitarem e darem visibilidade à condição de mulher moralmente bem comportada e com a sexualidade definida (heterossexual). Tudo de acordo com a feminilidade considerada hegemônica.

No prosseguimento da pesquisa, foi perguntado se tais fotos mudaram seus conceitos sobre corpo e a esmagadora maioria de um 100% respondeu “não”. Como se pode verificar nas respostas retiradas dos questionários.

“O meu conceito de corpo continua o mesmo e o que eu acho sobre a exposição feminina também. Não mudou nada.”

“Acredito que nada, continuo achando a imagem da maioria das atrizes e modelos usada de forma exagerada.”

“Em nada, a opinião continua a mesma.”

Esta não mudança de opinião já era esperada, pois os indivíduos por se sentirem atrofiados na sociedade têm “necessidade” de se mostrar sujeitos de suas próprias ações. Entretanto, a moral apresentada superou as expectativas iniciais da pesquisa.

Em processo de civilização e independência feminina, vivido nos últimos cinqüenta anos, era de se esperar mulheres mais livres de preconceitos, estereótipos e conceitos moralmente construídos. Mas os fatos nos mostram justamente o contrário. A maioria se pôs de maneira defensiva perante as fotos e questões sobre as imagens. Houve certo medo ou receio por parte das acadêmicas de identificarem-se com as imagens consideradas “impuras”, como se fosse uma contaminação indesejada e letal.

Com isso, formulou-se um ranking das belezas, baseado nas fotos disponibilizadas na pesquisa, para que as alunas participantes escolhessem, com base em seus critérios subjetivos, as mais belas mulheres.

Com as preferências evidenciadas pela tabela 2 e pelo gráfico 2, pode-se afirmar a estima feminina por mulheres que demonstram um comportamento de “dama”, ou seja, aquela que se porte como uma mulher feminina, singela e elegante socialmente (a mulher burguesa citada anteriormente).

TABELA 2 – Avaliação e classificação do “Livro de Fotos”

RANKING DE BELEZA

Class. Beleza Quadro de Pontuação Soma
1 M.F.C.8 0,0,7,8,8,7,0,7,7,8,8,7,8,7,7,5,8,8,8,7,8,8,8,8,7. 164
2 A.P.A.

0,2,8,7,7,5,6,8,6,7,7,2,4,8,8,6,5,7,7,8,7,7,7,7,6.

152
3 A.H. 0,1,6,6,6,3,7,6,3,6,6,6,5,3,5,7,6,6,6,6,6,6,6,5,4. 127
4 M.M. 0,8,5,5,5,6,8,5,4,3,5,0,6,4,6,8,7,2,4,4,5,5,5,6,5. 121
5 J. Paes 0,7,4,3,3,8,4,0,8,5,0,8,7,6,2,4,3,4,5,5,3,4,2,4,8. 107
6 D.W. 0,5,3,4,4,4,5,4,2,2,0,1,0,2,1,2,2,3,0,2,4,3,4,3,2.
62
7 D.S. 0,3,2,1,2,1,3,3,5,4,0,5,1,1,4,3,4,1,1,1,2,2,3,0,3. 55
8 S.C. 0,4,0,2,1,2,1,2,1,1,0,3,3,5,0,1,1,5,3,0,0,1,1,1,0. 28
9 J. Prado

0,6,1,0,0,0,2,1,0,0,0,4,2,0,3,0,0,0,2,3,1,0,0,2,1.

30

 

GRÁFICO 2 – Exposição em porcentagem da preferência feminina

1 corresponde às beldades “comportadas”; 2 corresponde às belezas “despudoradas”.

A moralidade não está apenas na seleção das belas e femininas mulheres, mas intrínseca também nos conceitos sobre sociedade. Quando perguntado às acadêmicas: se tivesse um desses corpos e ganhasse o dinheiro que tais mulheres ganharam, você posaria nua? A maioria (60%) respondeu não. Os 20% que responderam sim justificaram imediatamente a atitude com frases como: “somente se estivesse necessitando muito de dinheiro e estivesse muito bem comigo mesma. E não faria o nu muito explícito, só o mais artístico.” Esse discurso revela o medo de ser julgada socialmente como alguém que não possui pudores ou valores, assim como elas julgaram as imagens despudoradas.

GRÁFICO 3 – Posaria nua?

Nesse sentido, a disciplinarização feminina ficou muito clara, quando representada a função da disciplina social como moralizadora. O reflexo social é de mulheres preocupadas com a opinião de outras mulheres, preocupadas com a moral e os bons costumes sociais, apesar de tentadas a facetas sinuosas das belezas expostas e cultuadas pela mídia.

Além desse fato, ficou patente uma formação corporal clássica perante a sociedade, afirmando-se que o corpo está “bom”, “satisfatório”, ou que se gosta do corpo que possui, porém conforme já foi salientado, todas as respostas apresentaram um desejo de transformação e mudança na dimensão corporal. Houve dificuldade de aceitar-se corporalmente, o que acabou refletindo no pensamento e no comportamento feminino, como pode-se notar nos discursos das acadêmicas retirados do questionário e apresentados a seguir.

“Um corpo feminino, bonito, com boas formas, não é perfeito mas estou satisfeita. Sempre há algo que a gente não gosta como celulite e algumas gordurinhas que sobram na perna e no bumbum.”

“Um pouco acima do peso, mas estou feliz assim, não acho nem bonito, nem feio.”

“Como algo só meu, que posso cuidar, não para torná-lo um objeto, uma escultura perfeita, mas algo com o qual me sinta saudável.”

“Com qualidades e defeitos como qualquer outra pessoa, me sinto bem, apesar de sempre querer mudar algo em mim.”

O interessante é que sempre as modificações necessárias correspondem aos fatos cotidianos, partes do corpo que são ressaltadas a todo momento e em todas as ocasiões: glúteos, culote, seios e pernas... esculpir para ser saudável, dualidade complexa e muito mencionável. Afinal, que mulher gostaria de ser vista como fútil ou alienada? As respostas demonstram pessoas que não se dão por vencidas, lutam em direção a uma melhor imagem feminina e que precisam se sentir bonitas para contemplar tal busca. Como diria o antigo dito popular: “faça o que digo, mas não faça o que eu faço.” Mais um exemplo de tal fuga inconsciente para a dignidade e não rendição aos progressos da mídia.

“Encaro meu corpo de forma satisfatória, embora tenha épocas em que me sinto desajeitada, procurando melhorá-lo, mas acredito que isso seja um pouco de influência do culto ao corpo perfeito, que estamos vivendo.”

Talvez a última resposta reflita o que realmente acontece, mas por que não reconhecer totalmente esse fator? Parece ser mais fácil esconder-se atrás de milhares de desculpas do que se colocar como produto social e aceitar que o ser humano é somente alvitre deste tempo e que na maioria dos casos ele não é sujeito de suas próprias ações e sim de inúmeros discursos que proliferam indefinidamente pela sociedade.

Fator preponderante é a situação presenciada em relação ao rancor corporal. Muitas das participantes da pesquisa demonstraram um “ódio” vislumbrado em seu corpo, o que não é nem um pouco “saudável”, já que não gostar de si mesma acarretará em futuras frustrações e paranóias. Mudanças a qualquer custo e no fim, infelicidade total, pois o ideal alimentado pela indústria da beleza é inalcançável e inatingível. Em alguns exemplos foi possível perceber esta representação esquizofrênica:

“Fora dos padrões estéticos impostos pela sociedade.”

“Ele em si seria mais bonito se fosse trabalhado, pois está flácido, ‘gordo’, acima do peso, com curvas desproporcionais, mas se me cuidasse ele seria bom.”

“Desproporcional.”

“Eu me vejo como uma pessoa normal, com um corpo normal, além do mais não me preocupo tanto com isso.”

As percepções corporais aguçadas demonstram algumas opiniões livres de moral e com um intenso desejo de mudança, no qual se percebe uma evolução do estágio de preocupação com o corpo. Entretanto, a não aceitação é tanta, que em muitos casos já se reconhece que é necessária uma plástica: mudança drástica e que se tornou com certeza opção clara para todas as mulheres.

“Meu corpo não é bem como eu gostaria, mas com o meu esforço e ajuda de uma plástica básica estaria perfeito.”

Desta forma, o corpo vive hoje num cruzamento com as diversas tecnologias, o que coloca em xeque conceitos como saúde e beleza ou oposições como humano e máquina, pois não existem discursos limitadores de o que é saúde e o que é beleza, onde termina o corpo e onde começa a máquina.

Ou seja, estes discursos reproduzem artificialidade e conduzem uma massa de mulheres que, apesar de conscientes da sua situação atual no mercado lucrativo de cervejas, academias, bundas e passarelas, pautam suas vidas em infelicidades cotidianas e vêem no corpo a única forma de fugir dos problemas que as afligem. Para tanto, compram todas as idéias que criticam e portam-se como desejosas dos corpos que acham banais, fúteis e alienados.

Perceber as incoerências femininas perante seus corpos neste novo milênio é de certa maneira fácil, pois a ambigüidade na identidade “ser mulher” fica mais clara que todos os depoimentos. Mas elas continuam perdidas em seus mares. Atualmente, a mulher necessita de uma âncora para determinar suas funções. O que é irremediavelmente constatado é que esta âncora é a mídia e suas muitas luxarias.

CONCLUSÕES

Apesar das metamorfoses durante os séculos, o corpo da mulher ainda está enclausurado nas configurações dos discursos médicos, industriais e, principalmente, midiáticos. Parece que o corpo feminino deve ser construído em sintonia com o consumismo frenético da sociedade de vendas e lucros, com o simplista objetivo de transformar o corpo em algo fútil, obsoleto, um objeto que completa as necessidades do sistema e fomenta a produção industrial em largas escalas.

Com certeza, a utilização da mulher como símbolo de venda de produtos, transformou-a em objeto manipulável e tortuoso, apresentado atualmente como um complexo emaranhado de estereótipos e imaginários que, na visão feminina, por mais que se negue, têm de ser supridos. A isso, vale o sacrifício de vender-se aos novos discursos médicos e midiáticos para ser alguém perfeito socialmente, mesmo que seja por apenas quinze minutos, já que a beleza capitalista das celebridades instantâneas é efêmera e deturpada. Com tal média, de quinze minutos, a infelicidade abre suas portas e a loucura por um novo corpo toma as rédeas femininas.

Portanto, entende-se que os intensos processos de significação pelos quais o corpo tem passado, e timidamente expostos no presente trabalho, permitem perceber que o corpo é local determinado na história. Os discursos produzidos permitem entender o corpo como uma construção cultural fabricado no cotidiano e nunca além dele. Isso quer dizer que o corpo não tem em si mesmo nenhum significado. Ele é um conjunto de signos e marcas, produtos de discursos e representações que, por várias estratégias, buscam fixar uma identidade sobre ele.

Apesar de parecer um pouco infame, precisa-se levar em conta que a Educação Física também é produtora assídua desses corpos, lisos, retos, alongados e visíveis. Basta perceber os movimentos das academias para justificar tal efeito e que cada vez mais estão presentes nos currículos dos cursos de graduação. Desta forma, o que se pretendeu no texto foi denunciar a maneira como estas práticas discursivas, conforme nos aponta Foucault (1996), ligam entre si saber, verdade e poder. A produção da verdade poderia ser direcionada de maneira que evitasse a sujeição ao biopoder e à medicalização.

Neste sentido, como dificilmente a sociedade deixará de produzir discursos, cabem aos indivíduos denunciá-los, resistir a eles e propor, quem sabe, novos modos de subjetivação.

 

PERCEPTIONS ON THE FEMININE BODY: A STUDY ABOUT THE SUBJECTIVITIES OF STUDENTS OF A PHYSICAL EDUCATION GRADUATE COURSE

ABSTRACT

The present study aims to analyze how the images used in the media influence the construction of the subjectivities. The research envolved 25 graduate students, 19 to 24 years old. Nine pictures of women evidenced in the media were used, all of them actresses, models or dancers. Among the results, the data which more came into attention was the presence of concerns about “morals”, “good habits” and the exploration of the body as a consumption object in the graduate students’ speeches. However, in spite of the conscience of these speeches, the students let reveal that they are avid consumers of these corporal models.

KEY-WORDS: feminine body – subjectivities – speeches

 

PERCEPCIONES SOBRE EL CUERPO FEMENINO: UN ESTUDIO CON LAS SUBJETIVIDADES DE LAS ACADÉMICAS DE EDUCACIÓN FÍSICA

RESUMEN

El presente estudio busca analizar cómo las imágenes utilizadas en los medios de comunicación influencian la construcción de las subjetividades. La realización de la investigación envolveu 25 estudiantes, de 19 a 24 años. Se usaron nueve fotografías de mujeres evidenciadas en los medios de comunicación, todas ellas actrices, modelos o bailarines. Entre los resultados, el dato que más llamó a la atención era la presencia, en el lenguage de las universitárias, de un discurso sobre “morales”, “buenos hábitos” y la exploración del cuerpo como un objeto del consumo. Sin embargo, a pesar de la conciencia de estos discursos, las estudiantes permitiram transparecer que son consumidoras ávidas de estos modelos corpóreos.

PALABRAS-CLAVE: cuerpo femenino – subjetividades – discursos

NOTAS

* Licenciada e mestranda em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná.

** Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná.

1 Entenda-se estética aqui quanto à estética aparente, composta pela beleza preponderante e vazia, e não como totalidade do conceito filosófico – estética = aparência e essência de um objeto ou ser (VASQUEZ, 1999).

2 Nesse sentido, pode-se afirmar como exemplo o surgimento do denominado metrossexual, que seria os homens urbanos, sensíveis, vaidosos, fashion, ou seja, aqueles que possuem características atribuídas anteriormente às mulheres. Contudo, este novo tipo de homem não põe em jogo a sua condição heterossexual. Mais detalhes sobre o metrossexual conferir o artigo de Garcia (2004).

3 Compreenda este fato como não sendo algo bom ou mesmo ruim. Ele é apenas um fato presente no cotidiano.

4 “Mulher Burguesa” considerada a beleza delicada e sem exageros desde o momento em que a burguesia passou a determinar os conceitos sociais.

5 Acredita-se que a presença das respostas criticando a exploração dos corpos pelos meios de comunicação de massa tem uma grande influência do medo de as alunas serem rotuladas de alienadas, fúteis e incapazes de criticar os modelos corporais que consomem.

6 Mulheres que estejam de acordo com a moral e os bons costumes, pregados pela sociedade e pela religião. As mulheres que não se expõem de maneira explícita nos meios de comunicação de massa.

7 Referência às mulheres que se expõem sem “vergonhas” em meios de comunicação de massa.

8 As atrizes, modelos e dançarinas selecionadas foram: Maria Fernanda Cândido (M. F. C.), Ana Paula Arosio (A. P. A), Ana Hickmann (A. H.), Malu Mader (M. M.), Juliana Paes (J. Paes), Daniele Winits (D. W.), Deborah Seco (D. S.), Sheila Carvalho (S. C.) e Joana Prado (J. Prado).

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1991.

D’INCAO, M. A. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996.

____. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2003.

GARCIA, W. O corpo contemporâneo: a imagem do metrossexual no Brasil. Mneme – Revista de Humanidades, v. 5, n. 11, p. 1-15, jul.-set. 2004. Disponível em: <www.seol.com.br/mneme>. Acesso em: fev. 2005.

GIDDENS, A. Modernity and self identity: self and society in the late modern age. Cambridge: Polity, 1991.

MALUF, M.; MOTT, M. L. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, F. A. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. v. 3.

VASQUEZ, A. S. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

Recebido: 31/03/2005
Aprovado: 01/06/2005

Endereço para correspondência:
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CEP 82530-000

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