CORPO E CULTURA: A EDUCAÇÃO DO CORPO EM RELAÇÕES DE FRONTEIRAS ÉTNICAS E CULTURAIS E A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE BORORO EM MERURI-MT

BELENI SALÉTE GRANDO*

RESUMO

Este texto resulta de uma pesquisa sobre a “Educação do Corpo” em contextos interculturais. A pesquisa parte da formação de professores indígenas em Mato Grosso, sustenta-se nos referenciais da Antropologia, da História e da Educação e, numa perspectiva etnográfica, enfoca as práticas corporais cotidianas. Nestas práticas, explicita os múltiplos sentidos e significações da “fabricação da pessoa” no ritual de nominação, na dança e no futebol. A dança é apresentada aqui, como processo polissêmico, no qual as identidades se confrontam num “jogo” que se estabelece nas fronteiras do “nós” e do “eles”, criando novas possibilidades de interação e de educação.

PALAVRAS-CHAVE: corporalidade – educação – dança – bororo – intercultura

INTRODUÇÃO

Este texto é parte do trabalho de pesquisa apresentado na tese de doutorado em educação sob o título “Corpo e Educação: relações interculturais nas práticas corporais bororo em Meruri-MT”, defendida na UFSC/CED, em 2004. O problema investigado partiu da experiência com a formação de professores indígenas em Mato Grosso, socializada desde 1997, no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte em Goiânia, cujo objetivo era buscar estratégias pedagógicas mais acertadas para o trabalho na área de Educação Física, entre os povos indígenas de Mato Grosso. Este texto é assim, um novo diálogo sobre as descobertas das relações entre corpo, cultura e educação (GRANDO, 1997, 1999, 2000b; GRANDO et al., 2002).

Da experiência com a formação de professores indígenas de treze etnias no ensino de Educação Física e de Linguagem Artística e Corporal (GRANDO, 2004b) no Projeto Tucum (1995-2001), busquei compreender quais os sentidos e significados que as práticas corporais adquirem para um grupo étnico (os bororo de Mato Grosso) num contexto de fronteiras étnico-culturais, ou melhor, num processo permanente de conflitos e relações interculturais. A partir disso, como se constitui a identidade bororo (BARTH, 1998).

Entre as práticas problematizadoras estava o futebol, observado nas aldeias bororo e pareci e nos quatro pólos do Projeto Tucum – um jogo de integração entre os próprios professores indígenas (no Pólo I eram 8 etnias) e os moradores da cidade sede do curso. Além do futebol, a dança e o ritual de nominação (integração do indivíduo à sociedade bororo) foram analisados e contribuíram para as respostas às questões da pesquisa que me levaram a compreender as práticas corporais como manifestações que explicitam as complexas relações estabelecidas entre os bororo (os boe, como se autodenominam) e a “sociedade envolvente” e, nessas, as mediações interculturais e interétnicas que os grupos mantêm em situações de “fronteiras culturais”. E, ainda, apontar as novas formas de identidade individual e coletiva que, como num jogo de espelhos, se estabelecem nessas fronteiras e no qual o grupo étnico se reconhece (NOVAES, 1993).

O trabalho de campo foi desenvolvido no Território Indígena de Meruri, na Aldeia de Meruri (OCHOA CAMARGO, 2001). Os vínculos anteriormente estabelecidos com a comunidade – professores boe, salesianos e pesquisadores – foram fundamentais para os primeiros diálogos interculturais que possibilitaram a “entrada” no mundo da cultura e da Aldeia de Meruri. Esta é sede da comunidade boe e da Missão Salesiana Sagrado Coração de Jesus, resultado das relações entre indígenas e não índios por mais de um século, no atual Território Indígena de Meruri, localizado na região de Barra do Garças (MT).

Historicamente o povo bororo deu origem ao mato-grossense dos territórios que hoje compreendem as regiões de Rondonópolis, Cuiabá, Barra do Garças e Cáceres. A maior nação indígena do centro da América do Sul dominou o Pantanal e o Cerrado, até a divisa com a Bolívia. Com eles depararam-se os bandeirantes paulistas, em busca de escravos e de ouro. Daí a opção pela corporalidade boe, uma maneira de melhor compreender a sociedade atual, a partir da história das relações sociais que sustentam sua origem.

Esta sociedade indígena se organiza em diferentes territórios no Mato Grosso e, como grupo étnico específico, mantém constantes relações com os não índios que passaram a ocupar seus territórios desde 1716. Neste processo de disputa por território e garantia de sobrevivência física, os bororo garantem aos poucos descendentes a manutenção de uma sociedade1 de complexa estrutura social.

É no interior dessa estrutura que se estabelecem as relações entre clãs e subclãs com os quais os bororo se identificam a partir do ritual de nominação, quando são integrados à sociedade. Mas esta sociedade, conhecida no mundo por meio dos trabalhos de Lévi-Strauss (1993), se sustenta principalmente pelas relações clânicas e de parentesco estabelecidas durante o funeral bororo, ritual em que o corpo é transformado para permanecer na sociedade bororo e cuja transformação material possibilita a inserção do mesmo à sociedade dos mortos.

A identidade étnica boe, embora dinâmica como a cultura, se sustenta na estrutura da sociedade renovada pelos rituais, principalmente pelo funeral bororo, que, segundo Viertler (1990), se mantém idêntico mesmo após três séculos de contato.

Ao conhecer a história e ao conviver com os bororo em Meruri, busquei explicitar como se estabelecem as relações interculturais mediatizadas pelas práticas corporais dos boe, compreendendo-as no contexto mais amplo do Movimento Indígena por Terra e Educação e nas relações específicas que se estabeleceram durante as danças, o futebol e o ritual de nominação, práticas corporais evidenciadas na pesquisa participativa realizada. Assim, as dimensões abordadas no trabalho foram o contexto histórico das relações entre indígenas e não índios na sociedade brasileira (GRANDO, 2001; RIBEIRO, 1997); o processo de educação escolar indígena como estratégia civilizatória e assimilacionista, que transformada em estratégia indígena, volta-se para uma educação intercultural (GRANDO, 2000a; 2000b); e as estratégias interculturais desenvolvidas pelos bororo que garantiram uma identidade étnica específica, expressa nas “fronteiras culturais”.

Neste texto, recorro à dança para apresentar uma leitura interdisciplinar e intercultural desta realidade, para nela explicitar as relações entre a constituição fabricação do corpo (VIVEIROS DE CASTRO, 1987), isto é, a fabricação da pessoa (MAUSS, 1974) nas relações entre Corpo e Cultura.

A FABRICAÇÃO DA PESSOA NO CORPO QUE DANÇA

Entre as práticas corporais analisadas estão as danças observadas em Meruri, o Jure e o Toro, ambas apresentadas pelos bororo durante a Missa de Ação de Graças, cerimônia de relevante simbologia na “Festa dos 25 Anos”, na qual se fizeram presentes os convidados, autoridades bororo e eclesiais, parentes e amigos da comunidade de Meruri – bororos e salesianos (NOVAES, 1993). Nesse momento pleno de religiosidade e rito, as danças como “fato social total” expressaram, na materialidade dos corpos pintados e ornamentados, com seus movimentos harmônicos e coletivos, a beleza, a força e a identidade do povo bororo (MAUSS, 1974).

Dessas, o Jure foi a mais freqüente em todos os momentos da pesquisa e com a qual os bororo se apresentaram como grupo étnico específico nas festas, encontros e outros eventos dos quais participam e foram reconhecidos como povo. Em Meruri, aldeia onde os funerais foram proibidos pelos salesianos há muitos anos, os jovens dependem das condições disponíveis para participar deste ritual em outra aldeia hoje de difícil acesso (separadas por cidades e fazendas). São nos rituais tradicionais, principalmente no funeral bororo (demora o tempo de decomposição do corpo para o enfeite dos ossos, e isso dificulta aos estudantes), que os jovens vivenciam a prática de produção da vida de modo tradicional. Neste ritual, inúmeras danças são recriadas e transmitidas de forma tradicional – de mão em mão nos termos de Hasse (2002) –, os mais velhos “iniciam” (integram à sociedade adulta) os jovens, com a “fabricação de seus corpos”, e os constitui como membro do seu grupo de idade, do clã, da “sua metade”, com uma identidade específica na sociedade bororo.

A dança do Jure, observada pelos registros da Missão desde 1995, tem sido uma prática corporal inserida em Meruri como estratégia de educação dos mais jovens. Ela é identificada como recurso intercultural (geralmente proposto e patrocinado pelos missionários por meio de festas religiosas, pela escola ou por projetos de valorização da cultura) capaz de preencher as lacunas provocadas pela ausência de rituais, por proporcionar aos jovens e às crianças a educação que passa pelo corpo.

Para as sociedades indígenas, as formas de transmissão das técnicas corporais, ou da “educação do corpo” no sentido de “fabricação da pessoa”, transforma o corpo biológico em corpo social e possibilita que a pessoa passe a se identificar em seu grupo e por ele seja identificado. Essa “educação do corpo”, não se distingue da instrução como a vemos no contexto escolar, dá-se de forma consciente e por transmissão simples, são os mais velhos que procuram instruir cada pessoa sobre tudo o que fazem, sabem ou crêem. Segundo Mauss (1999, p. 121-122), a educação é a “ação que os mais velhos exercem sobre as gerações que se apresentam cada ano para moldá-las com respeito a eles mesmos, e, secundariamente, para adaptá-las aos meios físicos deles”.

Na pesquisa, a educação do corpo se dá também pela pintura e ornamentos que se constituem uma segunda pele assumida de tal maneira que, ao dançarem, vão se constituindo com uma identidade específica dentro do seu grupo de idade e sexo, ao mesmo tempo em que vão se identificando com seu clã e com a sociedade bororo.

Segundo o ancião de Meruri, Kanajó, e o “mestre de cerimônia” (chefe das cabaças/Baporugo, responsável pelo canto e execução da dança), Antônio Caio Aijepa (19952), essa dança se chama “Jure ou Ipare Ereru/Roda ou Dança dos Rapazes. Jure, awu jire boe egore oino /Roda, é assim que o povo chama esse. Awu jire boe egoe Ipare eruru, oino / A esse, o povo chama também de dança dos rapazes”. Como dança dos rapazes, essa dança é uma prática de caráter mais educativo e representa uma forma de festividade, diferente das danças com as quais eles seriam educados nos funerais, um momento ímpar de educação dos jovens.

Jure pode ser dançada por homens, mulheres e crianças, que marcam nos corpos sua identidade expressa nas pinturas e ornamentos clânicos. Segundo as narrativas, para o Jure reúnem-se todos no baito para se pintar e os homens, com suas saias de buriti – toro –, são acompanhados nas danças por suas irmãs mais novas e mais velhas, ou por sua mulher quando não possuem parentes. Essa “regra” da dança explicita outra regra social, quem dança representa e assume o seu lugar na sociedade, o jovem será sempre acompanhado das irmãs, mulheres de seu clã.3 Ao dançar, o rapaz assume seu lugar na sociedade.

Ao observar e descrever as fotografias do Jure realizado em Meruri, em 1995, o ancião Kanajó analisa o corpo pintado e ornamentado. O corpo é o centro da cultura e da identidade individual e coletiva para o bororo:

Eis! Este é Pedro Paulo Aturuwa Ekureu. O bico preto de João-pinto está aí no seu rosto, no seu nariz. Tem na cabeça o pariko chifrudo. O pariko do clã dos bugios (BORDIGNON, 1998, p. 25).

O corpo que dança comunica uma identidade ao outro, torna-se pessoa e integra-se ao seu grupo. Reconhecendo a relevância dessa dança em Meruri, o ancião lamenta a falta dos rituais para que a educação que se dá no corpo seja completa – como “bororo faz”:

Eis! Todos estão dançando, em Meruri. [...] É dança e costume bororo que estão fazendo. Os padres não querem que o costume bororo se perca, que os costumes bororo acabe, que o costume bororo seja abandonado. Por isso sempre pelo costume bororo, pela língua bororo, pela dança bororo. Mas não está completo, a tradição dos bororos não está completa, não foi preparado tudo, não está sendo feito tudo; mas eles não querem que acabe, que seja abandonado, por isso este pouquinho que eles fazem, o fazem bem, o embelezam fazendo assim (KANAJÓ, apud BORDIGNON, 1998, p. 9).

Pela ênfase desta fala, percebe-se a relevância dos projetos de valorização da cultura bororo e da educação que proporciona vivência das práticas corporais. As danças, em Meruri, têm ocorrido com o incentivo da Missão, pois com elas os jovens vão se constituindo como bororo em Meruri, já que a participação nos funerais fica dificultada por não serem realizados nessa aldeia.

O Jure observado no Bororo (pátio circular localizado ao lado do Baito – casa tradicional no centro da aldeia, onde ocorrem os rituais e encontros culturais e políticos da comunidade) foi executado pelo Helinho.4 Os jovens dançavam para a elaboração de um vídeo a ser exibido em diferentes locais como estratégia dos missionários para o Projeto do Centro Cultural Pe. Rodolfo, financiado pelos salesianos da Itália. Como resultado daria “vida” à função da Missão e ao acervo de peças tradicionais presentes no Museu Salesiano daquele país e que, atualmente, tem muitos objetos tradicionais já há muito extintos das práticas corporais bororo pela escassez dos territórios e limitações dos rituais tradicionais pela presença dos “brancos”.

A comunidade boe, mesmo os que não participam diretamente destas festas, observam e gostam de ver os jovens participando (como no relato de Kanajó), pois sabem que ao dançar os jovens alimentam a identidade coletiva do grupo, e as “imagens” divulgam ao mundo que os boe ainda vivem (após três séculos de espoliação), e os missionários recorrem a isso para trazer recursos e desenvolver benfeitorias na aldeia.

Daí o empenho dos conselheiros bororo, mediadores da participação da comunidade na festa, em realizar os ensaios das danças na quadra que fica do lado do Baito. A estratégia que se assemelha às estratégias não índias é, assim, intercultural e busca solução para um problema vivido no cotidiano, que diz respeito à quebra de um processo permanente de educação tradicional e também à não-realização de certos rituais em Meruri. Reconhece-se, portanto, o caráter intercultural no processo de ensino dessa dança, assumida pelos bororo a pedido dos missionários no contexto da festa.

Jure que expressa essa mediação intercultural como dança, significa sucuri (mas também arco-íris), e a dança com este nome tem uma coreografia que lembra o movimento circular da cobra, como é narrado no mito de origem dos rios Pobo Tawujodo, em que os movimentos da cobra criaram as curvas dos rios. No mito, “o sucuri” é responsável pelas curvas do rio – “Ele curvava, o rio se curvava, ele se endireitava e o rio se endireitava”.5

Tradicionalmente, esta dança festiva é feita nas noites em que passam cantando e dançando no Baito, e o canto é bem diferente dos cantos do funeral. Fala de coisas que os bororo gostam e acham bonito em sua cultura. “O Jure é uma cerimônia isolada, festiva. Jure paru é festivo”. Segundo Félix,6 o Jureparu é outro canto, ele é cantado a noite toda, não é o mesmo que o Jure, são coisas diferentes. São os cantos, as palavras que mudam o sentido de acordo com o contexto em que a dança vai ser executada: “o canto é outro; mas as palavras do canto de Jure não pode falar no funeral, pois é coisa festiva, e coisas do funeral não pode nos momentos festivos”.

Por representar no canto as coisas alegres da cultura bororo, segundo os informantes,7 ela pode ser dançada fora dos rituais, por isso, os anciãos a utilizam em outros contextos. Numa fita de vídeo, observei a dança realizada no Bororo, em que participou Pe. Ochoa; em seguida, apareciam as crianças das séries iniciais (alunos das professoras Sandra, Trindade e Áurea, que também foram do Tucum), fazendo a mímica da dança do Jure, como estratégia para a educação intercultural na escola indígena.

Intercultura também fazem os anciãos como o Sr. Américo. Em todas as atividades culturais no Tucum, ele adaptou os cantos e as danças tradicionais, como o Juri e a dança do Couro da Onça, para apresentar os bororo em contextos de “fronteiras culturais” (GRANDO, 2004a). Durante a formatura dos professores bororo, em 2001, foi chefe da cerimônia que, segundo depoimentos, representava na dança e no canto a forma como os filhos que passam fora da aldeia muito tempo (caça, pesca etc.) eram recebidos pela família (da mãe). Simbolicamente, canto (acompanhado pelo choro8 de uma anciã) e dança, ritualizados na formatura, representam o acolhimento dos professores pela comunidade, depois de muito tempo longe de suas famílias.

A vivência proporcionada no Tucum, com a presença do ancião, contribuiu para a formação dos professores numa perspectiva intercultural explicitada na dança, que também foi intercultural dentro da própria cultura bororo. Essa presença durante o Projeto Tucum, adaptando a cultura tradicional, integrou os bororo das diferentes aldeias e cujas experiências ritualísticas também se diferenciavam. No início do projeto, alguns professores não se sentiam seguros para participar das danças, mas aos poucos a identidade do próprio grupo se consolidou na relação com o não índio. A dança foi, assim, estratégia de educação do corpo e possibilitou a constituição de uma identidade coletiva ao integrar os bororo do Pantanal e do Cerrado (onde ocorrem os funerais tradicionais) aos “da Missão”.

Essa aprendizagem serviu também ao Helinho que depois assumiu em Meruri o papel de chefe das cabaças (chefe de rituais, do canto), auxiliando na educação dos jovens que não tinham experiências ritualísticas tradicionais. Os conselheiros (eleitos pela comunidade para representá-la) reuniram as pessoas para ensaiar o Jure e o Toro, adaptados por Helinho para a ocasião.

No relato do Padre Ochoa, o Toro é uma dança de funeral, antes patrimônio de um clã, mas atualmente é puxada por quem sabe. O Toro não é mais específico do clã (do “Antonio Parebaro”, o qual puxou as danças nos ensaios durante o mês de julho, na ausência do Helinho, que estava na Unemat), isso na época dos conflitos “quando morria muita gente”. Agora, a dança fora do ritual é uma forma de os jovens aprenderem com mais facilidade e dentro da cultura; em suas palavras: “a dança é uma forma de alimento da cultura e de buscar apresentá-la também aos jovens motivando-os a aprender. No caso, ensaiar e fazer bonito, ajuda essa dança ser apresentada fora da aldeia, na cidade” (Anotações do Caderno de Pesquisa).

A palavra Toro também designa a saia de buriti (palha) utilizada pelos homens na dança. Com o Toro foi adaptado o Caiô, também o nome da palha da qual é retirada uma haste – vareta – e faz parte da coreografia, ligando os casais, a mulher atrás do homem, segurando-as uma em cada mão, sobre os ombros. Os instrumentos usados no canto são as cabaças e uma espécie de tamborete que marca o ritmo do saltito dado pelos pares e a alternância das mãos para levantar as hastes, ora uma, ora a outra.

Antes de os pares começarem a dança, duas jovens seguravam sobre seus bustos os “cestos” enfeitados (representando os cestos funerais/koddo dos dois mártires da missa), onde foram colocados os nomes de Pe. Rodolfo e Simão Bororo (os mártires na Festa dos 25 Anos). Pode-se inferir que esta foi uma representação do ritual através da dança, no sentido do mito do eterno retorno (NOVAES, 1993).

O CORPO QUE DANÇA IDENTIFICA-SE E POSSIBILITA A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

Os ensaios para o Jure e o Toro ocorreram à noite na quadra do lado oposto ao Bororo. Os mais velhos queriam fazer bonito para os bororo convidados para a festa, por isso os conselheiros orientaram os jovens e adultos a apresentarem-se como povo forte e bonito, conhecedores da cultura, respondendo às críticas9 de que não eram “bororo de verdade”, porque em Meruri não faziam o funeral. Cuidaram também das “roupas” da apresentação: saia vermelha para as mulheres e calção vermelho para os homens que vestiriam a saia da palha do buriti coletada na Aldeia Garça, com auxílio do projeto do Centro Cultural. Os adornos individuais eram de responsabilidade das famílias, mas a falta de matéria-prima e técnica para confecção foi explicitada; muitos usaram os parikos10 do acervo da Missão, restaurados para a festa; outros receberam auxílio de parentes de outras aldeias.

Além dos parikos, diademas e grampos, brincos, colares e braceletes foram confeccionados. A pintura do corpo, junto às roupas e adornos, constitui as insígnias clânicas, junto aos cantos e nomes (boe), os ornamentos expressam a simbologia de entidades naturais e sobrenaturais. Presente em cada objeto, essa simbologia identifica o indivíduo em relação tanto a sua unidade social de origem, quanto à função clânica e subclânica de cada chefe ancestral representada pelo ornamento ostentado na cerimônia. Conhecimento complexo que passa pela realização dos rituais. (DORTA, 1987).

As danças são uma alternativa para esse aprendizado que acaba por ser viabilizado (matéria-prima, por exemplo) pelas relações entre missionários e bororo, como ocorreu na ocasião da festa, em que ambos se constituíram numa “communitas” (TURNER, 1974).

A beleza dos ornamentos ostentados é fundamental. No Tucum observei o desconforto de alguns professores por não terem seus ornamentos para apresentações não planejadas anteriormente. Nas apresentações, os de Meruri contavam com ornamentos trazidos por um missionário, do acervo da Missão, o que reforçava o desconforto dos de outras aldeias mais tradicionais inclusive, pois cientes de que o corpo expressa a beleza e a identidade boe, sem os “enfeites” sentiam-se “feios” e “despidos”.

Nos ensaios noturnos, os jovens, os adultos e os casados, foram organizados aos pares e em dois grupos. Helinho “estudou” como fazer a dança, valendo-se de experiências anteriores e da parceria com Antonio Parebaro (do clã dono do Toro) que o substituiu nos ensaios. Isso reforça o que afirma Mauss (1999), ensinar e aprender faz parte de toda a vida e as autoridades se constituem nas relações sociais e são sempre tradicionais. Os conselheiros insistiam, os jovens tinham que aprender a “fazer bonito”, no grito ao final de cada estrofe – Wu! – os comentários dos mais velhos presentes nos ensaios era que deviam “fazer bonito”: “bororo é forte, é bonito, os visitantes devem ver isso”. Mas os jovens sem o referencial da imitação, não compreendiam.

Na festa, enquanto os jovens se apresentavam com muito entusiasmo e beleza em seus ornamentos e passos coreográficos bem executados, os boe convidados reclamavam (na língua nativa) que não sabiam fazer como bororo, que não eram “boe de verdade”. Os convidados não índios, assim como eu, não entendiam o que estava acontecendo, pois a apresentação aos nossos olhos estava “perfeita”, mas somente quando acertaram o tom do grito, receberam a confirmação de que estavam “bonito”. O sentido do ser bonito para o bororo era expresso no grito, o que fazia da dança não uma coreografia para os braidos (os brancos) verem, mas uma comunicação, com toda a simbologia ali representada, de sua identidade bororo. Para representar naquele “palco” os boe, tiveram que aprender a ser bonito, que é fazer bonito, fazer como bororo faz quando vive como bororo. Ser bonito, portanto, é ser bororo!

Essa festa cumpriu, para os jovens, um rito de passagem que os rituais proporcionariam, o de ser reconhecido como igual, como bororo por todos os bororo. Assim, os ensaios e as danças reproduzidos em outros contextos para serem de fato momentos de aprender a ser, necessitam da transmissão de saberes e de autoridades que avaliam e ensinam, por meio da dança, a ser bororo, de educação tradicional (MAUSS, 1933; 1969).

Para as crianças, os ensaios adquirem uma dimensão importante. Nos ensaios, Elias, de apenas dois anos, filho de um casal que dançava, acompanhava os pais imitando com sua cabaça o Helinho. E com uma menina de 7 anos, fui convidada a aprender, no final da fila, a dança dos mais velhos. A imitação era a forma de aprender e nisso fomos respeitadas. Experimentaram, imitaram e, dançando em seu próprio ritmo e forma, apropriaram-se da sua realidade sem qualquer orientação verbal ou crítica.

Embora orientados nos ensaios, os jovens só compreenderam o sentido do que era “fazer bonito” no momento ritualizado. Pode-se concluir que a dança está presente nos momentos ritualísticos e festivos entre os bororo e que esta se constitui numa prática educativa significativa para a transmissão de valores, de técnicas corporais e dos sentidos e significados que compõem os patrimônios clânicos e as relações entre os clãs na cosmologia bororo.

Ao dançar, os corpos expressam sua história e as relações sociais nela implícitas, constituintes do grupo, possibilitando a cada membro ser integrado e revitalizado em sua identidade étnica e cultural. A preocupação com os ornamentos e as técnicas corporais era coletiva. Como práticas sociais totais, as danças expressaram o contexto das relações sociais, divulgado na apresentação pública e coletiva, para que o “outro” se reconhecesse e se diferenciasse no corpo dançante e, simbolicamente, na cultura e na estrutura social em que se insere, em espaços de fronteiras étnicas e culturais.

 

BODY AND CULTURE: THE BODY EDUCATION IN RELATIONS OF ETHNIC AND CULTURAL FRONTIERS THE CONSTITUTION OF THE IDENTITY BORORO IN MERURI-MT

ABSTRACT

This text of a research on the Body Education in intercultural contexts. Part of the preparation of the Indian teachers in Mato Grosso – is supported on the referential of Anthropology, History and Education and on the ethnographic perspective of body practices. Explicit sensible multiples and signification of the “manufacture of the person”, in practical the identified in as the Ritual one of Nomination, Dance and Football. The Dance is presented here, this polissemic process the indentities face each other in a “game” that is established in the “frontiers” of “us” and of “them” creating new possibilities of interaction and of education.

KEY-WORDS: corporalidade – education – dance – bororo –intercultura

 

CUERPO Y CULTURA: LA EDUCACIÓN DEL CUERPO EN RELACIONES DE FRONTERAS ÉTNICAS Y CULTURALES Y LA CONSTITUCIÓN DE LA IDENTIDAD BORORO EN MERURI-MT

RESUMEN

El presente texto es el resultado de una investigación sobre el Cuerpo en los contextos interculturales. Parte de la formación indígena en Mato Grosso (Brasil)- tuvo como referencias la Antropología, la Historia y la Educación, optando por un abordaje etnográfico centralizado en las prácticas corporales cotidianas. Explicita en estas los múltiplos sentidos y significaciones de la “fabricación de la persona”, en el Ritual de la Nominación, en las Danzas y en el Football. Danza es presentada aquí como en un proceso polisemico en que las identidades se confrontan en un “juego” que se establece en las fronteras de “nosotros” y de “ellos”, criando nuevas posibilidades de interacción y de educación.

PALABRAS-CLAVE: corporalidade – educación – danza – bororo – intercultura

NOTAS

* Doutora em Educação, professora de Educação Física da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Cáceres, e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação.

1 A sociedade bororo é estruturada com base na formação de sua aldeia, em duas metades clânicas: Ecerae e Tugarege. Cada uma corresponde a um semicírculo de choupanas (casas) que se completa num círculo em volta da casa-dos-homens (Baito). Cada metade se divide em quatro clãs garantidos pelas mulheres. Essa mesma divisão, de modo inverso, subdivide em dois setores o Baito, definindo os “lugares de sentar” dos clãs, que refletem o prestígio relativo dos seus ocupantes, os chefes dos subclãs. Essa divisão organiza a própria estrutura da aldeia tradicional, que segue a linhagem materna (VIERTLER, 1990, 1991).

2 Os textos são narrativas de Antônio Caio Aijepa e Antônio Kanajó Brame, sobre o “Ritual Bororo da Dança dos Rapazes”, realizado nos dias 12 e 13 de agosto de 1995, em Meruri. Os textos foram traduzidos por Padre Gonçalo Ochoa Machado (2001); as gravações, fotografias feitas pelo “Mestre Mário” Bordignon e organizadas pelos dois salesianos que atuavam na direção e coordenação da Escola de Meruri, criando estratégias de valorização cultural, de registros da cultura, nas aldeias de Meruri e Garça, ambas no Território de Meruri.

3 As irmãs e primas maternas são irmãs de clã, ao contrário das da família do pai que pertencem a outro clã e a outra metade.

4 Helinho Kurugugoe Eiga foi o responsável pelos cantos e danças realizados na festa; responsável, também, pelo Jure de 31 de maio de 2001, e, juntamente com o ancião Américo, pelas danças apresentadas no Tucum (onde aprendeu muito sobre mediações interculturais). Helinho foi iniciado e constituído autoridade pelos “velhos” para ser o chefe das cabaças. Vindo de aldeias tradicionais, ele acabou mudando-se para Meruri onde passou a exercer essa função ritualística, até pela falta de anciãos naquela aldeia.

5 Aroe Jakomea Po – A grande Inundação – texto organizado por Bordignon para o trabalho do Tucum, 1999 (COLBACCHINI; ALBISETTI, 1942).

6 Félix, assim como Helinho, Teodoro e Gerson, entre outros, foram alunos do Projeto Tucum e atualmente cursam o 3º Grau Indígena na Universidade do Estado de Mato Grosso. Eles foram parceiros em todos os momentos e possibilitaram informações fundamentais para a realização da pesquisa em Meruri.

7 Muitas informações resultam das entrevistas com Félix e Helinho, reconhecidos como autoridades (conhecedores da cultura) pela comunidade bororo. Além disso, recebi orientações do Pe. Ochoa e do Mestre Mario. Tive acesso aos registros disponíveis na Missão, pois Pe. Ochoa foi o mediador intercultural fundamental para esta pesquisa, um “ancião intercultural”, que há 40 anos vive entre os bororo, domina a língua e conhece profundamente a cultura e a história daquele povo, vivenciou as diferentes fases da Missão.

8 Segundo Colbacchini e Albisetti (1942, P. 166), o choro ritualístico é uma forma de “pronunciar as palavras rapidamente em tom alto e triste de nênia, interrompida freqüentemente por agudos gritos” e é executado por ocasião de mortes ou momentos de grande saudade de um parente. O choro está presente em festas, como na matança da onça (mori) e na chegada de parentes e pessoas queridas. Nessas ocasiões, as mulheres são acompanhadas por cantos “daqueles que cantam nos funerais, mas com ritmo mais alegre” e com o acréscimo de palavras outras, de acordo com as circunstâncias.

9 Essas críticas são freqüentemente respondidas pela comunidade bororo e salesiana.

10 Grande coroa de penas, uma das mais belas insígnias da arte plumária brasileira, confeccionada com penas de aves: araras, urubus e gaviões, entre outras, escassas em Meruri, pois seus locais originais estão hoje nas fazendas vizinhas. Na festa, muitas penas foram compradas pelos missionários para a confecção dos ornamentos tradicionais, os bororo acabam por não ter mais condições de adquirir essa matéria-prima fundamental para suas insígnias sociais. Cada ornamento utilizado combina materiais e técnicas que passam a identificar no corpo a pessoa (sua linhagem) e a sociedade.

REFERÊNCIAS

BARTH, F. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenard. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 1998.

BORDIGNON, M. (Org.). Mano: um ritual bororo e uma experiência didático-pedagógica. General Carneiro: MEC/SEDUC-MT/PNUD, 1998 (elaborado em 1995).

COLBACCHINI, A.; ALBISETTI, Pe. C. Os bororos orientais: Orarimogodogue do Planalto Oriental de Mato Grosso. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942.

DORTA, S. F. Plumária borôro. In: RIBEIRO, B. (Coord.). Arte índia. suma: etnologia brasileira. 2. ed. Petrópolis: Vozes/FINEP, 1987. p. 227-238.

GRANDO, B. S. O ensino da Educação Física na formação de professores indígenas. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE: RENOVAÇÕES, MODISMOS E INTERESSES, 10., 1997, Goiânia. Anais... Goiânia: CBCE,1997.

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Recebido: 31/03/2005
Aprovado: 01/06/2005

Endereço para correspondência:
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