A NOVA FORMA DE PENSAR O JOGO, SEUS VALORES E SUAS POSSIBILIDADES
SÍLVIA CRISTINA FRANCO AMARAL *
GUSTAVO NOGUEIRA DE PAULA **
RESUMO
Os videogames são aparelhos de entretenimento, que servem apenas como descanso para os trabalhadores (ou estudantes) e incutem valores da sociedade de consumo a estes, ou eles possuem verdadeira característica do jogo como utensílios de lazer educativo, que possam ajudar o indivíduo a se desenvolver? Buscamos neste ensaio dialogar com estas duas linhas de pensamento que respondem a esta pergunta, procurando perceber se estas se complementam ou se excluem mutuamente. Acreditamos que elas não se excluem, desde que bem trabalhadas e contextualizadas, podendo contribuir para o desenvolvimento do indivíduo, em uma educação para o lazer.
PALAVRAS-CHAVE: jogo eletrônico – lazer – entretenimento.
INTRODUÇÃO
Jogo “é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida
dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço,
segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente
obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado
de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de
ser diferente da vida cotidiana”. (Huizinga,1993, p. 33)
Neste ensaio, realizamos um levantamento bibliográfico sobre o tema dos jogos eletrônicos, procurando estudá-los, confrontá-los com a observação de alguns games e, a partir disto, fazer uma caracterização consistente sobre os mesmos, avaliando quais valores eles podem transmitir à juventude. De importância crescente em nossa sociedade, começa-se a perceber as grandes possibilidades pedagógicas contidas nos jogos eletrônicos e, neste contexto, buscamos refletir sobre como eles educam seus jogadores.
O conceito de jogo foi tomado de Huizinga (1993). Segundo o autor, o jogo tem feito parte de quase todas as sociedades ao longo da história e, de acordo com a sociedade na qual é desenvolvido, sofre modificações. Apesar de manter os seus aspectos mais básicos, como as regras e o divertimento, o jogo na sociedade moderna assume diferentes papéis.
A modernidade é marcada pelo modo capitalista de produção e este tem influenciado diversos setores da vida humana. A competição, a técnica, a racionalização parecem estar presentes em todos os setores da vida e como conseqüência disto ocorre um fenômeno chamado de “esportivização” das atividades, no qual a busca pela vitória é sentimento presente. O próprio ato de brincar e jogar tem sofrido infl uências deste modo de pensar/agir. Neste ponto, em um mundo onde a tecnologia cerca-nos por todos os lados, desde aparelhos celulares a computadores e televisores, o videogame se torna um elemento de destaque na relação do homem frente ao consumo destas tecnologias.
Os jogos eletrônicos compõem um fenômeno tecnocultural recente. Em meados da década de 1970, começaram a ser vendidos aos milhões, tornando-se objetos de entretenimento e lazer em várias regiões do globo, desde o mundo capitalista ocidental até boa parte dos países asiáticos.
Se inicialmente poucos eram adeptos desta prática, o mesmo não se pode dizer nos dias de hoje, em que o mercado de jogos já supera em faturamento a indústria do cinema e possui previsão de um crescimento contínuo nos próximos anos.
Estima-se que o mercado de jogos eletrônicos gire em torno de 9,4 bilhões de dólares, superando o faturamento que a indústria do cinema ganha em bilheteria (KENSKI; AGUERRE, 2003, p. 56). Pesquisas da consultora Screen Digest apontam que, no Reino Unido, este mercado obteve um crescimento superior a 100% entre 1997 e 2003. A mesma pesquisa prevê que, até 2007, os games deverão movimentar cerca de US$ 21,1 bilhões em todo o mundo. Dados de 1998 mostram o consumo de dois milhões e oitocentos mil jogos no Brasil (DIAS, 1999, p. 24) e, segundo Moita (2006, p. 38), “sua movimentação fi nanceira é a primeira na área do entretenimento, a terceira no mundo, fi cando atrás apenas da indústria bélica e da automobilística”.
Mesmo na modernidade, “os jogos eletrônicos trazem características já consagradas nos estudos dos jogos, pois possuem todos os atributos dados ao conceito de jogo” (MENDES, 2005, p. 53). Nesta linha de estudo, o jogo se refere à atividade lúdica, de tal forma que sua noção está relacionada às atividades de lazer. “Além disso, também pressupõe um sistema de regras previamente definidas que, em sua maioria, não pode ser mudado durante o ato de jogar” (MENDES, 2005, p. 53). Isso vem mostrar que mesmo com o passar do tempo as características essenciais do jogo permanecem apesar de possuírem diferentes impactos sociais.
Um jogador de videogame faz progressos visíveis, à medida que consegue mais pontos e passa para o nível seguinte. Todavia, sempre há um novo nível a dominar. O desafio de condições sempre novas de jogo acrescido ao sentimento de controle que crianças dizem que o computador lhes propicia, cria um atrativo duradouro (GREENFIELD,1988, p. 108).
Desta forma, notamos que os jogos podem educar para o consumo. De acordo com Mendes (2006, p. 71), “o consumo, possivelmente, é uma das conexões centrais. Ao se jogar, individualmente ou em pequenos grupos, a necessidade de maior número de consumidores é automática, pois tanto os hardwares como os softwares, por unidade, servem a poucos ao mesmo tempo”. Lembrando sempre que, no sistema capitalista, (sistema no qual os jogos eletrônicos nasceram e se difundem rapidamente) a acumulação desenfreada de bens é estimulada pela propaganda, garantindo o retorno dos investimentos crescentes e escravizando o indivíduo ao consumo. Há ainda uma constante evolução nos níveis de desafio, que vêm acompanhados de evoluções nas tecnologias de informática.
Os jogos são softwares que dependem de um hardware (PC) para funcionar, havendo uma relação consistente, linear e recíproca entre eles e os próprios PCs. Quanto mais os produtores de jogos querem fabricá-los com imagens e sons mais próximos do “real”, mais os jogos pressupõem consoles e PCs potentes e equipados (MENDES, 2005, p. 54-55).
Isso tende a estabelecer um círculo vicioso e cria no jogador uma dependência de consumo crescente. As crianças das gerações mais novas entram em contato com estes aparelhos desde muito pequenas e logo já estão inseridas neste mundo de consumo e batalhas virtuais, que vem a reforçar o individualismo presente nas sociedades liberais burguesas.
Podemos dizer que aqueles nascidos após a década de 1980 acompanharam de perto a evolução ocorrida no setor dos videogames, pois já passaram boa parte da infância em contato, direto ou indireto, com estes aparelhos, assim como em outras áreas da tecnologia, como, por exemplo, os computadores pessoais ou os telefones celulares. As transformações são constantes neste mundo e em questão de poucos anos jogos que eram vistos como do mais alto nível de desenvolvimento se tornam obsoletos e em alguns casos chegam a cair em esquecimento.
Mas algo muito importante tem sido deixado de lado nas análises sobre estes jogos, pois acreditamos que eles trazem consigo elementos constitutivos da subjetividade e que de certa forma possuem grande parcela na educação de crianças e jovens. Parando para pensar de maneira simples, devemos nos lembrar que todos os comandos e ações dentro do jogo respondem a situações pré-programadas por aqueles que o desenvolvem. Neste momento, uma questão se torna pertinente: Seriam estes jogos aparelhos de entretenimento, servindo apenas como descanso para os trabalhadores (ou estudantes) e incutindo valores da sociedade de consumo a estes, ou eles possuem verdadeira característica do jogo como utensílios de lazer educativo, que podem ajudar o indivíduo a se desenvolver?
OS JOGOS ELETRÔNICOS E SUA CONTRIBUIÇÃO À EDUCAÇÃO PARA O LAZER
Refletindo sobre esta questão e sobre a dupla possibilidade que o fenômeno do lazer encerra, resolvemos estudar e analisar de maneira minuciosa como alguns jogos transmitem, de maneira subjetiva, valores presentes na atual sociedade. Através de intensa observação constatamos que, desde seu primeiro contato, os videogames não são objetos neutros, inofensivos e que eles tendem a refletir e a reforçar valores da sociedade em que vivemos. Levantaremos, neste ensaio, argumentos que nos levam a duas linhas de pensamento, propiciando um debate que avalia se estas linhas se complementam ou se excluem mutuamente. As duas linhas de pensamentos são: Os jogos eletrônicos seriam artefatos culturais alienantes, manifestos numa forma de lazer que não visa ao crescimento pessoal do indivíduo, pois “em nossa sociedade o lazer é, freqüentemente, entendido como forma de alcançar prazer, diversão e felicidade, fatores encarregados de compensar as frustrações incorporadas em nossa realidade sociocultural histórica” (WERNECK, 1999, p. 80), ou eles poderiam nos servir como objeto pedagógico de grande valor, dentro e fora das escolas. Segundo Mascarenhas, quando diz acreditar numa pedagogia crítica do lazer, tendo-o como teoria do lazer-educação,
não podemos recusar a idéia do fazer pedagógico como prática intencional. A ação metodológica é tomada então como uma ponte dialógica no ir e vir prática-teoria-prática, antecipando em seu horizonte uma realidade. É a práxis, ousada e criativa, que sugere o lazer como prática da liberdade. O método, como estratégia emerge de uma dada existência social, atento às condições objetivas e subjetivas que enfrenta, também está em movimento, transformando-se. A sensibilidade para poder identificar as múltiplas relações que se estabelecem entre os diversos elementos contidos em nossa ação, bem como a simplicidade e aprender com a tensão produzida pelos problemas inerentes à própria dinâmica desta mesma ação – ou seja, guardados os princípios a totalidade e contradição – configuram-se como exigências para o exercício do movimento (MASCARENHAS, 2000, p. 43-44).
Diante de tal fenômeno cultural, muitos especialistas tentam/ tentaram fazer diferentes análises a seu respeito. As mais comuns são aquelas que tentam verificar a influência que estes jogos possuem no comportamento de seus praticantes. Em abril de 1999, tais estudos ganharam grande destaque e estiveram em evidência após o caso em que jovens estudantes vestidos com capas pretas invadiram uma escola secundária no Colorado, Estados Unidos, e mataram pelo menos treze pessoas e se suicidaram. Já no Brasil, em três de novembro do mesmo ano, um estudante de medicina armado com uma submetralhadora 9 mm atirou em pessoas que assistiam ao filme “Clube da Luta”, na sala 5 de um cinema localizado dentro de um shopping center, em São Paulo. Na época, o estudante alega ter sido influenciado por um jogo que possuía em seu computador. Tal jogo seria Duke Nukem, game do tipo primeira pessoa, em que você enxerga o mundo pelos olhos do personagem, marcado pela falta de diálogos e por tiroteios incessantes.
Estes acontecimentos alertaram as pessoas para os possíveis “males” que os jogos eletrônicos poderiam causar e os riscos de seu constante crescimento em longo prazo, temendo-se que surgisse uma geração de pessoas violentas.
Em defesa dos jogos eletrônicos, psicólogos e, como não poderia deixar de ser, produtores de jogos, ressaltaram suas características positivas, tais como desenvolvimento da criatividade e rapidez nas respostas frente a diferentes estímulos. Como exemplo de autores que defendem uma infl uência benéfica dos games, citamos Greenfield (1988) e Paul Gee (2004). Este último autor diz que “o modo de pensar gerado pelos jogos está mais adaptado ao mundo atual do que o ensinado pelas escolas” (GEE apud MOITA, 2006, 12). Ainda segundo Gee (apud MOITA, 2006, p. 21), “as crianças adquirem um maior nível de aprendizagem, porque o conhecimento adquirido nos games pode ser aplicado imediatamente. Além disso, os games têm a vantagem de passar as informações de uma maneira mais divertida e interativa”. Ainda em defesa dos jogos, citamos Nogueira (1997), Gros (1998) e Larose et al. (1989), mostrando que muitos já são adeptos a essa nova forma de pensar o mundo.
Outra utilização “benéfica” dos jogos eletrônicos é o uso de simuladores de realidade. Dentre eles existem, por exemplo, os simuladores de vôo, em que pilotos de avião podem experimentar a sensação de pilotar aviões com os quais nunca tiveram contato e até mesmo pousar em pistas de aeroportos em que nunca estiveram presentes. Tudo isso visando ganho de experiência, sem colocar suas vidas em risco. Há também os simuladores de guerra, largamente utilizados pelos soldados norte-americanos para testarem suas reações em combate ou até mesmo avaliar estratégias militares. Apesar de não considerarmos tais simuladores como algo realmente benéfico à humanidade, se levarmos em conta seu propósito de treinamento de guerra.
De maneira geral, muito se tem dito e várias discussões foram levantadas, mas nenhuma posição concreta foi tomada a respeito de tais influências. As únicas certezas que possuímos em relação a este campo incidem sobre seu crescente avanço tecnológico e sobre o crescimento de sua importância econômica.
Durante a análise de diversos jogos, alguns pontos foram facilmente notados, devido à freqüência com que ocorrem e acreditamos que isto não ocorra por acaso. Primeiramente nos atemos a uma característica comum a quase todos os jogos. Seus protagonistas freqüentemente são homens, ou personagens do sexo masculino, e brancos, em uma clássica visão eugenista da sociedade. Estes tendem a ser fortes, duros e implacáveis, no mais puro estilo do cinema norte-americano que conhecemos. Resolvem sozinhos seus problemas, muitas vezes através de violência gratuita. Jamais denotam fraqueza e sempre são senhores de suas decisões. Para ilustrar, citamos o personagem principal do jogo Duke Nukem, anteriormente mencionado. Dentro de tal jogo existe inclusive um momento em que o personagem chega a pagar para que dançarinas tirem suas roupas, em um estereótipo machão bem característico.
Em contrapartida, alguns podem lembrar-se de um dos maiores ícones entre os personagens eletrônicos, Lara Croft em seu famoso jogo Tomb Raider que se tornou até filme hollywoodiano (TOMB RAIDER, 2001, 2003). A protagonista deste filme foi interpretada por Angelina Jolie, atriz norte-americana tida como símbolo sexual. Além disso, a personagem foi considerada a mais bem-sucedida heroína de todos os tempos nos games, pelo Guiness Book. Isso chega até a ser compreensível se levarmos em conta que nos últimos dez anos ela vendeu 28 milhões de cópias ao redor do mundo e foi capa de mais de 200 revistas. 1 Mas justamente aqui se encontra o nosso problema, pois tal personagem que, em teoria, representaria a força feminina no mundo atual, possui um corpo muito desejado, não apenas pelos homens, mas pelas mulheres que lhe atiram olhares invejosos diariamente. Dentro do jogo a personagem possui formas difíceis de se encontrar pelas ruas, mesmo porque com o tamanho de seus seios frente ao tamanho do corpo dificilmente alguém conseguiria reproduzir seus movimentos com tamanha perfeição, ou até mesmo seria difícil alguém conseguir sustentar tal corpo sem possuir graves problemas em sua coluna!
De maneira sutil, mas extremamente direta, o jogo passa a idéia de mulher perfeita. Mesmo sendo uma mulher de coragem, enfrentando diversos perigos, ela não deixa de ser linda e não perde sua delicadeza, atributo marcante na maioria das personagens femininas.
Seguindo ainda nesta linha de pensamento, podemos citar outro jogo, ou ainda, outra série de jogos. Trata-se dos jogos da linha Super Mario bros produzidos pela empresa de videogames Nintendo. O personagem principal é um encanador italiano, baixinho e bigodudo que tem como missão resgatar a princesa do reino, que sempre é aprisionada pelo mesmo vilão. Além da dicotomia óbvia entre o bem e o mal, é notável como a mulher (representada unicamente pela Princesa) é tida como alguém indefeso e que só causa problemas. Ela jamais sabe se defender sozinha e fica a mercê de qualquer malfeitor. Vale ainda lembrar que esta série de jogos é dirigida principalmente ao público infantil.
Em 2005, a Nintendo preocupada com estas críticas lança um novo jogo, intitulado Super Princess Peach, para o videogame Nintendo DS, e pela primeira vez a Princesa é o personagem principal, cabendo a ela resgatar Mario. Acontece que, ao contrário do personagem masculino, que usa suas habilidades físicas através de saltos e corridas, por exemplo, para atacar seus inimigos, a princesa usa outra tática, seus ataques são baseados em emoções. O jogador pode usar diferentes ataques “emocionais” para vencer seus inimigos, como raiva, choro ou alegria. Cada um desses sentimentos é representado de uma maneira, através de um coração, por exemplo. Parece que a empresa considera que as mulheres são mesmo pessoas apenas sentimentais, sem outras capacidades na vida.
Talvez não seja à toa que a maioria dos jogadores de videogame seja homens. Pesquisas da Universidade Anhembi Morumbi realizada com 1500 pessoas fizeram um traço do perfil do jogador brasileiro, onde 92% são homens, 43% têm entre 19 e 30 anos e 71% jogam de uma a 20 horas por semana. 2 Além disso, segundo pesquisa da organização Children Now, entre os jogos mais vendidos, apenas 16% continham personagens femininas e somente metade destas possuía real importância dentro da trama (DOUGLAS, DRAGIEWICZ, MANZANO & MCMULLIN, 2002 apud AGOSTO, 2002).
Citamos também a pesquisa divulgada pela Folha de S. Paulo, de 21 de dezembro de 2006, para ilustrar que dentro das lan houses a maioria dos jogadores também é meninos, com idade entre 16 e 19 anos e que além dos games adoram jogar futebol.
Continuando a ilustrar os corpos presentes nos jogos, observamos que os personagens de origem asiática são em sua maioria lutadores, ninjas ou samurais. Raramente ocupam posições diferentes destas, a não ser em jogos que sejam ambientados em sociedades asiáticas, onde todos os personagens possuam esta origem. Mas mesmo nestes casos, os enredos costumam girar em torno de batalhas e disputas realizadas por estes lutadores, que costumam ser os personagens principais. Levandose em conta que um jogo que seja produzido no Japão, ou nos EUA, é difundido pelo mundo sem qualquer alteração, ou seja, todas as crianças que o jogarem, independentemente de que lugares estejam, jogarão o mesmo jogo, a despeito de sua cultura e de sua educação. Esse fato nos mostra como estes aparelhos podem ser um grande meio de difusão da cultura hegemônica existente no atual sistema em que vivemos.
Contudo, discordando (ou até mesmo desconhecendo) esta forma de pensar os jogos eletrônicos, muitos professores se utilizam destes artefatos dentro de suas aulas. Um uso comum se dá com o jogo Simcity. Neste jogo, o jogador encarna o papel de prefeito de uma cidade fictícia. Sua obrigação é a de administrar a cidade e seu objetivo é o de levála ao desenvolvimento, fazendo-a crescer e gerar riquezas. Durante o jogo enfrentam-se problemas como terremotos, enchentes e catástrofes naturais em geral. Além disso, uma má administração pode levar os moradores a realizarem protestos pelas ruas. Pareceria simples, mas devemos levar em conta que tal jogo é produzido nos Estados Unidos, seguindo uma lógica de desenvolvimento nos padrões norte-americanos. Resumidamente, durante a partida o jogador é levado a fazer qualquer coisa para que sua cidade cresça, mesmo que para isso ele tenha que implantar usinas nucleares, derrubar árvores e mudar o curso de rios.
De forma bastante tímida, os moradores às vezes reclamam algum problema na cidade, como violência ou falta de áreas verdes (quando o jogador realiza alguma ação como a anteriormente citada). Obviamente as formas de resolução destes problemas não lembram nem de perto a complexidade real que demandam. Para resolver o problema da violência, por exemplo, basta que se construam novas delegacias aos montes, sem qualquer outra preocupação. Se faltarem árvores, instalam-se novos parques na cidade.
Outro detalhe importante a ser mencionado é que não existem favelas na cidade e que o êxito do jogador é medido de acordo com as grandes construções que consegue realizar, como imensos arranhacéus comerciais com capacidade para milhares de pessoas. Isso mostra a distância existente entre a realidade proposta no jogo e a realidade da sociedade brasileira.
É de se lamentar que, na maioria dos casos, os professores e os cursos de Licenciatura estejam sempre um passo atrás em relação a estas transformações tecnológicas que ocorrem pelo mundo. Parece que a separação entre o que é sério e o que é considerado apenas diversão ainda impera dentro das escolas, “a sociedade atual ainda está muito presa aos valores e processos da era industrial, quando se defendia que trabalho e diversão eram campos distintos” (MOITA apud BITTENCOURT E GIRAFFA, 2003, p. 56). Fechar os olhos, diante da grandiosidade que tem se tornado os videogames, pode fazer com que alunos se desinteressem cada vez mais por assuntos tratados em aula. “Assim, as práticas pedagógicas que predominam muitas das nossas escolas acabam utilizando pouco os jogos ou até recriminando-os” (MOITA, 2006, p. 56). Além do imenso potencial pedagógico existente nestes jogos, aqueles meramente mercadológicos talvez também merecessem ser debatidos com os alunos, pois ao saírem do ambiente escolar é com eles que as crianças e jovens irão se divertir.
Não é raro ouvir comentários de mães preocupadas com o tempo que seus filhos passam diante das telas dos computadores e dos videogames, em detrimento de tempo de estudo. Chega a ser desleal tal concorrência, pois o interesse dado aos jogos é muito maior. E justamente tal interesse deveria ser mais bem explorado nas relações professor aluno. A possibilidade de desenvolvimento de softwares educativos ou da utilização consciente de jogos dentro do ambiente escolar poderia contribuir para o aumento do interesse das crianças pelo conteúdo curricular comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E POSSIBILIDADES DE CONTINUIDADE DO DEBATE
Respondendo a questão posta no início, acreditamos que as duas linhas de pensamento se complementam, pois é fácil perceber que os games podem ser meros objetos de entretenimento, que trazem consigo valores da sociedade de consumo, mas se seu conteúdo for tratado com a devida crítica, os valores de consumo, discriminatórios, de exclusão, eugenistas forem desvelados pelos educadores, os videogames poderão contribuir para que as pessoas construam elementos do lazer como prática para liberdade em nossa sociedade. Isto porque não há como se opor à tecnologia ascendente nesta sociedade da modernidade avançada e, como, desde cedo, as crianças estão em contato com estes jogos devemos nos apropriar dos mesmos. Além disso, os jogos eletrônicos podem ser elementos atrativos, pois fogem do cotidiano comum das escolas e isto pode resgatar a atenção dos alunos, proporcionando uma educação que não se limite a ter os estudantes como meros receptáculos do saber.
Dentro da Educação Física, podemos dizer que:
Assistir, praticar, jogar videogames, falar sobre os jogos, as aventuras e as lutas dos personagens dos desenhos, filmes e jogos eletrônicos, brincar, fantasiar com eles e sobre eles, todas essas experiências são constituintes e constituidoras da cultura lúdica infantil e devem ser apropriadas de modo crítico e criativo pela Educação Física na escola, se essa disciplina, por sua vez, quiser atualizar a sua prática pedagógica, e não ficar alheia ao seu tempo (COSTA; BETTI, 2006, p. 175).
Mas enquanto os videogames forem vistos como meros objetos de entretenimento, objetivando apenas o consumo desenfreado e sem uma reflexão a respeito das mensagens que transmitem, a tendência é que continuem caminhando em direção oposta ao sistema educacional. Além disso, sem uma educação para o lazer e para os jogos, eles continuarão a reforçar os preconceitos aqui apontados, pois não haverá reflexão por parte de seus jogadores e estes continuarão como meros compradores aos olhos daqueles que produzem e divulgam os games.
As discussões acerca do tema talvez ainda estejam em seu início, mas devem caminhar em uma direção que aproveite a influência dos videogames sobre as novas gerações, pois disputar sua atenção contra um fenômeno que movimenta bilhões de dólares e possui inúmeros meios de propaganda ao redor do mundo, além de levar-nos a uma provável derrota, seja talvez um retrocesso educacional.
Muito ainda deve ser estudado e o Brasil deve ficar atento a isso. Já existe uma corrente crescente que estuda tal fenômeno no campo nacional, mas ainda há muito para crescer. Foram abertos cursos de Design e criação de jogos, mostrando grande avanço no modo de pensar as tecnologias. Mas ainda é muito pouco, se compararmos à movimentação financeira que este mercado possui em outros países.
Em complemento a este trabalho, estamos ainda realizando uma pesquisa em que, além das observações feitas aos jogos, questionaremos e avaliaremos como jovens jogadores percebem e interpretam aquilo que os jogos lhes transmitem, bem como verificar o comportamento destes jovens dentro de um ambiente propício ao jogo, as Lan Houses.
Esperamos assim contribuir para o fomento de pesquisas nesta mesma linha, pois muito ainda deve ser feito e as contribuições das mais diferentes áreas de estudo, sejam elas sociológicas, educacionais ou artísticas sempre enriquecerão o debate e a compreensão deste fenômeno, ainda não tão bem compreendido por todos.
The new way to think about games, their values, and their possibilities
ABSTRACT
Are videogames entertaining devices that serve only for workers and students’ relaxation while inputting consumer society values in them? Or do they present real game characteristics such as educational and leisure instruments that can help to develop an individual? In this essay we have tried to communicate with the two lines of thinking that answer this question, in an attempt to understand if these two lines are complimentary or mutually exclusive. We believe they do not exclude one another, provided that they are well explored and contextualized, which could contribute to the development of an individual on an educational process that focuses on leisure.
KEYWORDS: electronic games – leisure – entertainment.
La nueva forma de pensar el juego, sus valores y su posibilidades
RESUMEN
Los videojuegos son aparatos de entretenimiento que actúan apenas como forma de descanso para los trabajadores (o estudiantes) y transmiten valores característicos de la sociedad de consumo, o poseen verdadera característica de juego como implemento del ocio educativo, que pueda ayudar al individuo a desarrollarse? Buscamos en este ensayo discutir estas dos líneas de pensamiento que responden a esta pregunta, procurando analizar si estas se complementan o se excluyen mutuamente. Creemos que ellas no se excluyen, desde que sean bien trabajadas y contextualizadas, pudiendo contribuir para el desarrollo del individuo, en una educación para el ocio.
PALABRAS-CLAVE: video-juegos – ocio – entretenimiento.
NOTAS
* Profª Drª do Departamento de Educação Motora da Faculdade de Educação Física da Unicamp.
** Aluno da graduação em Educação Física pela Faculdade de Educação Física da Unicamp.
1 Retirado de <http://jogos.uol.com.br>. Acesso em: 7 abr. 2006.
2 Disponível em: <http://jogos.uol.com.br/reportagens/ultnot/ult2240u118. jhtm>. Visitado em 15 dez. 2006.
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Site visitado: www.uol.com.br/jogos
Recebido: 28 de março de 2007
Aprovado: 16 de abril de 2007
Endereço para correspondência:
scfa@fef.unicamp.br