RESENHA

MANHÃES, Eduardo Dias. Políticas de esportes no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 244p.

HUGO LEONARDO FONSECA DA SILVA 1

O ano de 2003 marca a história brasileira com a chegada ao poder de uma força partidária que historicamente esteve vinculada aos setores populares organizados, instituindo, assim, novas perspectivas para o país. Depois de um ano e meio de governo, análises e críticas sobre a continuidade da agenda neoliberal e das políticas subservientes aos organismos econômicos multilaterais têm sido desenvolvidas, não sem razão.

Entretanto, observados os limites que a atual conjuntura econômica e política internacional impõem aos países capitalistas periféricos dependentes, como é o caso do Brasil, nota-se que novas diretrizes são destacadas nas políticas públicas cujo atual governo desenvolve em alguns setores, dos quais as políticas para o esporte e lazer é uma importante expressão.

Esse novo momento das políticas de esporte no Brasil precisa ser analisado de uma perspectiva que compreenda o papel dessas num movimento social mais amplo, constituído de significados, características e projeções históricas, as quais refletem os rumos políticos do país.

O livro Políticas de esportes no Brasil, de Eduardo Dias Manhães, ora abordado, reflete, justamente, perspectivas para essa apreciação à luz de categorias explicativas da Sociologia, buscando analisar e expor as políticas de esporte no Brasil e procurando compreender “a forma como [o Estado] articulou historicamente as formas de manifestações desportivas, o ‘participativo’ e o ‘seletivo’, tendo como referencial a prioridade de um ou de outro.” (p.17).

Publicado pela primeira vez em 1986, Políticas de esportes no Brasil é fruto de pesquisa que resultou na produção da dissertação de mestrado de Eduardo Dias Manhães, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, cujas análises abarcavam aspirações de um processo de democratização do esporte brasileiro, “vítima” das políticas autoritárias dos regimes ditatoriais, inspiradas pelos movimentos de (re)democratização do país.

Passados os períodos da denominada transição autoritária e da década perdida, inicia-se no país um processo de implementação aprofundada das políticas neoliberais. Os princípios do laissez-faire, do fundamentalismo de mercado e da redução do Estado afetam o setor esportivo provocando, inclusive, a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s) que investigaram os desmandos, a corrupção e as ilegalidades vinculadas ao mundo esportivo, especialmente, ao futebol. A criação de duas novas leis esportivas (lei Zico e lei Pelé) também é produto desse período.

Esses novos fatos instigaram o autor a reeditar e ampliar sua obra, analisando as novas questões que permearam o mundo esportivo durante a década de 1990 e, especialmente, as políticas de esporte no país nesse período. Daí a importância da obra que, ao analisar as políticas de esporte desde sua configuração corporativa na década de 1930 até a instituição da “livre iniciativa” nos esportes por meio das leis pós-constituintes, aponta importantes subsídios para novas investigações que colaborem para a demarcação de novos direcionamentos no campo das políticas de esporte no Brasil.

Inicialmente, o autor expõe reflexões sobre o conceito de esporte, abordando-o, sob a noção da continuidade histórica, como fenômeno pertencente à cultura física presente desde a Antiguidade grega. Como elemento da cultura humana, o esporte é, para o autor, patrimônio produzido historicamente pelas sociedades humanas, assumindo o caráter de manifestação que contém semelhanças na forma (o jogo, a competição, regras estruturadas), mas mantém diferenças fulcrais afetando as políticas públicas referentes, quais sejam, as formas seletivas e as participativas. Manhães destaca que o desporto seletivo, organizado pela iniciativa privada, tem se constituído como manifestação hegemônica do esporte no país, subjugando a participação de amplos setores da sociedade aos moldes da seletividade. Para analisar a influência desses conceitos na formulação de políticas de esporte, o autor estabelece o par conceito/prioridade, observando que “a definição de prioridades é sempre decorrente do conceito de esporte hegemônico no seio do aparelho de Estado, ou seja, da visão que se tenha desse campo de atividades” (p. 19).

Baseado em Gramsci, Manhães reitera que as políticas de Estado são correspondentes aos conflitos sociais concretos, representando visões de mundo de classes antagônicas que lutam pela hegemonia de um determinado projeto histórico. No interior dessas contradições, as classes em conflito buscam direcionar ou redirecionar a sociedade e suas instituições de acordo com o seu projeto histórico.

Nesse sentido, o autor alerta que é necessário analisar a conjuntura política e o mundo desportivo buscando apreender os determinantes que implicam na formulação das políticas de esporte, muito embora a análise dele seja pautada pela “voz oficial” do Estado materializada nos documentos oficiais (leis, ofícios, entrevistas com ex-integrantes dos governos atuantes na pasta do esporte). As análises do autor são norteadas por esforços denominados por ele de “análises qualitativas”.

O capítulo 2, “O método”, aborda os caminhos metodológicos e seu referencial teórico. Manhães parte da definição do objeto central de seu estudo, a política de esporte, entendendo “que esta é o discurso hegemônico e sua concretização no nível da organização social: as estruturas – entidades e órgãos – e a ordem desportiva instituída” (p. 23).

As principais análises que o autor faz sobre as políticas de esporte no Brasil centram-se no período do nacional-desenvolvimentismo-fascista, pois, todas as medidas definidoras de política, conceito e prioridades, no campo do esporte, foram originárias do período chamado Estado-Novo, permanecendo inalteradas até hoje, com modificações apenas periféricas ou formais (p. 25).

O capítulo 3, “Do discurso da disciplina”, expõe as facetas de um projeto de sociedade de cunho fascista que estabelece a ordem disciplinar na sociedade por meio da corporativização das diversas instituições da sociedade civil e enxerga no esporte um importante elemento para a educação moral e física da juventude. O autor tece críticas à instituição do que denomina de Estado corporativizador da ordem social e, baseado numa lógica positivista e autoritária, compreende que a “harmonia social” deve ser preservada por meio da intervenção disciplinadora do Estado.

No sentido de controlar, disciplinar e promover a prática desportiva, o governo getulista aprova a primeira lei orgânica para o esporte em 1941, responsável pela instituição da estrutura administrativa que centralizará as definições e diretrizes das políticas de esporte até o final dos “anos de chumbo”, o Conselho Nacional de Desporto (CND), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Outro objetivo da criação de leis orgânicas para o desporto, além de discipliná-lo, foi o de constituílo como “expressão da cultura e energia nacionais”.

O capítulo 4, “Do discurso nacionalista”, analisa como o esporte serviu aos interesses de constituição e permanência da ideologia nacionalista de forma oficializada. Sob uma concepção fetichizada de Nação, em que essa é compreendida como um ente superior superposto aos processos históricos fora das relações reais entre os homens, os resultados esportivos passam a representar, para o Estado, um elemento da educação geral da mocidade e propaganda do modelo societal em vigência. Nesse sentido, o Estado privilegia a organização esportiva clubística, ou seja, a manifestação seletiva de esporte em detrimento de suas for-mas participativas que são subordinadas à lógica da seleção de talentos para o esporte de competição.

Manhães destaca ainda a ênfase que, o então ministro da educação, Gustavo Capanema atribuía à Educação Física (inclusive reabrindo a Escola Nacional de Educação Física em 1940) como um “processo de cultura, meio de educação e formação da raça” (p. 83).

Tal educação pauta-se pelas orientações de uma concepção de Nação reificada, que generaliza interesses particulares sob a noção abstrata de coletividade, e pelos preceitos positivistas de adaptação às normas, regras e comportamentos sociais. Desse modo, o autor observa que o esporte fora absorvido pela moral cívica da época, instituindo os resultados desportivos em fetiches-símbolos da alta expressão da cultura e energia nacionais e dos ingredientes inerentes a elas, como a raça, por exemplo, na tentativa de legitimar a superposição da nacionalidade, por via propagandística (p. 94).

No capítulo 6, “Da política continuísta”, o autor avalia que a nova configuração do Estado (ditadura-militar) não modificou a essência das políticas de esporte consentidas durante o período do Estado-Novo, ao contrário houve a permanência das diretrizes gerais do projeto de políticas para o campo desportivo como, por exemplo, a apologia ao modelo de Estado autoritário (agora ditatorial), educação moral e física do povo brasileiro e ênfase na promoção do esporte seletivo.

O autor ainda analisa a estrutura estudantil das políticas de esporte observando a ambigüidade materializada no esporte escolar (clubes escolares) que “constitui-se conquista da massa populacional impossibilitada de financiar sua prática desportiva, embora sem romper com o conceito e com as prioridades da política continuísta” (p. 107).

Manhães critica também o voto unitário instituído nas instâncias representativas do desporto seletivo, entendendo isto como uma “verdadeira aberração”, pois privilegia instituições sem representatividade em detrimento de clubes destacados, como é o caso do Flamengo citado pelo autor.

Muito embora seja necessário considerar as maquinações, as artimanhas, as negociatas e o clientelismo que o voto unitário concede às estruturas esportivas, implicando, inclusive, no continuísmo das gestões fraudulentas e corruptas de alguns “cartolas”, a postura do autor aponta a necessidade de certo elitismo representativo no esporte espetáculo, o que reduz drasticamente as possibilidades de instaurar mecanismos democráticos nessas instâncias e reafirma a centralização do esporte profissionalizado nos grandes centros.

Questão digna de observação nesse capítulo, constitui-se a falta de uma análise crítica acerca das políticas educacionais da época que integram de maneira importante as políticas esportivas do período ditatorial, compreendendo a escola como base da pirâmide esportiva.

No capítulo 7, “Constituição de 1988, Lei Zico e Lei Pelé”, o autor enaltece que a Constituição não decepcionou no que se refere às diretrizes políticas para o esporte. Para ele, a Constituição de 1988 dá um salto qualitativo na questão do esporte participativo e educacional, observando esses, em suas alíneas, como prioridade do Estado. O principal avanço da Constituição e das leis posteriores (Lei Zico e Lei Pelé), segundo o autor, é a iniciativa do Estado em direcionar as práticas esportivas de espetáculo à livre iniciativa do mercado. A adequação do esporte à lógica do mercado (tornar os clubes em empresas e liberar a força de trabalho dos atletas, fim da lei do passe) foi a principal questão nas leis Zico e Pelé, instituindo um embate que explicitou a presença de um grupo de interesses no interior do cenário político do país, a denominada “bancada da bola”, a qual, no afã de manter os privilégios econômico-administrativos, políticos e a obscuridade de seus negócios, procurou vetar importantes itens das leis referidas por meio de lobby no Congresso.

No último capítulo, “A CPI do futebol”, Manhães analisa os processos e o relatório das CPI’s CBF-Nike e do futebol instituídos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, respectivamente. Segundo Manhães, as referidas CPI’s foram instituídas mediante o quadro de resistência da oligarquia dirigente à mudança na constituição das entidades dos esportes praticados por profissionais, ao cumprimento do mandamento constitucional que determina tratamento diferenciado para os desportos profissional e não-profissional, com o crescimento das atividades negociais e da estruturação das competições e espetáculos desportivos desse segmento como atividade econômica organizada, criaram um quadro de descalabro administrativo marcado pelos indícios cada vez mais fortes de ilícitos fiscais e civis, bem como pelo enriquecimento duvidoso de seus dirigentes (p. 119).

O relatório final da CPI do futebol, analisado pelo autor, denuncia irregularidades administrativas, corrupção, crime fiscal, enriquecimento ilícito e negociatas com políticos e membros do judiciário por parte de diversos dirigentes do futebol, apontando a necessidade de se instituir uma agenda de “moralização” e “modernização” do futebol brasileiro. Essa agenda tem como objetivo central instituir a lógica (neo)liberal no âmbito do esporte (especificamente do futebol), compreendendo os mecanismos de mercado como únicos agentes possíveis para tal intento.

Muito embora o autor objetivasse compreender o conceito de es-porte presente nas legislações e os impactos causados nas prioridades que direcionam as políticas públicas para o setor e suas análises apontassem o privilégio da manifestação seletiva ou profissional, em detrimento das expressões de participação e democratização do esporte, o texto carece de uma reflexão crítica sobre tal questão, passando, o autor, a privilegiar, contraditoriamente, o debate sobre o desporto profissional, como é o caso das análises sobre as CPI’s.

A política do atual governo aborda uma nova diretriz para o campo esportivo, qual seja, a sua inserção no âmbito das ações estatais no sentido de incluir socialmente as parcelas excluídas da sociedade, buscando reduzir os quadros de injustiça, exclusão e vulnerabilidade social.

Uma nova perspectiva de políticas esportivas surge (ao menos como diretriz) sob os princípios da participação democrática e do controle social. Como manifestação disso, tem-se a realização da 1ª Conferência Nacional do Esporte promovida pelo Ministério do Esporte, do qual participaram, além do governo e de representantes do setor esportivo (historicamente, protagonistas privilegiados senão únicos desse “debate”), a sociedade civil organizada por meio de movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e instituições científicas.

Assim, é necessário compreender o movimento das políticas do governo atual no interior do movimento geral da sociedade e de suas contradições. É imprescindível entender até que ponto as forças políticas e econômicas (como é o caso do Comitê Olímpico Internacional), inseridas no interior do debate acerca das políticas de esporte atualmente, estão exercendo pressão no sentido de manter a política hegemônica de esporte que se arrasta desde a década de 1930 com algumas “mudanças formais” como aponta Manhães.

Desta maneira, a obra reeditada de Manhães ao abordar, sob o viés da Sociologia, as políticas de esporte desde a constituição até o desenrolar político das CPI’s, contribui inequivocamente para o debate atual acerca das políticas de esporte no Brasil, a fim de instrumentalizar o debate para que uma análise radical dessas possa remeter a uma democratização efetiva das manifestações de esporte e lazer no país.

 

NOTA

1 Professor da rede estadual de ensino de Goiás, licenciado em Educação Física e especialista em Educação Infantil pela Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás e mestrando em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.

Recebido: 30 de setembro de 2004
Aprovado: 20 de outubro de 2004

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